Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 44

 

IV das Nonas de setembro. Quarta-feira. Sermão pronunciado na basílica Restituída.

1 1Cantamos, jubilosos, este salmo convosco. Pedimos agora que o considereis atentamente conosco. Refere-se o cântico às santas núpcias do esposo e da esposa, do rei e do povo, do Salvador e dos que serão salvos. Quem vier às núpcias com a veste núpcial, desejoso da glória do esposo e não da sua, ouvirá de bom grado (como costumam fazer até mesmo os homens cubiçosos de espectáculos, não da realidade) e ainda depositará em seu coração palavras que ali não serão inúteis, mas efetivamente hão de germinar, brotar, crescer, chegar a um estado perfeito, ser assimiladas. É para nós que o salmo é cantado. De acordo com o título do mesmo salmo, sejamos “filhos de Coré”. Foram estes, homens que existiram realmente; contudo, os títulos das sagradas Letras sugerem algo mais aos que entendem, e reclamam não somente ouvintes, mas ainda bons conhecedores. Procuramos saber qual o sentido da palavra hebraica Coré. Como todas as palavras das Escrituras têm interpretação peculiar, foinos declarado que “filhos de Coré” significam: filhos do Calvo. Não tomeis este nome como irrisão. Nosso ânimo não seja pueril qual o dos meninos citados no livro dos Reis, que insultavam o santo profeta Eliseu, clamando atrás dele: “Sobe, careca! Sobe, careca!” (2Rs 2,23.24). Estultos, tagarelas, injuriosos, para sua perdição, tais meninos foram devorados por animais ferozes que saíram do bosque. Relembramos que assim se acha escrito e onde está escrito. Quem se lembrar, identifique a passagem. Quem, todavia, tiver esquecido, releia e os que não leram, acreditem. Não nos cause apreensão ter o fato figurado eventos futuros. Aqueles meninos representavam os estultos, desprovidos de bom senso. Não nos quer desta maneira o Apóstolo e por isso diz: “Quanto ao modo de julgar, não sejais como crianças” (1Cor 14,20). Ao invés, o Senhor nos convidou a imitar os meninos, na ocasião em que colocou diante de si um pequenino e declarou: “Se não vos tornardes como esta criança, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 18,2.3). Então, o Apóstolo cauteloso, depois de aconselhar a não se ter mente pueril, convida novamente à imitação das crianças: “Quanto ao modo de julgar, não sejais como crianças; quando à malícia, sim, sede crianças, mas quanto ao modo de julgar, sede adultos” (1Cor 14,20). Aquele a quem aprouver imitar as crianças, não tenha gosto pela ignorância, e sim pela inocência. Aqueles meninos, por ignorância, insultavam o santo de Deus, que era calvo, e gritavam seguindo-o: “Cabeça, careca!” E aconteceu que foram devorados pelas feras. Eram figuras de certos homens, de mente também pueril, que zombavam de outro calvo, daquele que no Calvário foi crucificado. Apoderaram-se deles feras de outra espécie, a saber, os demônios, o diabo e seus anjos, que operam nos filhos da incredulidade. Eram desses meninos os que diante do sagrado madeiro, de pé, meneavam a cabeça, dizendo: “Se é filho de Deus, desça da cruz” (cf Mt 27,33.39.40). Nós, porém, somos filhos deste último, porque filhos do esposo (cf Mt 9,15; Lc 5,34); pertencenos o título deste salmo, que assim reza: “Dos filhos de Coré, por aqueles que serão mudados”.

2 Que exposição farei da expressão: “por aqueles que serão mudados”? O que dizer? Todo aquele que foi mudado já o sabe. Quem ouvir as palavras: “Por aqueles que serão mudados”, pondere o que era, o que é. Em primeiro lugar, observe que o próprio mundo está mudado. Outrora, adorador dos ídolos, agora de Deus. Anteriormente servia a criatura, atualmente o Criador. Notai quando foi dito: “por aqueles que serão mudados”. Atualmente os pagãos restantes têm horror das mudanças. Os que não as aceitam, veem as igrejas repletas e os templos desertos; ali as celebrações, aqui a solidão. Eles se admiram com as mutações; que leiam as predições. Prestem ouvido ao promissor, e acreditem no realizador. Além disso, irmãos, cada um de nós de homem velho tornou-se novo, de infiel fez-se fiel, de ladrão em doador se transformou, de adúltero em casto, de malfeitor em benfeitor. Por conseguinte, cante-se a nosso respeito: “por aqueles que serão mudados” e comece-se a cantar por quem foram mudados.

3 Segue-se: “Por aqueles que serão mudados, dos filhos de Coré, para inteligência, cântico em prol do dileto”. Pois, aquele dileto foi visto pelos perseguidores, mas estes não o entenderam. Pois, se o tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória (1Cor 2,8). Este conhecimento exigia outros olhos, conforme disse o próprio Senhor: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Cante-o o salmo. Alegremo-nos com as núpcias, e seremos dos que as celebram, os seus convidados; e estes constituem a esposa. Pois, a esposa é a Igreja e Cristo é o esposo. Costumam os poetas compor certos poemas para os que se casam, denominados epitalâmios. Por inteiro se cantam em louvor do esposo e da esposa. Por acaso nas núpcias, para as quais fomos convidados, não existe tálamo? Por que, então, assegura outro salmo: “Armou no sol a sua tenda e este qual esposo que sai do tálamo” (Sl 18,6)? É uma união nupcial a do Verbo e da carne; o tálamo desta união é o seio da Virgem. Portanto, a carne está unida ao Verbo; daí se dizer: “Já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19,6; Ef 5,32). A Igreja foi assumida do gênero humano, para que fosse Cabeça da Igreja a própria carne unida ao Verbo, e os fiéis fossem os membros desta Cabeça. Queres saber quem veio para as núpcias? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). Alegre-se a esposa amada por Deus. Quando foi amada? Quando ainda era feia. Diz o Apóstolo: “Todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23). E ainda: “Com efeito, Cristo morreu pelos ímpios” (Rm 5,6). Foi amada a Igreja quando disforme para não continuar feia. Não foi propriamente enquanto disforme que foi amada, porque a feiura não é amada por si. Se esta fosse amada, teria sido conservada. Cristo tirou a feiura, e deu-lhe beleza. A quem ele veio e como a tornou? Venha ele nas palavras proféticas. Eis o esposo; venha até nós. Amemo-lo. Se nele encontrarmos qualquer deformidade, não o amemos. Ele encontrou muita feiura, e nos amou; se nele encontrarmos, não o amemos. Mesmo no fato de se ter revestido da carne, de sorte que dele se dissesse até: “Vimo-lo, e não tinha beleza nem esplendor” (Is 53,2), se considerares a misericórdia com a qual agiu, também nisso ele é belo. Mas, o profeta falava em lugar dos judeus, quando dizia: “Vimo-lo, e não tinha beleza nem esplendor”. Por quê? Porque não foi entendido. Para os que entendem, a máxima beleza está em que “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14), disse um dos amigos do esposo. É pouco não te envergonhares dela; além disso, deves gloriar-te. Por que não tinha beleza nem esplendor? Porque Cristo crucificado, para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura (cf 1Cor 1,23.25). Por que razão, porém, até na cruz teve beleza? Porque o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Para nós, porém, já fiéis, o esposo, sempre belo, vem ao nosso encontro. É belo enquanto Deus, o Verbo junto de Deus; belo no seio virginal, onde não perdeu a divindade, mas assumiu a humanidade; belo o Verbo, ao nascer como criança; pois, mesmo enquanto criança, ao sugar o leite materno, ao ser carregado nos braços, os céus se manifestaram, os anjos cantaram louvores, a estrela guiou os magos, e foi adorado no presépio, qual alimento dos mansos (cf Lc 2,8-14; Mt 2,1). É, portanto, belo no céu, belo na terra; belo no seio, belo nos braços dos pais; belo nos milagres, belo entre os flagelos; belo quando convida à vida, belo quando não teme a morte; belo ao entregar a alma, belo ao retomá-la; belo no madeiro da cruz, belo no sepulcro, belo no céu. Ouvi o cântico, com entendimento, e a fraqueza da carne não aparte vossos olhos do esplendor daquela beleza. A justiça é a suprema e verdadeira beleza. Onde percebes algo de injusto, não vês mais beleza. Se ele é totalmente justo, é totalmente belo. Venha, portanto, para que o vejamos com os olhos do espírito, descrito com louvores por um de seus profetas. Assim inicia o salmista:

