Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 31

I. COMENTÁRIO

1 1“Salmo a Davi. Da inteligência”. Por meio dela se compreende que o homem, confessando seus pecados, é libertado pela graça de Deus, e não pelo mérito das obras.

2 1-2“Felizes aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados”, foram esquecidos. “Feliz o homem a quem o Senhor não imputou pecado, e em cuja boca não existe dolo”. Em sua boca não ostenta justiça, porquanto sua consciência está cheia de pecados.

3 3“Porque calei, consumiram-se os meus ossos”. Não tendo confessado com a boca para a salvação (Rm 10,10), envelheci e minha firmeza se tornou fraqueza. “Enquanto eu clamava todos os dias”. Era ímpio e blasfemo, gritando contra Deus, defendendo e escusando, de certo modo, meus pecados.

4 4“Porque dia e noite pesava sobre mim a tua mão”; pela contínua aflição de teus castigos, “revolvia-me em minha dor, enquanto o espinho em mim era pungente”. Tornei-me infeliz, reconhecendo minha miséria, contrito por causa de uma consciência onerada.

5 5“(Diapsalma) Reconheci o meu delito e não dissimulei minha injustiça”, isto é, não ocultei minha injustiça. “Disse: confessarei contra mim mesmo ao Senhor a minha injustiça”. Disse: Confessarei ao Senhor a minha injustiça, contra mim mesmo, e não contra Deus, como no clamor da impiedade, quando me calei. “E perdoaste a impiedade de meu coração”, ouvindo a voz da confissão, no coração, ainda antes de ser proferida pela boca.

6 6“Por isso, todo santo há de te implorar, na ocasião oportuna”. Por causa desta impiedade do coração todo santo há de te implorar. Não se tornarão santos por seus próprios méritos, mas na ocasião oportuna, quer dizer, no tempo da vinda daquele que nos redimiu de nossos pecados. “Quando as águas torrenciais trasbordarem, jamais o atingirão”. Ninguém pense, contudo, que ao chegar repentinamente o fim, como nos dias de Noé, seja ainda tempo da confissão que aproxima de Deus.

7 7“Tu és o meu refúgio na tribulação que me envolveu”. Tu és o meu refúgio da angústia dos pecados, que apertam meu coração. “Preserva-me dos que me cercam, tu que és a minha alegria”. Em ti encontro meu regozijo. Preserva-me da tristeza que meus pecados me causam.

8 8(Diapsalma) Resposta de Deus: “Vou te dar entendimento e indicar o caminho a seguir”. Depois da confissão, vou te dar entendimento, para não te afastares do caminho em que ingressaste, a fim de que não procures ser dono de ti mesmo. “Fixarei em ti os meus olhos”. Consolidarei para contigo o meu amor.

9 9“Não sejais como o cavalo e o mulo, sem inteligência”, e por conseguinte querem governar a si mesmos. E prossegue o profeta: “Cujas mandíbulas se prendem com freio e cabresto”. Faze-lhe, portanto, ó Deus, o que se faz ao cavalo e ao mulo; por meio de castigos, força-os a seguir a direção que lhes imprimes, pois, “de outro modo, de ti não se aproximam”.

10 10“Muitos são os sofrimentos do pecador”. É muito castigado quem não confessa seus pecados e quer guiar-se por si mesmo. “Mas os que esperam no Senhor se veem cercados de misericórdia”. A misericórdia cercará o que confia no Senhor e a ele se submete.

11 11“Alegrai-vos no Senhor e exultai, ó justos”. Alegrai-vos e exultai, ó justos, não em vós mesmos, mas no Senhor. “E gloriai-vos, todos vós, retos de coração”. Gloriai-vos nele todos os que compreendestes que é reto submeter-vos a ele. Então, sereis preferidos aos demais.

