Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 27

1 1.2“Do mesmo Davi”. Trata-se da voz do próprio mediador, que teve mão forte no conflito da paixão. Não é imprecação, mas predição de castigo o que ele parece desejar aos inimigos. Assim, no evangelho, o senhor não está lançando uma imprecação, mas prediz o castigo iminente das cidades onde operou milagres, e que não acreditaram nele (cf Mt 11,20).

2 “Por ti clamei, Senhor, não silencies para comigo, meu Deus”. Por ti clamei, Senhor; meu Deus, não quebres a unidade de teu Verbo com a natureza humana, que possuo. “Não aconteça que te cales para comigo e assemelhar-me-ei aos que baixam à sepultura”. Desde que a eternidade de teu Verbo não deixa de unir-se a mim, não sou homem como os demais, que nascem na profunda miséria deste mundo, onde teu Verbo não é conhecido, e parece que te calas. “Escuta a voz de minha súplica quando te imploro, quando ergo as mãos para teu santo templo”, quando sou crucificado para a salvação dos que, pela fé, se tornam teu santo templo.

3 3“Não arrastes a minha alma com os pecadores e não me arruínes com os obreiros de iniquidade, que falam de paz com o próximo”, com os que me dizem: “Sabemos que vens da parte de Deus como Mestre” (Jo 3,2), “mas têm a malícia no coração”. No coração cogitam o mal.

4 4“Retribui-lhes conforme suas obras”. É justo retribuir-lhes conforme suas obras. “E segundo a malignidade de seu afeto”. Afeiçoados ao mal, não podem atingir o bem. “Recompensa-os conforme a obra de suas mãos”. Recompensa-os conforme a intenção de suas obras, embora tenha valido para a salvação dos outros aquilo que fizeram. “Dá-lhes a paga que merecem”. Quiseram retribuir com mentiras a verdade que ouviam; engane-os a sua astúcia.

5 5“Porque não entenderam as obras do Senhor”. Como se manifesta que assim lhes aconteceu? Por isso mesmo: “não entenderam as obras do Senhor”. Isto já foi castigo para eles. Com ânimo malévolo experimentaram-no como homem e não conheceram qual o plano do Pai, ao enviar um Deus encarnado. “Nem as obras de suas mãos”. Nem as obras visíveis, desdobradas diante de seus olhos, não os moveram. “Tu os destruirás, e não os restabelecerás”. Em nada me prejudiquem, nem possam coisa alguma, por seus novos esforços de sitiar minha igreja.

6 6“Bendito o Senhor, que ouviu a voz de minha prece”.

7 7“O Senhor é meu auxílio e meu protetor”. O Senhor auxilia-me, ao sofrer tanto e protege-me ao ressuscitar imortal. “Nele esperou meu coração e fui amparado. E minha carne refloresceu”, isto é, minha carne ressuscitou. “De bom grado o confessarei”. Os que em mim creem, depois de passado o medo da morte, confessá-lo-ão não coagidos pelo temor sob a lei, mas dentro da lei por livre vontade. E como estou neles confessarei.

8 8“O Senhor é a fortaleza de seu povo”, que não é aquele povo ignorante da justiça de Deus, querendo estabelecer a sua própria. Não se considerou forte por si mesmo, porque o Senhor é que é a fortaleza de seu povo, a lutar, entre as dificuldades desta vida, com o diabo. “E o protetor que vem para a salvação de seu ungido”. Protegerá finalmente o seu povo, salvo por Cristo, depois que demonstrou fortaleza no combate com a imortalidade da paz.

9 9“Salva o teu povo e abençoa a tua herança”. Intercedo por ele, portanto, após ter reflorescido a minha carne, porque me disseste: “Pede-me e dar-te-ei os povos por herança (Sl 2,8). Salva o teu povo e abençoa tua herança, porque tudo o que é meu é teu” (Jo 17,10). “Rege-os e exalta-os pelos séculos”. Rege-os nesta vida temporal e daqui transfere-os para a eterna.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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