4 2“Prorrompeu de meu coração uma palavra boa”. Quem fala? O Pai, ou o profeta? Alguns supuseram que é o Pai quem fala: “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa”, recomendando-nos o seu nascimento inefável. Ele disse: “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa”, a fim de que não penses que Deus empregou algum meio para gerar o Filho. Um homem, para gerar filhos, precisa do matrimônio, sem o qual não pode procriar; não julgues ter Deus precisado de união matrimonial para gerar o Filho. Hoje, ó homem, teu coração gera um plano, e para isso não precisa de mulher. Segundo o plano preconcebido, edificas alguma coisa; e aquela massa volumosa, antes de ser construída, existe em teu plano; e está presente o que hás de fazer, naquilo por meio do qual vais construir. Elogias a construção ainda inexistente, ainda não realizada, mas apenas planejada. Um outro igualmente não pode apreciar teu plano, a menos que o enuncies, ou ele já o veja realizado. Por conseguinte, tudo foi feito pelo Verbo, e o Verbo de Deus; examina a construção levantada pelo Verbo, e pela obra admira o planejamento. Qual o Verbo, pelo qual foi feito o céu e a terra, e todo o ornato do céu, a fecundidade da terra, a amplidão do mar, a difusão do ar, o fulgor das estrelas, a claridade do sol e da luz? Tudo isso é visível. Vá além. Pensa nos Anjos, Principados, Tronos, Dominações, Potestades (cf Cl 1,16); tudo foi feito por ele (Jo 1,3). Como, pois, todas as coisas foram criadas sendo boas? Prorrompendo a palavra pela qual foram feitas: “palavra boa”. Portanto, o Verbo é bom; a ele foi dito: “Bom mestre”. E o mesmo Verbo respondeu: “Por que me perguntas sobre o que é bom? Ninguém é bom senão só Deus” (Mt 19,17; Mc 10,18). Foi interpelado: “Bom mestre”, e replica: “Por que me perguntas sobre o que é bom?” E acrescenta: “Ninguém é bom senão só Deus”. Como então ele também é bom, a não ser porque é Deus? Não somente Deus, mas também com o Pai um só Deus. Ao afirmar: “Ninguém é bom senão só Deus”, não se separou dele, mas se uniu. “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa”. Deus Pai assim se exprimiu a respeito de seu Verbo bom e benfeitor nosso, e por ele, o único bom, podemos nós ser bons em certa medida.

5 Continua o salmo: “Ao rei digo as minhas obras”. Ainda é o Pai quem fala? Se o Pai ainda fala, investiguemos como entendê-lo, de acordo com a fé verdadeira e católica: “Ao rei digo as minhas obras”. Se pois, o Pai diz as suas obras a seu Filho, nosso rei, quais as obras que há de dizer, uma vez que todas as obras do Pai foram feitas pelo Filho? Ou talvez: “Ao rei digo as minhas obras”, porque “digo” significa a geração do Filho? Estou com receio de que os mais lentos não possam entender tudo; mesmo assim, vou dizer. Siga quem puder, para não suceder que fique sem saber quem pode entender, porque eu não disse. Lemos em outro salmo: “Deus falou uma só vez” (Sl 61,12). Tantas vezes ele falou pelos profetas, tantas vezes pelos apóstolos, e hoje fala por seus santos, e no entanto diz o salmista: “Deus falou uma só vez”. Como falou uma só vez, a não ser porque proferiu um só Verbo? Acima entendemos que a palavra: “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa” refere-se à geração do Filho; parece-me que a frase seguinte é uma repetição, de maneira que: “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa” é reiterado por: “Digo”. Qual o sentido de : “Digo”? Profiro uma palavra. E de onde tira Deus esta palavra, senão de seu coração, de seu íntimo? Não dizes senão o que tiras de teu coração; a tua palavra, que soa e passa, não é retirada de outra fonte; e tu te admiras de que Deus assim fale? Mas a palavra de Deus é eterna. Tu dizes algo agora, mas pouco antes estavas calado. Ou agora ainda não proferes a palavra; ao começares a pronunciá-la, rompes o silêncio, e geras um verbo que antes não existia. Não é deste modo que Deus gerou o Verbo. A prolação de Deus é sem começo nem fim, todavia profere uma só Palavra. Se esta passasse, poderia proferir outra. Ao invés, como permanece quem diz e o que é dito; é proferido uma só vez e não termina; e está única vez não tem início, nem repetição, porque não passa o que é dito uma só vez. Por conseguinte, identifica-se: “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa” com a expressão: “Ao rei digo as minhas obras”. Por que razão: “digo as minhas obras”? Porque no próprio Verbo se acham todas as obras de Deus. Tudo o que Deus havia de fazer na criação, já estava no Verbo; e não existiria na realidade, se não estivesse no Verbo, como também no teu caso não existiria o edifício, se não estivesse em teu plano. Assim se encontra no evangelho: “O que foi feito nele era vida” (Jo 1,3.4). Era, portanto, o que foi feito, mas no Verbo; e todas as obras de Deus estavam nele, antes de existirem. O Verbo, contudo, era, e este verbo era Deus, e estava junto de Deus, e era filho de Deus, com o Pai era um só Deus. “Ao rei digo as minhas obras”. Ouça o Verbo a falar quem o entende; e veja o Verbo eterno com o Pai. No Verbo existem mesmo as coisas futuras, nele estão presentes mesmo as coisas passadas. Tais são as obras de Deus no Verbo, enquanto Verbo, enquanto Unigênito, enquanto Verbo de Deus.

6 O que segue? “Minha língua é como o cálamo de um escriba, a escrever velozmente”. Que semelhança, meus irmãos, que semelhança tem a língua de Deus com o cálamo de um escriba? Que semelhança tem a pedra com Cristo? Em que se assemelha o cordeiro ao Salvador? O que tem que ver o leão com a força do Unigênito? (cf. 1Cor 10,4; Jo 1,29; Ap 5,5). No entanto, usam-se tais expressões; e se não fossem usadas, de nenhum modo por meio dessas coisas visíveis estaríamos informados sobre as invisíveis. Assim também não rejeitemos a humilde comparação deste cálamo, nem a confrontemos com a excelência do Verbo. Pergunto, pois, por que disse que sua língua é como o cálamo de um escriba a escrever velozmente? Por mais rápido que seja este escriba, não tem comparação com aquela velocidade referida em outro salmo: “Veloz corre a sua palavra” (Sl 147,15). Mas, a meu ver, à proporção do que ousa uma inteligência humana, aplica-se talvez à pessoa do Pai a expressão: “Minha língua é como o cálamo de um escriba”. O que a boca profere, soa e passa, mas o que se escreve permanece. Como Deus profere o verbo palavra que não soa e passa, mas a diz para permanecer, Deus preferiu compará-la a um escrita e não a um som. O acréscimo: “a escrever velozmente” incita a mente a entender. Mas não se detenha preguiçosa, olhando os copistas, ou observando quaisquer escribas velozes; se der atenção a isto, ficará aí. Pense velozmente na palavra: “velozmente”, e verifique o motivo de ter sido dito: “velozmente”. A velocidade de Deus é tal que nada existe de mais veloz. Ao se escrever, traçase letra por letra, sílaba por síbala, palavra por palavra; não se passa à segunda antes de gravar a primeira. Em Deus, porém, nada de mais veloz, porque não há muitas palavras, nem se omite palavra, mas tudo se encerra numa só.