II. SERMÃO AO POVO (Proferido numa quinta-feira, na basílica reconstruída)

1 Empreendi falar, diante de V. Caridade, apesar de minha incapacidade, sobre o salmo da graça de Deus e de nossa justificação, sem méritos precedentes nossos, mas por misericórdia antecedente do Senhor nosso Deus. Foi muito recomendado pela boca do Apóstolo, conforme também a precedente leitura o destacou. Em consequência disto, primeiro recomendo às vossas orações a minha fraqueza, para que, segundo diz o Apóstolo, “quando eu abrir os meus lábios, me seja dada a palavra” (Ef 6,19), possa falar-vos de modo que não me seja perigoso e vos seja de proveito. O ânimo do homem é vacilante, e hesita entre a a confissão de sua fraqueza e a audácia da presunção. Não raro é sacudido para cá e para lá; é impelido de tal sorte que de qualquer lado aonde cair, encontra um precipício. Se, por exemplo, for indulgente totalmente à própria fraqueza, e disser que Deus perdoa a todos os pecadores, por misericórdia, mesmo se perseverarem nos pecados, contanto que creiam que Deus os livra, e no fim, nenhum dos iníquos há de se perder; quer dizer, não se perderá nenhum dos que dizem a si mesmos: Seja o que for que eu faça, os crimes e maldades que mancharem, peque quanto quiser, Deus me livrará em sua misericórdia, porque nele acreditei. Quem, portanto, diz que nenhum destes se perde, inclina-se por um pensamento errôneo à impunidade dos pecados. Aquele Deus justo, de quem se canta a misericórdia e o juízo (Sl 100,1), não só a misericórdia mas também o juízo, vê-se diante deste homem que falsamente presume de si e abusa da misericórdia de Deus, para a própria perdição, e necessariamente o condenará. Tal opinião, portanto, arrasta o homem para o abismo. Alguém, pode então atemorizado, chegar contudo a certa audácia presunçosa, presumindo de suas forças e de sua justiça, e faz o propósito de cumprir a justiça sem tropeços e realizar todas as prescrições da lei sem escorregar, julgando poder controlar sua maneira de viver, sem jamais cair, jamais desfalecer, jamais titubear, nunca perder a visão. Atribui tudo isso a si mesmo, ao arbítrio de sua vontade. Mesmo se praticar tudo o que parece justo aos olhos dos homens, de sorte a nada se achar em sua vida que possa ser criticado pelos homens, no entanto Deus já condena a própria presunção e orgulhosa jactância. O que acontecerá se o homem se justificar e presumir de sua justiça? Cai. Se considerando, pensando em sua fraqueza e presumindo da misericórdia de Deus, negligenciar purificar sua vida relativamente aos pecados e submergir no profundo abismo dos crimes, também este cai. Presumir da justiça é, de certo modo, o lado direito da questão; a suposição de impunidade dos pecados é como que o lado esquerdo. Ouçamos a voz de Deus que nos diz: “Não te desvies nem para a direita e nem para a esquerda” (Pr 4,27). Não pretendas chegar ao reino por meio de tua justiça, não presumas, para pecar, da misericórdia de Deus. O preceito divino te proíbe ambas as coisas. Fojes daquela altura, desta profundidade. Se sobes até lá, tu te precipitas; se escorregas para esta, afundas. “Não te desvies nem para a direita e nem para a esquerda”. Repito em poucas palavras, para as gravardes todos vós na memória: Não presumas de tua justiça para alcançar o reino, não presumas da misericórdia de Deus para continuar a pecar. Se responderes: Então, o que devo fazer? Este salmo nô-lo ensina. Relendo-o, comentando-o, acredito que, com o auxílio da misericórdia do Senhor, haveremos de encontrar o caminho por onde já andamos, ou onde devemos nos manter. Cada qual ouça conforme lhe convém; de acordo com sua consciência, ou se arrependa e se corrija, ou se alegre de sua boa conduta. Se vir que se desviou, volte a andar pelo caminho reto; e se estiver no caminho certo, prossiga para chegar. Ninguém fique orgulhoso, fora do caminho, ninguém preguiçoso no caminho.

