Salmo 35 – Malícia do pecador, bondade do Senhor

São João Paulo II, papa*

Quem me segue, não andará nas trevas, mas terá a luz da vida (Jo 8,12).

2 O pecado sussurra ao ímpio *
lá no fundo do seu coração; 
– o temor do Senhor, nosso Deus, *
não existe perante seus olhos. 
3 Lisonjeia a si mesmo pensando: *
“Ninguém  nem condena o meu crime!”


4 Traz na boca maldade e engano; *
já não quer refletir e agir bem. 
=5 Arquiteta a maldade em seu leito, †
nos caminhos errados insiste *
e não quer afastar-se do mal.

6 Vosso amor chega aos céus, ó Senhor, *
chega às nuvens a vossa verdade. 
7 Como as altas montanhas eternas *
é a vossa justiça, Senhor; 
– e os vossos juízos superam *
os abismos profundos dos mares.

– Os animais e os homens salvais: * 
8 quão preciosa é, Senhor, vossa graça! 
– Eis que os filhos dos homens se abrigam *
sob a sombra das asas de Deus. 
9 Na abundância de vossa morada, *
eles vêm saciar-se de bens.

– Vós lhes dais de beber água viva, *
na torrente das vossas delícias. 
10 Pois em vós está a fonte da vida, *
e em vossa luz contemplamos a luz. 
11 Conservai aos fiéis vossa graça, *
e aos retos, a vossa justiça!

12 Não me pisem os pés dos soberbos, *
nem me expulsem as mãos dos malvados! 
13 Os perversos, tremendo, caíram *
e não podem erguer-se do chão.

1. Cada vez que tem início um dia de trabalho e de relacionamentos humanos, duas são as atitudes fundamentais que cada homem pode assumir:  escolher o bem, ou então ceder ao mal. O Salmo 35, que acabamos de ouvir, apresenta precisamente estes dois perfis antitéticos. Por um lado, há quem desde o seu “leito”, de onde está para se levantar, medita projectos iníquos; por outro, ao contrário, há quem procura a luz de Deus, “fonte da vida” (v. 10). O abismo da malícia do ímpio opõe-se ao abismo da bondade de Deus, nascente viva que sacia e luz que ilumina o fiel.

Por isso, dois são os tipos de homem descritos pela oração salmista, que acaba de ser proclamada, e que a Liturgia das Horas nos propõe para as Laudes de quarta-feira da primeira Semana.

2. O primeiro retrato que o Salmista nos apresenta é o do pecador (cf. vv. 2-5). No seu interior como diz o original hebraico encontra-se o “oráculo do pecado” (cf. v. 2). A expressão é forte. Faz pensar numa palavra satânica que, em contraste com a palavra divina, ressoe no coração e na linguagem do ímpio.

Nele o mal parece conatural com a sua íntima realidade, de maneira a manifestar-se em palavras e actos (cf. vv. 3-4). Ele passa os seus dias a escolher “maus caminhos”, desde muito cedo, quando ainda está “no seu leito” (v. 5), até à noite, quando está prestes a adormecer. Esta escolha constante do pecador deriva de uma opção que empenha toda a sua existência e gera a morte.

3. Mas o Salmista está totalmente orientado para o outro retrato em que ele deseja reflectir-se:  o do homem que procura o rosto de Deus (cf. vv. 6-13). Ele eleva um verdadeiro e próprio cântico ao amor divino (cf. vv. 6-11) al qual faz seguir, no final, uma suplicante invocação para ser libertado do fascínio obscuro do mal e imbuído para sempre pela luz da graça.

Neste cântico desenvolve-se uma verdadeira e própria ladainha de termos, que celebram os lineamentos do Deus de amor:  graça, fidelidade, justiça, juízo, salvação, sobra protetora, abundância, delícia, vida e luz. Salientem-se, em particular, quatro destes traços divinos, expressos com vocábulos hebraicos que têm um valor mais intenso do que é demonstrado pela tradução nas línguas modernas.

4. Em primeiro lugar há o termo hésed, “graça”, que é fidelidade e, ao mesmo tempo, amor, lealdade e ternura. Constitui um dos termos fundamentais para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo. E é significativo que ele ressoe por 127 nos Salmos, mais de metade de todas as vezes que esta palavra aparece no restante do Antigo Testamento. Além disso, há o termo ‘emunáh, que deriva da mesma raiz do amen, a palavra da fé, e significa estabilidade, segurança e fidelidade inabalável. A seguir, vem a palavra sedaqáh, a “justiça”, que tem um significado sobretudo salvífico:  é a atitude santa e providencial de Deus que, através da sua intervenção na história, liberta do mal e da injustiça os seus fiéis. Enfim, eis a mishpát, o “juízo” com que Deus governa as suas criaturas, debruçando-se sobre os pobres e os oprimidos, e derrubando os arrogantes e os prepotentes.

Quatro palavras teológicas, que o orante repete na sua profissão de fé, enquanto se encaminha pelas sendas do mundo, convicto de ter ao seu lado o Deus amoroso, fiel, justo e salvador.

5. Aos vários títulos com que exalta a Deus, o Salmista acrescenta duas imagens sugestivas. Por um lado, a abundância de alimentos:  ela faz pensar, em primeiro lugar, no banquete sagrado, que se celebrava no templo de Sião, com a carne das vítimas sacrificais. Há também a fonte e a torrente, cujas águas saciam não apenas a garganta sedenta, mas também a alma (cf. vv. 9-10; Sl 41, 2-3; 62, 2-6). O Senhor sacia e dessedenta o orante, tornando-o partícipe da sua vida plena e imortal.

A outra imagem é representada pelo símbolo da luz:  “Na vossa Luz é que vemos a luz” (v. 10).

Trata-se de uma luminosidade que se irradia como que “a cântaros” e é um sinal da revelação de Deus ao seu fiel. Assim aconteceu com Moisés no Sinai (cf. Êx 34, 29-30) e assim acontece com o cristão, na medida em que, “com o rosto descoberto, com o rosto refletindo a glória do Senhor, como um espelho, é transformado nessa mesma imagem” (cf. 2 Cor 3, 18).

Na linguagem dos Salmos, “ver a luz do rosto de Deus” significa concretamente encontrar o Senhor no templo, onde se celebra a oração litúrgica e se escuta a palavra divina. Também o cristão vive esta experiência, quando celebra  os  louvores  do  Senhor  na  aurora do dia, antes de se encaminhar pelas sendas nem sempre lineares da vida quotidiana.

*Audiência Geral de 22 de agosto de 2001, publicado originalmente em
http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/2001/documents/hf_jp-ii_aud_20010822.html


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