7 3Eis aí o Verbo assim proferido, eterno, coeterno ao eterno; virá como esposo. “Muito belo, acima dos filhos dos homens. Acima dos filhos dos homens”. Por que não acima dos anjos? O que quer dizer: “Acima dos filhos dos homens”, senão que ele é homem? Disse: “Acima dos filhos dos homens, muito belo”, para que não se pense que Cristo é um homem qualquer. É homem acima dos filhos dos homens; é também entre os filhos dos homens, acima deles; ainda dentre os filhos dos homens, acima deles. “Pairou a graça nos teus lábios. Porque a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,17). “Pairou a graça nos teus lábios”. Com razão, veio em meu socorro, porque me deleito “na lei de Deus segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de mim! Quem libertará deste corpo de morte? A graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso (Rm 7,22-25). Pairou a graça nos teus lábios”. Ele veio até nós com a palavra da graça, com o ósculo da graça. Que de mais suave do que esta graça? A quem pertence esta graça? “Felizes aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados” (Sl 31,1). Se ele viesse como juiz severo e não pairasse tal graça em seus lábios, quem poderia esperar salvação? Quem não temeria receber o que é devido ao pecador? Ele veio com a graça. Não exigiu o que era devido e solveu aquilo que ele mesmo não devia. O inocente era devedor da morte? E a ti pecador, o que era devido a não ser castigo? Ele perdoou o teu débito, e pagou o que não devia. Grande graça! Por que graça? Porque gratuita. Por conseguinte, podes dar graças, mas não retribuir; é impossível. O salmista procurava como retribuir e disse: “Com que retribuirei ao Senhor por tudo com que me retribuiu?” De certo modo encontrou: “Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” (Sl 115,12.13). Retribuis-lhe, tomando o cálice da salvação e invocando o nome do Senhor? Quem te deu o cálice da salvação? Ele permaneceu em ação de graças; mas não teve que retribuir. Encontra alguma coisa para dar a Deus que não tenhas recebido dele; e retribuirás a sua graça. Mas acautela-te. Podes encontrar algo que não tenhas recebido dele, quando procurares: o teu pecado. Este, certamente, não recebeste dele, mas também não deves dar-lhe. Isto foi o que os judeus lhe deram. Retribuíram o bem com o mal. Dele receberam a chuva, mas não deram fruto e sim espinhos dolorosos. Por conseguinte, qualquer coisa que quiseres dar a Deus do que é teu, chegarás à conclusão de que só de Deus o recebeste. Esta é a graça de Deus que paira em teus lábios. Ele te fez e gratuitamente. Não existia a quem dar a graça, antes que criasse. Estavas perdido, e ele te procurou; e tendo te encontrado te chamou novamente. Não imputou os atos passados, e prometeu bens futuros. Verdadeiramente, “pairou a graça em seus lábios”.

8 “Por isso Deus te abençoou para sempre”. É difícil de entender que se atribuam ao Pai as palavras: “Por isso Deus te abençoou para sempre”. Parecem mais adequadas à pessoa do profeta. As mudanças repentinas de pessoa, e inteiramente de improviso, encontram-se nas Sagradas Escrituras; para um bom observador, elas estão mesmo cheias disso. “Senhor, livra a minha alma de lábios iníquos e de língua enganadora”. E imediatamente depois: “Qual será a tua paga, o teu castigo, ó língua enganadora?” Antes era uma pessoa, e agora outra. Lá de um suplicante, aqui de alguém que socorre. “Aguçadas setas de poderosos, com carvões devoradores”. Uma pessoa pergunta: “Qual será a tua paga, o teu castigo?” e nos versículos seguintes, já é outra: “Ai de mim! porque minha peregrinação muito se prolongou” (Sl 119,2-5). Em poucos versículos tão frequente mudança de pessoas exige atenção. Não se exprime o lugar em que muda. Não se diz: Aqui fala um homem, aqui é Deus quem fala. Mas pelas próprias palavras se entende o que é referente a um homem, e o que pertence a Deus. Um homem, portanto, e dizia: “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa. Ao rei digo as minhas obras”. Era um homem que falava, aquele que escreveu o salmo; mas falava em lugar de Deus. Começa a dizer em sua própria pessoa: “Por isso Deus te abençoou para sempre”. Pois, Deus havia dito: “Pairou a graça nos teus lábios”, àquele que ele fizera muito belo, acima dos filhos dos homens, sendo também homem a quem ele colocara como Deus acima de todas as coisas; o eterno fala coeterno. O profeta, portanto, encheu-se de gáudio inefável e atento ao que Deus Pai revelara a respeito do Filho ao homem, pode proferir estas palavras, em lugar de Deus: “Por isso Deus te abençoou para sempre”. Por quê? Por causa da graça. A que se refere aquela graça? Ao reino dos céus. No primeiro Testamento Deus prometera a terra. Um foi o prêmio ou a promessa feita aos que estavam sob a lei, e outra aos que viviam sob a graça. A terra dos cananeus era destinada aos judeus, que viviam sob a Lei, e o reino dos céus aos cristãos que vivem sob a graça. Por conseguinte, o reino, aquela terra pertencente aos que estavam sob a Lei, passou; o reino dos céus, destinado aos que vivem sob a graça, não passa. Por isso, “Deus te abençoou”, não por um tempo, mas “para sempre”.

9 Não faltaram também os que preferiam atribuir todas as palavras acima ao profeta. E a frase: “Prorrompeu de meu coração uma palavra boa”, entender-se-ia do profeta, a cantar um hino. Quem canta um hino a Deus, tira de seu coração uma palavra boa, como o que blasfema extrai de seu coração uma palavra má. E o acréscimo: “Ao rei digo as minhas obras” significaria que a obra mais elevada do homem consiste em louvar a Deus. Ele quer aprazer-te com sua beleza, e a ti compete louvá-lo com ação de graças. Se o louvor de Deus não for a tua obra, começarás a amar-te a ti mesmo, e serás do número daqueles dos quais diz o Apóstolo: “Os homens serão egoístas” (2Tm 3,2). Não tenhas complacência por ti mesmo, mas apraza-te aquele que te fez; assim te desagradará o que fizeste em ti. Seja tua obra o louvor de Deus, prorrompa de teu coração uma palavra boa. Dize, portanto, “ao rei as tuas obras”, porque foi o rei que fez com que dissesses, e deu-te o que oferecer. Devolve-lhe o que é seu. Não reclames a tua parte da herança para partir para longe, gastar tudo com meretrizes e apascentar porcos. Lembrai-vos do que está escrito no evangelho. Foi também a nosso respeito que foi dito: “Ele estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado!” (Lc 15,32).

10 “Minha língua é como o cálamo de um escriba a escrever velozmente”. Houve quem entendesse que o profeta disse o que escrevia, e por isso compara sua língua ao cálamo de um escriba. Com a expressão: “a escrever velozmente” quis dar a entender que escrevia o que bem depressa haveria de acontecer, de tal sorte que escrever velozmente significa escrever coisas iminentes, escrever o que não há de tardar. Deus mostrou o Cristo, sem tardança. Como decorreu depressa o que já se vê realizado! Lembra-te das gerações que te precederam. Parece que Adão foi feito ontem. Assim é do que lemos acerca do princípio; portanto, foram feitas velozmente. Velozmente virá também o dia do juízo. Antecipa-te à sua vinda veloz; virá velozmente. Mais velozmente deves mudar. Virá a presença do juiz, mas vê o que diz o profeta: “Com louvores saiamos ao seu encontro” (Sl 94,2). “Pairou a graça nos teus lábios, por isso Deus te abençoou para sempre”.

11 4“Cinge a espada a teu flanco, ó poderosíssimo”. Tua “espada”, tua palavra? Espada que prostrou os inimigos, espada a separar o filho do pai, a filha da mãe, a nora da sogra. No evangelho lemos o seguinte: “Não vim trazer paz, mas espada”. E: “Numa casa com cinco pessoas, estarão divididas três contra duas e duas contra três, isto é, filho contra pai, filha contra mãe, nora contra sogra” (Mt 10,34-35; Lc 12,51-53). Quem trouxe esta divisão pela espada, a não ser Cristo? De fato, irmãos, vemos isto todos os dias. Um jovem quer servir a Deus e isto desagrada ao pai; ficam divididos. O pai promete herança terrestre, mas ele ama a celeste. Um promete uma coisa, enquanto o segundo escolhe outra. Não considere o pai esta ação como injúria. É somente Deus que é preferido a ele; e no entanto briga com o filho que quer servir a Deus. Mas o gládio espiritual tem mais força para separar do que o laço do sangue para unir. Sucede o mesmo com a filha contra a mãe, e muito mais a nora contra a sogra. Pois, às vezes encontram-se numa mesma casa a nora e a sogra, uma herética e a outra católica. Se este gládio age ali com força, não há perigo de se rebatizar. Uma filha pode estar contra a mãe e não o pode a nora contra a sogra?