2 O apóstolo Paulo atestou que este salmo se refere à graça que nos constitui cristãos; por isso quisemos vos fosse lido este trecho. O Apóstolo, ao recomendar a justiça que vem da fé, opondo-se aos que se gloriam da justiça proveniente das obras, disse: “Que dizemos, pois, que alcançou Abraão, nosso progenitor segundo a carne? Ora, se Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar. Mas não perante Deus” (Rm 4,1.2). Livre-nos Deus de tal glória e ouçamos com preferência a palavra: “Aquele que se gloria, se glorie no Senhor” (1Cor 1,31). Muitos efetivamente se gloriam de suas obras e encontram-se muitos pagãos que não querem se tornar cristãos, porque supõem que é suficiente sua vida de homem honesto. É necessário viver honestamente, dizem eles. Por que Cristo há de me dar ordens? Para viver bem? Já vivo honestamente. Para que preciso de Cristo? Não mato, não roubo, não pratico a rapina, não desejo os bens alheios, não me mancho com adultério. Então, encontre-se em minha vida algo de repreensível, e o meu censor me faça cristão. Este se gloria, mas não diante de Deus. Não foi assim que sucedeu com nosso pai Abraão. Esta sentença da Escritura procura despertar nossa atenção para tal fato. Confessamos ter ele agradado a Deus; tal é nossa crença a respeito do santo patriarca. No intuito de dizermos e sabermos que ele se gloria em Deus, afirma o Apóstolo: É bem sabido e claro que Abraão teve sua glória diante de Deus. Ao invés, se Abraão foi justificado por causa das obras, teria glória, mas não diante de Deus. No entanto, ele teve glória junto de Deus; portanto, não foi justificado por causa das obras. Se Abraão não foi justificado por causa das obras, o que foi que o justificou? O Apóstolo continua, dizendo como foi: “O que diz a Escritura?” isto é, o que foi, segundo as Escrituras, que justificou Abraão? “Acreditou Abraão em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça” (Rm 4,3; Gn 15,6). Pela fé, portanto, foi justificado Abraão.

3 Quem já entendeu que há justificação pela fé, não pelas obras, note o sorvedouro de que falei: Vês, pois, que Abraão foi justificado, não pelas obras, mas pela fé. Então posso fazer o que quiser; apesar de não ter praticado boas obras, somente se acreditar em Deus, isso me será reputado em conta de justiça. Se alguém assim falar e decidir, cai e submerge; se ainda pondera e hesita, expõe-se a grande perigo. A Escritura de Deus, porém, bem interpretada, não somente livra o periclitante, mas ainda retira do abismo quem nele mergulhou. Respondo, por isso, numa espécie de réplica ao Apóstolo, dizendo acerca de Abraão o que se encontra também na epístola de outro apóstolo, o qual queria corrigir os que haviam entendido mal o apóstolo Paulo. Efetivamente Tiago, em sua epístola, impugnando os que presumiam da fé apenas, sem as boas obras, recomendou as obras do mesmo Abraão, cuja fé Paulo destaca. Mas, os apóstolos não estão se contradizendo. S. Tiago refere-se à obra notória a todos de Abraão, ao oferecer seu filho em sacrifício a Deus (Tg 2,21). Obra grandiosa, mas oriunda da fé. Aprovo o edifício em cima, mas vejo em baixo os alicerces da fé. Louvo o fruto da boa obra, mas reconheço como raiz a fé. Se Abraão agisse assim, deixando de lado a fé verdadeira, nada lhe adiantaria a obra, por melhor que fosse. Ainda mais. Se Abraão conservasse a fé, ao lhe ordenar Deus oferecesse seu filho em sacrifício, mas dissesse a si mesmo: Não faço, e no entanto acredito que Deus me livrará, mesmo enquanto desprezo suas ordens. A fé sem as obras estaria morta, e como raiz infrutífera ficaria estéril e seca.

4 E então? Não devemos antepor obra alguma a fé, isto é, não haveremos de dizer que antes de ter a fé ninguém tenha agido bem? As próprias obras, ditas antecedentes a fé, apesar de parecerem louváveis aos homens, são vãs. A meu ver são como grande resistência na corrida, e corrida veloz, mas fora do caminho. Ninguém, portanto, leve em conta suas boas obras anteriores à fé. Onde não havia fé, não existia obra boa. A intenção cria a boa obra, a fé dirige a intenção. Não atendas muito ao que o homem faz, mas ao que visa na operação, para onde dirige o vigor de ótima navegação. Imagina um homem que é ótimo comandante de um navio, mas perdeu o rumo; que adianta segurar a vela do mastro com firmeza, mover bem o navio, virar a proa contra as ondas, evitar que deem nos costados; tenha tanto domínio que leva o navio para onde quer, e de onde quer. Se for interrogado: Aonde vais? e disser: Não sei. Ou não disser: Não sei, mas disser: Vou para tal porto, no entanto, não se encaminha para o porto, mas precipita-se contra os escolhos. Quanto mais pensar que é ágil e eficiente no comando do navio, não será maior o perigo de governá-lo assim e não o conduzirá mais rapidamente ao naufrágio? Assim acontece também com aquele que corre velozmente, mas fora do caminho. Não seria melhor, mais tolerável que um fosse um pouco mais fraco, e dominasse o timão com labor e dificuldade, mantendo contudo a direção certa e devida? E ainda, aquele que caminhar mais devagar, com menor vigor, mas se conservar no caminho do que aquele que correr energicamente, mas fora dele? Ótimo seria quem se mantém no caminho, e anda bem; em segundo lugar, vem aquele que embora às vezes tropece um pouco, não erra inteiramente, nem pára, mas avança apesar de ser aos poucos. É de esperar que chegue ao fim almejado, embora um pouco mais tarde.

5 Abraão, portanto, irmãos, foi justificado pela fé; mas se as obras não precederam a fé, contudo a seguiram. Acaso, então, a tua fé será estéril? Se não és estéril, ela igualmente não é. Se acreditaste em alguma coisa má, também queimaste, com fogo de tua malícia, a raiz de tua fé. Conserva a fé quando te dispões a obrar. Mas, podes responder: O apóstolo Paulo não diz isto. Ao contrário. O apóstolo Paulo o afirma: “A fé que opera pela caridade” (Gl 5,6) e em outra passagem: “A caridade é a plenitude da Lei” (Rm 13,10), e ainda: “Pois toda a Lei está contida numa só palavra: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14). Vê se não quer que obres aquele que ordena: “Não cometerás adultério, não matarás, não cobiçarás, e todos os outros preceitos se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da Lei” (Rm 13,9.10). Acaso a caridade permite que faças mal àquele a quem amas? Talvez apenas não lhe faças mal; tampouco lhe fazes o bem. A caridade, então, te permite não prestar o serviço que podes àquele a quem amas? Não é a caridade que ora até pelos inimigos? Por conseguinte, há de abandonar o amigo quem deseja o bem ao inimigo? Portanto, se a fé não está acompanhada da caridade, estará também desprovida de obras. Para não excogitares muito acerca das obras da fé, acrescenta-lhes a esperança e a caridade e não ponderes o que hás de fazer. A caridade não pode ficar ociosa. Só o amor leva alguns até a praticar o mal. Mostra-me um amor ocioso, inoperante. Não é o amor que pratica todas as maldades, os adultérios, os crimes, os homícidios, a luxúria? Purifica, portanto, teu amor. Desloca a água do esgoto para o horto. A atração que sentia para o mundo, orienta-se para o artífice do mundo. Acaso vos é dito: Não ameis coisa alguma? Longe disso. Sereis preguiçosos, mortos, detestáveis, infelizes, se nada amais. Amai. Vede, contudo, o que amar. O amor de Deus, o amor ao próximo chama-se caridade; o amor do mundo, o amor deste século denomina-se cobiça. Refreie-se a cobiça, excite-se a caridade. A própria caridade daquele que pratica o bem lhe confere a esperança, proveniente de uma boa consciência. Porque a boa consciência produz a esperança. Como a consciência onerada é toda desespero, assim a boa consciência é toda esperança. Diz o Apóstolo: Agora permanecem “fé, esperança, caridade”, estas três coisas (1Cor 13,13). Em outra passagem reaparecem as três, mas em vez de esperança achase: boa consciência. Diz o Apóstolo: “O fim do preceito”. O que siginifica: fim do preceito? É a perfeição do preceito, não seu termo. Dizer: O alimento acabou, não é o mesmo que declarar: A túnica que estava sendo tecida, está acabada. O alimento acaba para não existir mais; a túnica acabada é perfeita. E nos dois casos se diz: acabou-se. O Apóstolo não fala em fim do preceito, como se os preceitos terminassem, mas fim que os aperfeiçoa e consuma, sem consumi-los. É fim por causa daquelas três coisas: “O fim do preceito”, diz ele, “é a caridade que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia” (1Tm 1,5). Em vez de: esperança, fala de: boa consciência. Espera, portanto, o que possui uma boa consciência. A má consciência causa remorso, afasta-se da esperança, prevê apenas condenação. Tenha boa consciência quem quer esperar o reino; e para ter boa consciência, creia e trabalhe. Crer vem da fé, e as obras são oriundas da caridade. Na primeira passagem, o Apóstolo começou pela fé: “fé, esperança, caridade”. Na outra, começou pela caridade: “a caridade que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia”. Agora, nós começamos do meio: da consciência e da esperança. Quem quiser ter boa esperança, tenha boa consciência, e para ter boa consciência, creia e pratique boas obras. Do meio vamos ao início e ao fim: creia e opere. Crer refere-se à fé, e obrar, à caridade.