12 Isto acontece, em geral, também no gênero humano: o filho contra o pai. Outrora éramos filhos do diabo. Aos que ainda éramos infiéis, foi dito: “Vós sois do diabo, vosso pai” (Jo 8,44). Donde provém nossa infidelidade, a não ser do diabo, nosso pai? Não que ele nos tenha criado, mas porque nós o imitamos. Assim está logo o filho contra o pai, como vereis. Apareceu aquele gládio. Renuncia-se ao diabo. Encontra-se outro pai, encontra-se outra mãe. Ele, apresentando-se para ser imitado, gerava para a perdição. Os dois progenitores que encontramos, geram para a vida eterna. O filho contra o pai. A filha contra a mãe. A multidão dos judeus que acreditou separou-se da Sinagoga. Nora contra sogra. A turba dos gentios que se aproxima chama-se nora, porque Cristo, seu esposo, é filho da Sinagoga. De onde nasceu o Filho de Deus segundo a carne? Da Sinagoga. Ele deixou pai e mãe e uniu-se a sua esposa, a fim de serem dois numa só carne (cf Gn 2,24). Isto não é conjetura nossa, mas afirmação do Apóstolo: “É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja” (Ef 5,32). De certa maneira, ele deixou o pai; não o fez inteiramente, para uma separação, mas a fim de assumir a carne humana. Como abandonou? “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo” (Fl 2,6). E como foi que deixou igualmente a mãe? Deixou o povo judaico, a Sinagoga observante dos antigos sacramentos. Constitui idêntica figura a pergunta: “Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?” (Mt 12,48). Cristo ensinava no interior, enquanto eles permaneciam de fora. Vede se agora ainda não procedem assim os judeus. Cristo ensina na Igreja e eles ficam de fora. Que é uma sogra? A mãe do esposo. A mãe do esposo, nosso Senhor Jesus Cristo, é a Sinagoga. Por conseguinte, nora é a Igreja, proveniente dos gentios, que não adotou a circuncisão carnal e foi contra a sogra. “Cinge a espada a teu flanco”. Tratando destes assuntos, referíamo-nos ao poder deste gládio.

13 “Cinge a espada”, a tua palavra, “a teu flanco, ó poderosíssimo”, sobre a coxa carrega a espada. O que significa: “a teu flanco”, sobre a coxa? A carne. Daí vem a palavra: “O cetro não se afastará de Judá, nem o chefe de sua coxa” (Gn 49,10). O próprio Abraão, que recebera a promessa de uma descendência, na qual seriam abençoadas todas as gentes, ao enviar seu servo à procura, para seu filho, de uma esposa — que lhe daria a prole santa, em que seriam abençoadas todas as nações, crendo firmemente que daquele humilde germe viria a sua grandeza, isto é, o Filho de Deus, nascido dos filhos dos homens, e progênie de Abraão — não fez o servo, seu mensageiro, jurar assim? Disse ele: “Mete tua mão debaixo de minha coxa. Eu quero te fazer jurar”. Equivale a dizer: Coloca tua mão sobre o altar, sobre o evangelho, sobre o profeta, sobre um objeto santo. “Mete tua mão debaixo de minha coxa” (Gn 12,3; 24,2.3; 26,4). Tem confiança. Não te envergonhes, mas compreende a realidade. Por isso, “cinge a espada a teu flanco, poderosíssimo”. Poderosíssimo, mesmo quanto ao flanco, porque o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens (cf 1Cor 1,25). “Poderosíssimo”.

14 5“Com tua beleza e teu esplendor”. Recebe a justiça, que sempre te faz belo e esplêndido. “Avança, marcha vitorioso e reina”. Não é isto que vemos? Certamente já se realizou. Considera a terra inteira. Ele avançou, marchou vitorioso e reina. Todas as nações lhe estão sujeitas. Que se via então em espírito? O mesmo que agora se experimenta realmente. Quando estas palavras eram proferidas, Cristo ainda não reinava, ainda não avançara, ainda não marchava vitorioso. Era anunciado. Agora já se realizou, já temos tudo isso. Deus já nos deu muitas coisas; faltam poucas. “Avança, marcha vitorioso e reina”.

15 “Com a verdade, a mansidão e a justiça”. Foi devolvida a verdade, quando esta brotou da terra, e a justiça olhou do céu (cf Sl 84,12). Apresentou-se Cristo, diante da expectativa do gênero humano, a fim de que na descendência de Abraão fossem abençoadas todas as gentes. Foi pregado o evangelho; ele é a verdade. Que é a mansidão? Sofreram os mártires e daí veio para o reino de Deus entre os povos muito progresso e adiantamento. Os mártires sofriam, sem desânimo, sem resistência. Declaravam tudo e nada ocultavam. Prontos para tudo, sem recusar coisa alguma. Grande mansidão! O corpo de Cristo agiu conforme aprendeu de sua Cabeça. Ele foi o primeiro a ser levado como ovelha ao matadouro, e como cordeiro diante do tosquiador não abriu a sua boca; tão manso que, pendente da cruz, pedia: “Pai, perdoa-lhes; não sabem o que fazem” (Is 53,7; Lc 23,34). Por que: com justiça? Ele virá também para julgar e retribuir a cada um conforme suas obras (cf Rm 2,6). Disse a verdade, suportou a iniquidade, há de trazer a equidade. “A tua destra te conduzirá admiravelmente”. Somos conduzidos por sua destra, e ele mesmo pela sua. Ele é Deus e nós somos homens. Foi conduzido por sua destra, isto é, por seu poder. Efetivamente, possui o mesmo poder que o Pai, a mesma imortalidade; tem a divindade do Pai, a eternidade do Pai, a virtude do Pai. A sua destra o conduzirá admiravelmente, praticando ações divinas, padecendo sofrimentos humanos, e prostrando com sua bondade as maldades dos homens. Ainda está sendo conduzido, e aonde não chegou o conduzirá a sua direita. Guia-o aquilo mesmo que ele deu a seus santos. “A tua destra te conduzirá admiravelmente”.

16 6 “Tuas setas aguçadas”, poderosíssimas. São palavras a traspassarem os corações e a excitarem o amor. Daí dizer o Cântico dos cânticos: “Estou doente de amor” (Ct 2,5; 5,8). Diz que está ferida pelo amor, isto é, declara que ama, inflama-se, suspira pelo esposo, que a atingiu com a seta da palavra. “Tuas setas aguçadas, poderosíssimas”, que traspassam e atuam. “Aguçadas, poderosíssimas, farão cair os povos a teus pés”. Quais? Os que, feridos, caíram. Vemos povos submissos a Cristo, mas não a cair. Explica o salmista onde caem: “no coração”. Ali erguiam-se contra Cristo, e é ali que caem perante Cristo. Saulo blasfemava contra Cristo; estava ereto. Suplica a Cristo; caiu, ficou prostrado. Foi morto o inimigo de Cristo para que vivesse o discípulo de Cristo. Do céu partiu a seta, Saulo foi ferido no coração. Era ainda Saulo, não se convertera em Paulo. Ainda ereto, não fora prostrado. Recebeu a seta no coração e caiu. Não se prostrou com a face por terra quando caiu, e sim quando disse: “Que devo fazer, Senhor?” (At 22,10). Ias à procura dos cristãos para prendê-los e arrastá-los ao suplício; e agora perguntas a Cristo: “Que devo fazer?”. Ó seta aguçada, poderosíssima, que atingiu e derrubou Saulo, para se tornar Paulo! Acontece aos povos o mesmo que a ele. Olhai as gentes, vede como estão sujeitas a Cristo. Portanto: “Farão cair os povos a teus pés. Atingirão o coração dos inimigos do rei”, a saber, o coração de teus inimigos. Denomina-se a si próprio rei, sabe que é rei. “Farão cair os povos a teus pés. Atingirão o coração dos inimigos do rei”. Eram inimigos. Atingidos por tuas setas, caíram diante de ti. De inimigos tornaram-se amigos; morreram os inimigos e vivem os amigos. Este o sentido do título: “Por aqueles que serão mudados”. Procuramos entender cada palavra, cada versículo; mas pesquisamos de sorte que ninguém duvide tratar-se de Cristo. “Farão cair os povos a teus pés. Atingirão o coração dos inimigos do rei”.

17 7“Teu trono, ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos”, porque Deus te abençoou para sempre, e pairou a graça em teus lábios. A sede do reino judaico era temporal, pertencente àqueles que estavam sob a Lei, não aos que estavam sob o regime da graça. Cristo veio libertar os que estavam sob a Lei e estabelecê-los sob a graça. “Teu trono permanece pelos séculos dos séculos”. Por que razão? Porque aquele primeiro trono do rei era temporal. Por que agora o trono permanece pelos séculos dos séculos? Porque é de Deus. “Teu trono, ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos”. Oh divindade na eternidade! Deus não poderia ter um trono temporal. “Teu trono, ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos. De retidão é teu cetro real”. É cetro de retidão, que dirige os homens. Eles eram curvos, distorcidos. Queriam reinar para si, amavam-se a si mesmos, compraziam-se em suas obras más; não submetiam sua vontade a Deus, mas queriam dobrar a vontade de Deus, segundo suas concupiscências. O pecador, o iníquo, muitas vezes, revolta-se contra Deus porque não chove; e não quer que Deus se irrite contra ele quando ele resvala. E quase todos os dias os homens se assentam para disputar contra Deus: Devia agir assim; isto não está bem feito. Tu sabes perfeitamente o que fazes, e ele não? Estás distorcido. Ele é reto. Como unir o torto ao reto? Não se ajustam. Se num pavimento liso colocas uma tábua curva, não se ajusta, não adere, não se adapta ao pavimento. O pavimento, de fato, é todo igual; mas o que é curvo não se adapta ao liso. A vontade de Deus, portanto, é certa, e a tua é curva. A dele te parece curva, porque não consegues te ajustar a ela. Corrige-te de acordo com ela, ao invés de querer entortá-la de conformidade contigo. Como não consegues entortá-la, é inútil esforçar-te por fazê-lo; ela é sempre reta. Queres ajustar-te a ele? Corrige-te. Será o seu cetro que te governará, cetro de retidão. Rei é aquele que rege. Não rege, se não corrige. Nosso rei é rei de homens retos. Como ele é sacerdote, pois nos santifica, também é rei que nos rege. Como está dito em outra passagem? “Com o santo, serás santo e com o inocente serás inóquo. Com o eleito, serás eleito e com o perverso serás adverso” (Sl 17,26.27). Deus não é perverso, mas os perversos assim o julgam. Se o bem te apraz, Deus é bom para ti. Mas se te desagrada, parece-te que Deus é mau. Deus se torna curvo para ti, pois assim te faz a tua curvatura, enquanto a retidão de Deus sempre permanece. Escuta o que diz outro salmo: “Como o Deus de Israel é bom para os retos de coração!” (Sl 72,1).

18 8“De retidão é teu cetro real. Amaste a justiça e odiaste a iniquidade”. Vê o cetro de retidão: “Amaste a justiça e odiaste a iniquidade”. Aproxima-te deste cetro. Cristo seja o teu rei. Este cetro te governe; não te esmigalhe. É cetro de ferro, inflexível. Como foi dito? “Hás de governálas com cetro de ferro e esmigalhá-las qual vaso de argila” (Sl 2,9). A uns governa e a outros esmigalha; governa os homens espirituais e esmigalha os carnais. Por conseguinte, aproximate deste cetro. Por que receias? Ele consiste inteiramente no seguinte: “Amaste a justiça e odiaste a iniquidade”. O que temos? Talvez fosses iníquo; ouves dizer que teu rei odeia a iniquidade e sentes temor. Mas há um recurso. O que ele odeia? A iniquidade; acaso te odeia? Mas, existe iniquidade em ti? Deus a odeia. Odeia também tu a maldade, e ambos odiareis uma só coisa. Tornar-te-ás amigo de Deus, se odeias o que ele odeia. E amarás o que ele ama. Desagrade-te em ti a maldade, e seja-te aprazível a sua criatura. Pois, és um homem iníquo. Proferi dois nomes; dois nomes: homem e iníquo. Nestes dois um se aplica à natureza e outro à culpa. Uma foi criada por Deus para ti; a outra é obra tua. Ama o que Deus criou, odeia o que fizeste, porque ele também o odeia. Vê como começas a te unir a ele, odiando o que ele odeia. Ele há de punir o pecado, porque seu cetro é de retidão. E se não punir o pecado? Ele não o pode fazer. O pecado deve ser punido. Se não devesse ser castigado, nem seria pecado. Previne-te. Não queres que ele castigue? Castiga-te tu mesmo. Por enquanto ele poupa, adia, retém a mão, prepara o arco, isto é, ameaça. Clamaria tanto que há de ferir, se quisesse ferir? Sustém a mão diante de teus pecados; não adies. Converte a ti mesmo, castigando-te por causa de teus pecados, porque eles não podem ficar impunes. Hão de ser punidos, ou por ti, ou por ele. Reconhece-os para que ele te perdoe. Presta atenção ao exemplo dado no salmo penitencial: “Desvia a tua face de meus pecados”. Por acaso pediu: Afasta-te de mim? Em outra passagem diz abertamente: “Não desvies de mim a tua face” (Sl 26,9). Portanto: “desvia a tua face de meus pecados”. Não olhes os meus pecados. Ver para Deus é dar atenção. Diz-se que o juiz dá atenção, isto é, aplica o espírito à causa; atende para castigar, porque é juiz. Assim também Deus é juiz. “Desvia a tua face de meus pecados” (Sl 50,11). Não desvies tu a face deles se queres que Deus deles desvie a sua face. Vê como aquele mesmo salmo propõe isto a Deus: “Reconheço o meu crime e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 50,5). Não quer que esteja diante de Deus aquilo que ele tem diante de si. “De retidão é teu cetro real”. Ninguém se lisonjeie demais, confiando na misericórdia de Deus; o seu cetro é de retidão. Então dizemos que Deus não é misericordioso? Quem é mais misericordioso do que ele que poupa tanto os pecadores, a ponto de não pensar mais no passado de todos os que se convertem? Ama-o, enquanto é misericordioso, mas acata igualmente o fato de que é veraz. A misericórdia não pode roubarlhe a justiça, nem a justiça tira-lhe a misericórdia. Enquanto isto, ele adia, mas tu não deves adiar, porque seu cetro real é cetro de retidão.

19 “Amaste a justiça e odiaste a iniquidade, por isso, ó Deus, te ungiu o teu Deus”. Ungiu-te para amares a justiça e odiares a iniquidade. E vê como ele se exprime: “Por isso, ó Deus, te ungiu o teu Deus”. Ó Deus, o teu Deus te ungiu. Deus é ungido por Deus. De fato, em latim, podia-se pensar que o nome é repetido, no mesmo caso; em grego, porém, é evidentíssima a distinção. Um interpela e outro é interpelado. “Deus te ungiu”. A ti, “ó Deus, te ungiu o teu Deus”, como se dissesse: Por isso ungiu-te a ti, ó Deus, o teu Deus. Assim deve-se tomar, assim se deve entender, assim é bem evidente em grego. Portanto, quem é Deus ungido por Deus? Digam-nos os judeus. Nossas Escrituras são comuns. Deus, ungido por Deus. Se ouves falar de ungido, entende que é Cristo. Pois, Cristo vem de crisma; o nome de Cristo vem de unção. Em outros reinos não se ungiam os reis e sacerdotes. Isso só se fazia no reino onde Cristo foi profetizado e ungido e de onde viria o nome de Cristo. Jamais em outra parte, absolutamente, em nenhuma nação, em nenhum reino. Deus, portanto, é ungido por Deus; com que óleo, senão um óleo espiritual. O óleo visível é um sinal. O óleo invisível existe no mistério, o óleo espiritual é interior. Deus é ungido para nós, é enviado a nós; e o próprio Deus a ser ungido era homem também. Mas era homem sem deixar de ser Deus. Era Deus e se dignou ser homem. Verdadeiro homem, verdadeiro Deus; em nada falaz, em nada falso, porque em toda a parte veraz, em toda a parte verdade. Deus, portanto, e homem; e Deus ungido porque homem-Deus, que é o Cristo.

20 Foi em figura disto que Jacó colocou uma pedra sob a cabeça e dormiu (cf Gn 28,11). O patriarca Jacó tinha posto uma pedra sob a cabeça. Estava dormindo, com a cabeça apoiada na pedra, e viu o céu aberto, uma escada que ia do céu à terra, e anjos a subirem e descerem. Depois, acordou, ungiu a pedra, e se afastou. A pedra representava Cristo para ele; por isso a ungiu. Vede como Cristo era anunciado. Qual o sentido daquela unção da pedra, principalmente para os patriarcas, que adoravam um só Deus? O feito constituía uma figura. Depois, ele se afastou dali. Não ungiu a pedra e voltou ali sempre para adorar e sacrificar. Exprimiu um mistério; não começou um sacrilégio. Vede qual é a pedra: “A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se a pedra angular” (Sl 117,22). Como Cristo é a Cabeça do homem, a pedra foi colocada no ângulo capital. Atenção ao grande mistério: Cristo é pedra, “pedra viva, rejeitada, é verdade, pelos homens, mas diante de Deus eleita e preciosa”, diz S. Pedro (1Pd 2,4). E a pedra estava sob a cabeça, porque a Cabeça do homem é Cristo (cf 1Cor 11,3). A pedra foi ungida, porque Cristo vem de crisma, unção. E por revelação de Cristo, vê-se uma escada da terra ao céu, ou do céu à terra, e anjos subindo e descendo. Veremos melhor seu significado ao relembrarmos o testamento evangélico do próprio Senhor (cf Gn 28,11.12; Jo 1,51). Sabeis que Jacó se chama também Israel. Ao lutar ele com o anjo e prevalecer, recebeu a bênção do vencido, e teve mudado seu nome, passando a chamar-se Israel (Gn 32,28). O povo de Israel também se prevaleceu contra Cristo, crucificando-o; no entanto, nos que acreditaram em Cristo, ele foi bendito por aquele sobre o qual havia prevalecido. Mas como muitos não acreditaram, daí a razão da coxeadura de Jacó. Bênção e claudicação. Bênção para os fiéis, pois sabemos que depois muitos daquele povo acreditaram. Coxeadura para aqueles que não creram. Como muitos não acreditaram e poucos creram, para que Jacó se tornasse coxo o anjo tocou o tendão de sua coxa. O que significa o tendão de sua coxa? A multidão do povo. Vede, portanto, aquela escada. O evangelho conta que o Senhor ao ver Natanael disse: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento” (Jo 1,47). O mesmo é dito de Jacó: “Jacó era um homem sem fingimento, morando sob tendas” (Gn 25,27). Lembrado disto, o Senhor vendo Natanael, homem sem fingimento, daquela nação e daquele povo, disse: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”. Chamou-o de israelita, em quem não havia fingimento, por causa de Jacó. “De onde me conheces?” perguntou-lhe Natanael. “Eu te vi, quando estavas sob a figueira” (Jo 1,47.48), respondeu-lhe o Senhor, isto é, quando estavas no meio daquele povo, sujeito à Lei, que o protegia, como sombra material, eu te vi. Qual o sentido da resposta: Ali eu te vi? Eu me compadeci de ti. Natanael recordou-se de que estivera de fato debaixo da figueira e ficou admirado porque pensava que ninguém o vira quando lá estava; disse: “Tu és o Filho de Deus, és o Rei de Israel”. Quem disse essas palavras? Aquele que ouvira ser ele verdadeiro israelita, em quem não havia fingimento. Respondeu o Senhor: “Crês, só porque te disse: Eu te vi sob a figueira? Verás coisas maiores do que estas”. Fala com Israel, com Jacó, com aquele que pusera uma pedra sob a cabeça. “Verás coisas maiores do que estas”. Quais? A pedra já estava sob sua cabeça. “Em verdade vos digo: Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem” (Jo 1,49.50.51). Subam e desçam os anjos de Deus por aquela escada. Faça-se isto na Igreja. Os anjos de Deus são núncios da verdade. Subam e vejam: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Desçam e vejam: “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,1.14). Subam e elevem os grandes; desçam e nutram os pequenos. Vede Paulo subindo: “Se nos deixamos arrebatar como para fora do bom senso, foi por causa de Deus”. Vede descendo: “Se somos sensatos, é por causa de vós” (2Cor 5,13). Vede-o a subir. “É realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos”. Vede-o a descer: “Dei-vos a beber leite, não alimento sólido” (1Cor 2,6 e 3,2). Assim acontece na Igreja: sobem e descem os anjos de Deus sobre o Filho do homem. No alto está o Filho do homem, para junto do qual sobem de coração, a saber, ele é a Cabeça; e em baixo está o Filho do homem, isto é, o corpo. Seus membros acham-se na terra, e a Cabeça no alto; sobe-se para junto da Cabeça, desce-se para junto dos membros. Cristo está ali, e Cristo acha-se aqui. Pois, se estivesse apenas no céu, e não na terra, como se explica a palavra: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9,4). Quem lhe foi molesto no céu? Ninguém. Nem os judeus, nem Saulo, nem o diabo tentador. Ninguém ali o molestava. Mas, como sucede no corpo humano, a língua grita porque o pé foi pisado.

21 “Amaste a justiça e odiaste a iniquidade, por isso, ó Deus, te ungiu o teu Deus”. Falamos de Deus, que foi ungido, isto é, de Cristo. Não é possível falar mais claramente o nome de Cristo do que dizer: Deus ungido. Como ele é “muito belo, acima dos filhos dos homens”, assim foi ungido “com o óleo da alegria, de preferência a seus companheiros”. Quais os seus companheiros? Os filhos dos homens, porque o próprio Filho do homem se fez partícipe da mortalidade deles, para que eles participassem de sua imortalidade.

22 9“Tuas vestes exalam perfume de mirra, aloés e cássia”. Bons odores exalam tuas vestes. Suas vestes são os seus santos, seus eleitos, toda a sua Igreja, que ele apresenta a si mesmo, sem mancha nem ruga (cf Ef 5,27). Lavou-a em seu sangue, para tirar a mácula; e estendeu-a na cruz para desfazer as rugas. Daí vem o bom odor, que vem representado pelos nomes de certos aromas. Ouve a Paulo, aquele mínimo, fímbria do manto que tocou a mulher que sofria de um fluxo de sangue e ficou curada (cf Mt 9,20). Escuta-o a dizer: “Somos o bom odor de Cristo em toda a parte, entre aqueles que se salvam e aqueles que se perdem” (2Cor 2,15). Não disse: Bom odor para aqueles que se salvam, e mau odor para os que se perdem; mas: “Somos o bom odor, entre aqueles que se salvam e aqueles que se perdem”. Que um homem se salve devido a um bom odor é provável e crível; mas qual a razão de se perder um homem por causa de um bom odor? Grande virtude, grande verdade! Embora não se entenda, assim é. Pois, para que saibas como é difícil de entender, logo acrescentou o Apóstolo: “E quem estaria à altura?” (2Cor 2,15). Quem compreende que possam morrer alguns devido a um bom odor? Todavia, direi alguma coisa, irmãos. Eis que o próprio Paulo pregava o evangelho; muitos o amavam, como pregador do evangelho e muitos o invejavam. Os que o amavam, salvaram-se pelo bom odor; os invejosos, perdiam-se com seu bom odor. No entanto, também para os que se perdiam não era mau cheiro, porém bom odor. Por esta razão era mais invejado, uma vez que nele prevalecia a graça cheia de bondade. Ninguém inveja um miserável. Ele era glorioso na pregação da palavra de Deus e vivia segundo a regra daquele cetro de retidão. Amavam-no os que nele amavam a Cristo, os que seguiam o bom odor. Amava o amigo de seu esposo a própria esposa, que diz no Cântico dos cânticos: “Correremos ao odor de teus perfumes” (Ct 1,3). Aqueles invejosos, porém, quanto mais viam-no na glória da pregação do evangelho e a sua vida íntegra, tanto mais se torciam de inveja, e morriam pelo bom odor.

23 10“Tuas vestes exalam perfume de mirra, aloés e cássia; das casas de marfim te deleitaram as filhas dos reis”. As filhas de reis deleitaram a Cristo das casas de marfim, das casas grandes, dos palácios reais, de qualquer uma dessas que quiseres. Queres tomar as casas de marfim no sentido espiritual? Entende as grandes casas, os grandes tabernáculos de Deus como sendo os corações dos santos, que são reis pelo domínio da carne, que controlam as multidões de afeições humanas, castigam o corpo e o reduzem à servidão, porque nisto o deleitam as filhas dos reis. Efetivamente todas as almas que nasceram através de sua pregação e evangelização são filhas de reis. As Igrejas, filhas dos apóstolos, são filhas de reis. Pois, Cristo é o “Rei dos reis” (Ap 19,16). Os apóstolos são os reis, acerca dos quais se disse: “Também vós vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19,28). Pregaram a palavra da verdade e geraram as Igrejas, não para si, mas para Cristo. A este mistério se refere o que foi escrito na Lei: “Quando dois irmãos moram juntos e um deles morre, o cunhado tomará a mulher de seu irmão, e suscitará uma descendência; não para si, mas para seu irmão” (Dt 25,5). Cristo disse: “Ide anunciar a meus irmãos” (Mt 28,10). E reza o salmo: “Anunciarei o teu nome a meus irmãos” (Sl 21,23). Cristo morreu, ressuscitou, subiu aos céus, ausentou-se corporalmente. Seus irmãos tomaram sua esposa, a fim de gerar filhos pela pregação do evangelho, não por si mesmos, mas por meio do evangelho, em vista do nome de seu irmão. Diz o Apóstolo: “Fui eu quem pelo evangelho vos gerou” (1Cor 4,15). Em consequência disso, os apóstolos, suscitando uma descendência a seu irmão, denominaram a todos os que geraram, não paulinos ou petrinos, mas cristãos. Vede se não é tal o sentido que se destaca nestes versículos. Ao falar o salmista de “casas de marfim”, referia-se a palácios amplos, belos, suaves, quais são os corações dos santos, e acrescentou: “Deles te deleitaram as filhas dos reis, rendendo honras”. “As filhas dos reis”, as filhas dos teus apóstolos; mas, “rendendo honras”, porque suscitaram eles uma prole a seu irmão. Por tal motivo, ao verificar Paulo que os filhos que ele suscitara a seu irmão se prevaleciam de seu nome, exclamou: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor” (1Cor 1,13)? Como se exprime a Lei? O Filho tenha o nome do defunto. Nasça para ele, tenha o seu nome. Paulo observa esta prescrição da Lei. Aos que queriam tomar seu nome, ele adverte: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor?” Voltai o olhar para o defunto: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor?” Como então será? Quando os geraste, impuseste-lhes o teu nome? Não. Pois, continua: “Ou fostes batizados em nome de Paulo” (1Cor 1,13)? “As filhas dos reis te deleitaram, rendendo honras”. Retende, guardai a recomendação: “rendendo honras”. Possuir a veste nupcial é isto: procurar a sua honra, a sua glória. Podeis também aplicar a expressão: “filhas dos reis” às cidades que acreditaram em Cristo, e foram fundadas pelos reis; e: “das casas de marfim”, aos ricos, soberbos, orgulhosos. “As filhas dos reis te deleitaram, rendendo honras”, porque não buscaram a honra de seus pais, e sim a tua honra. Que se me mostre em Roma, em honra de Rômulo, um templo tão grandioso quanto lá te aponto a memória de Pedro. Quem é honrado na lembrança de Pedro, senão aquele que morreu por nós? Somos cristãos, não petrinos. Embora gerados pelo irmão do defunto, temos o nome daquele que morreu. Nascidos através do primeiro, mas para o segundo. Eis que Roma, Cartago, mais e mais cidades são filhas dos reis. E deleitaram o rei, rendendo-lhe honra. E todos constituem uma só rainha.

24 Qual o cântico nupcial? Eis que no meio de cânticos de alegria avança a própria esposa. O esposo estava chegando, e era descrito. Para ele se voltara toda a nossa atenção. Avance agora também a rainha. “À tua direita assiste a rainha”. A que está à esquerda não é rainha. Também à esquerda haverá uma, à qual se dirá: “Ide para o fogo eterno”. À direita estará aquela que ouvirá: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34.41). “À tua direita assiste a rainha, em vestes recamadas de ouro, com ornatos variegados”. Em que consiste a veste desta rainha? É preciosa e variegada: os mistérios da doutrina, em várias línguas. Uma é a língua africana, outra a síria, outra a grega, outra a hebraica, e mais outras. Estas línguas constituem a variedade na veste da rainha. Como a variedade nas vestes chegam a uma unidade concorde, assim todas as línguas se relacionam com a fé única. Haja variedade na veste, mas não cissura. A variedade representa a diversidade das línguas e, a veste figura a unidade; o que seria o ouro nesta variedade? A sabedoria. Qualquer que seja a variedade das línguas, apregoa-se um só ouro; o ouro não é diverso, mas há variedade. Na verdade, todas as línguas pregam a mesma sabedoria, a mesma doutrina e a mesma disciplina. Variedade nas línguas, ouro nas sentenças.

25 11Dirige-se o profeta (de bom grado, canta) a esta rainha e a cada um de nós, contanto que reconheçamos onde estamos, e nos empenhemos em pertencer àquele corpo, permanecendo unidos pela fé e a esperança aos membros de Cristo. Ele nos fala, portanto: “Ouve, filha, vê”. Fala-lhe como um dos pais, porque são filhas dos reis. Embora fale o profeta, embora fale o Apóstolo, como a uma filha (Assim dizemos: nossos pais os profetas, nossos pais os apóstolos. E se os consideramos nossos pais, eles nos têm como filhos), fala também a única voz paterna à única filha: “Ouve, filha, vê”. Primeiro ouve e depois vê. Os apóstolos vieram a nós com o evangelho, pregaram-nos o que ainda não vemos. Acreditamos ouvindo, e crendo veremos, conforme diz o próprio esposo, através do profeta: “Um povo que eu não conhecia pôs-se a meu serviço. Logo que ouviu, obedeceu-me” (Sl 17,45). O que quer dizer: “Logo que ouviu”? Que não viu. Os judeus viram e o crucificaram. Os gentios não viram e acreditaram. Venha a rainha, do povo dos gentios, em vestes recamadas de ouro, com ornatos variegados; venha dentre os gentios, venha ornada de todas as línguas, na unidade da sabedoria. Seja-lhe dito: “Ouve, filha, vê”. Se não ouvires, não verás. Ouve para purificares o coração com a fé, como o Apóstolo disse nos Atos dos Apóstolos: “Purificou seus corações pela fé” (At 15,9). Ouvimos aquilo que devemos crer, antes de ver. Acreditando purifiquemos o coração, de sorte a podermos ver. Ouve para creres, purifica o coração pela fé. E quando tiver purificado o coração, o que verei? “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). “Ouve, filha, vê, e inclina teu ouvido”. Não basta ouvir; ouve humildemente: “Inclina teu ouvido; esquece o teu povo e a casa de teu pai”. Havia certo povo, e determinada casa de teu pai, onde nasceste: o povo de Babilônia, tendo o diabo como rei. Seja de onde for que vieram os pagãos, vieram do diabo, seu pai; mas renunciaram a seu pai, o diabo. “Esquece o teu povo e a casa de teu pai”. Ele te gerou disforme, pois te tornou pecadora; Cristo te regenera, faz-te bela, porque justifica a ímpia. “Esquece teu povo e a casa de teu pai”.

26 12“De tua beleza se encantará o rei”. Qual beleza, senão a que ele mesmo criou? “Encantou-se de tua beleza”. De que beleza? Da pecadora, da iníqua, da ímpia, qual era junto do diabo, seu pai, e no meio de seu povo? Não. Mas, a daquela da qual foi dito: “Quem é esta que sobe alvejada?” (Ct 8,5). Antes não era alva, mas depois se tornou branca. Se vossos pecados forem como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve (cf Is 1,18). “De tua beleza se encantou o rei”. Qual rei? “Ele é o Senhor teu Deus”. Já vês que deves deixar teu pai, e teu povo, e vir para junto deste rei, o teu Deus. Teu Deus é o teu rei. Teu rei é esposo. Tu te desposas a Deus, teu rei, por ele dotada, decorada, redimida, curada. Tudo o que tens para agradar-lhe foi ele que te deu.

27 13“E adorá-lo-ão as filhas de Tiro, com suas dádivas”. É a teu rei, o teu Deus, que “adorarão as filhas de Tiro, com suas dádivas. As filhas de Tiro”, as filhas dos gentios. Da parte ao todo. Tiro é uma terra vizinha daquele de onde partiu a profecia. Representava as nações que haveriam de acreditar em Cristo. De lá era a cananeia, que o Senhor a princípio chamou de cão. Para se saber de onde era, o evangelho assim narra: “Jesus retirou-se para a região de Tiro e de Sidônia. E eis que uma mulher cananeia, daquela região, veio gritando”, etc., conforme descrito nesta passagem. Anteriormente, junto de seu pai e no meio de seu povo, era cão, ladrando atrás deste rei; depois, acreditando nele, tornou-se bela. E o que mereceu ouvir? “Mulher, grande é a tua fé” (Mt 15,21-28)! “De tua beleza se encantou o rei. Adorá-lo-ão as filhas de Tiro, com suas dádivas”. Quais? O rei quer que elas se aproximem com dádivas, e deseja encher seus tesouros; mas ele mesmo dá com que enchê-los, e por vosso intermédio. Ele diz: Venham e adorem com dádivas. O que significa: com dádivas? “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os destroem, e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai tesouros nos céus, onde nem os ladrões, nem a traça destroem. Pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração” (Mt 6,19-21). Vinde com dádivas: “Dai esmolas e tudo ficará puro para vós” (Lc 11,41). Vinde com dádivas para junto daquele que diz: “Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Os 6,6; Mt 9,13). Os judeus deviam apresentar-se àquele templo que era sombra do futuro com touros e carneiros, com bodes, e diversos outros animais aptos para o sacrifício. Com aquele sangue se fazia o que era uma figura de outra realidade. Agora já veio o sangue, que fora figurado por todos aqueles; veio o próprio rei, e ele quer dádivas. Quais? Esmolas. Ele há de julgar um dia, e há de remunerar a alguns. Dirá: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundos”. Por quê? “Eu tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Estive nu e me vestistes, era forasteiro e me recolhestes. Estive doente e preso e me visitastes”. São estas as dádivas com as quais adoram ao rei as filhas de Tiro; porque ao dizerem: “Quando foi que te vimos…?”, ele, que é do alto e da terra, conforme os anjos que sobem e descem, dirá: “Toda vez que o fizestes a um desses mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,34-40).

28 “Adorá-lo-ão as filhas de Tiro com suas dádivas”. Quais são as filhas de Tiro e como o adorarão com dádivas, quis dizer o salmista mais claramente: “Imploram teu favor os ricos do povo”. Estas filhas de Tiro que adoram, com dádivas, são os ricos do povo, aos quais fala o Apóstolo, amigo do esposo: “Aos ricos deste mundo, exorta-os que não sejam orgulhosos, nem ponham sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus vivo, que nos provê de tudo com abundância, para que nos alegremos; enriqueçam-se com boas obras, sejam pródigos, capazes de partilhar”. Adorem com dádivas, mas não as percam; ponham em segurança onde sempre as encontrem. “Estarão acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro a fim de obterem a verdadeira vida” (1Tm 6,17-19). Adorando, com dádivas, “imploram teu favor”. Vão à igreja, e lá dão esmolas. Não o façam do lado de fora, isto é, não fiquem de fora, mas deem na igreja. O rosto desta esposa e rainha será favorável aos que as derem. Foi por isso que os cristãos vendiam seus bens (cf At 4,54), e implorando o favor desta rainha, vinham com dádivas; e colocavam aos pés dos apóstolos os dons que traziam. O amor era ardente na Igreja. O favor da rainha era a Igreja, o favor desta rainha era o obséquio das filhas de Tiro, isto é, dos ricos que adoravam, com dádivas. “Imploram teu favor os ricos do povo”. E os que hão de implorar o favor, e aquela cujo rosto eles procurarão, constituem uma só esposa, uma só rainha, a mãe e os filhos simultaneamente pertencendo todos a Cristo, à Cabeça.

29 14.15Mas como estas obras e estas esmolas podem ser feitas no intuito de jactância diante dos homens, adverte o próprio Senhor: “Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles” (Mt 6,1). Como, porém, devem ser realizadas publicamente, por causa da face da esposa, diz: “Brilhem vossas obras diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16), isto é, não façais vossas obras publicamente para vossa glória, e sim para glória de Deus. E quem pode saber, diz alguém, se procuro a glória de Deus ou a minha? Pode-se verificar que dou ao pobre; mas quem vê com que intenção eu dou? Basta que Deus te veja; vê aquele que retribuirá. Ama o teu íntimo aquele que o vê. Ama interiormente; seja amado também interiormente aquele que fez o teu íntimo e a sua própria beleza. Não te deleite ser visto por olhos que veem o exterior e ser louvado. Dá atenção a como prossegue o salmo: “Toda a glória da filha do rei é interior”. No exterior, a veste é de ouro e variegada; mas aquele que amou a sua formosura, conhece sua beleza interior. Qual é ela? A da consciência. Ali Cristo vê, ama, fala, castiga, coroa. Seja, portanto, oculta a tua esmola, porque “toda a glória da filha do rei é interior, vestida com roupagens de franjas de ouro e multicolores”. A beleza é interior. As franjas de ouro representam a variedade das línguas, a beleza da doutrina. De que adiantam estas, se não houver a beleza interior?

30 “As virgens que a seguem serão conduzidas ao rei”. Verdadeiramente assim aconteceu. A Igreja acreditou, constituiu-se no meio de todas as gentes. Agora como desejam as virgens agradar àquele rei? Como são estimuladas? A Igreja as precede. “As virgens que a seguem serão conduzidas ao rei, suas companheiras te serão apresentadas”. As que foram conduzidas não são estranhas, mas companheiras, a ela pertencem. E como disse: “ao rei”, volta-se para ele o salmista e assim se exprime: a ti. “Suas companheiras te serão apresentadas”.

31 16“Levadas no meio do júbilo e exultação, ingressam no templo real”. Templo real é a própria Igreja. Como se constrói o templo? De homens que entram no templo. Quais são as pedras vivas, senão os fiéis de Deus? “Ingressam no templo real”. Há virgens fora do templo do rei, as monjas heréticas; são, de fato, virgens, mas que lhe adianta isso se forem conduzidas ao templo do rei? O templo do rei se acha na unidade; o templo do rei não é ruinoso, separado, dividido. A caridade é a juntura das pedras vivas. “Ingressam no templo real”.

32 17“Teus filhos tomaram o lugar de teus pais”. Nada de mais evidente. Prestai atenção ao próprio templo do rei, porque o salmista dele fala, tendo em vista a unidade difundida por toda a terra. As que quiseram ser virgens, não podem agradar ao esposo, se não forem conduzidas ao templo do rei. “Teus filhos tomaram o lugar de teus pais”. Os apóstolos te geraram; eles foram enviados, eles pregaram, são os pais. Mas, por acaso, podiam permanecer sempre fisicamente conosco? Embora um deles tenha dito: “O meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa” (Fl 1,23.24), ele assim falou, na verdade, mas por quanto tempo pôde ficar? Teria permanecido até hoje? Até amanhã? Com sua partida a Igreja ficou deserta? De modo algum. “Teus filhos tomaram o lugar de teus pais”. O que significa: “Teus filhos tomaram o lugar de teus pais”? Os pais, os apóstolos foram enviados. Em lugar deles nasceram teus filhos, que foram estabelecidos como bispos. De onde surgiram hoje os bispos, existentes em todo o mundo? A própria Igreja os denomina pais, aqueles que ela gerou, e estabeleceu nas sedes dos pais. Não te consideres, portanto, abandonada, porque não vês a Pedro, nem a Paulo, nem aqueles por meio dos quais nasceste. A paternidade se originou para ti de tua prole. “Teus filhos tomaram o lugar de teus pais. Tu os estabelecerás príncipes sobre toda a terra”. Vê como se dilatou grandemente o templo do rei; assim conheçam as virgens, não conduzidas ao templo do rei, que não tomam parte nestas núpcias. “Teus filhos tomaram o lugar de teus pais. Tu os estabelecerás príncipes sobre toda a terra”. Esta é a Igreja católica. Seus filhos foram estabelecidos príncipes sobre toda a terra; os filhos tomaram o lugar dos pais. Reconhecem-no os que foram cortados; venham à unidade, sejam conduzidos ao templo do rei. Deus colocou seu templo em toda a parte, consolidado sobre os fundamentos dos profetas e dos apóstolos. A Igreja gerou filhos, e estabeleceu-os em lugar de seus pais, como príncipes sobre toda a terra.

33 18“Lembrar-se-ão de teu nome através das gerações e os povos te louvarão”. Que adianta, louvar, mas fora do templo? Que utilidade há em rezar, mas não no monte? “Elevei ao Senhor a minha voz e ele me ouviu de seu monte santo” (Sl 3,5). De que monte? Daquele do qual está escrito: “Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte” (Mt 5,14). De que monte? Aquele que Daniel viu surgir de uma pequena pedra, e que esmagou todos os reinos da terra, enchendo-a toda inteira (cf Dn 2,35). Sobre ele adore quem quiser receber, peça ali quem quiser ser ouvido, confesse quem quiser ser perdoado. Por isso, “os povos te louvarão eternamente e pelos séculos dos séculos”. Efetivamente, na vida eterna não haverá gemidos dos pecadores; contudo, nos louvores divinos daquela superna e perpétua cidade não faltará a confissão de tamanha felicidade. A esta mesma cidade canta outro salmo: “Coisas gloriosas são ditas de ti, cidade de Deus” (Sl 86,3); de ti, esposa de Cristo, rainha, filha de rei, e esposa do rei. Seus príncipes lembraram-se de seu nome em todas as gerações das gerações, isto é, enquanto decorrem os séculos, que incluem muitas gerações. Eles praticam a caridade, em seu favor, a fim de que libertada deste século, reine com Deus eternamente. Por esta razão, os povos a louvarão eternamente; então, ali serão visíveis e manifestos os corações luminosos de todos em perfeita caridade, para que ela se conheça inteira e plenamente, enquanto na terra em muitas de suas partes ela se desconhece. Daí admoestar-nos o Apóstolo a nada julgarmos antes do tempo, até que venha o Senhor, que iluminará o que está oculto nas trevas, e manifestará os desígnios dos corações, e então cada um receberá de Deus o louvor que lhe for devido (cf 1Cor 4,5). A própria cidade santa de certo modo se louvará, uma vez que os povos que a constituem louvam-na eternamente, de sorte que tudo lhe será patente, uma vez que parte alguma do que há em si lhe estará oculto.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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