6 Como, pois, afirma o Apóstolo que o homem é justificado pela fé sem as obras (Rm 3,28), se em outro lugar diz: “A fé que opera pela caridade” (Gl 5,6)? Não vamos contrapor o apóstolo Tiago a Paulo, e sim o próprio Paulo a Paulo, dizendo-lhe: De certa maneira, tu nos permites pecar impunemente, ao dizeres: “Nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras” (Rm 3,28); e aqui afirmas: “A fé que opera pela caridade”. Como me sentirei seguro, se não tiver as obras? Aqui, a meu ver, nem a esperança, nem a mesma fé são boas, se eu não tiver agido por amor. Ouço a ti mesmo, ó Apóstolo. Certamente aqui pretendes recomendar-me a fé sem as obras. No entanto, a obra da fé é a caridade. A caridade não pode ficar ociosa, e se nada faz de mal, ao mesmo tempo pratica todo o bem possível. O que faz a caridade? “Afasta-te do mal e faze o bem” (Sl 36,37). É, por conseguinte, esta fé sem as obras que recomendas; e em outro trecho, dizes: “Ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar os montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria” (1Cor 13,2). Em vista disso, se a fé nada adianta sem a caridade, e a caridade, onde existe, necessariamente atua, a própria fé pela caridade opera. Como, pois, o homem se justificará pela fé sem as obras? Responderá o próprio Apóstolo: Eu te disse isto, ó homem, para não pareceres presumir de tuas obras, e ter recebido a graça da fé pelo mérito de tuas obras. Não presumas das obras praticadas antes de teres fé. Sabes que a fé te encontrou como pecador, mas a fé que te foi dada transformou-te em justo. Encontrou um ímpio para torná-lo justo. A “quem crê naquele que justifica o ímpio, é sua fé que é levada em conta de justiça” (Rm 4,5). Se o ímpio é justificado, de ímpio torna-se justo; se de um ímpio se faz um justo, quais são as obras dos ímpios? Glorie-se o ímpio de suas obras dizendo: Dou aos pobres, não roubo, não desejo a mulher do próximo, não mato, não defraudo, devolvo o depósito a mim confiado, sem testemunhas. Digo tudo isso. Pergunto se é pio ou ímpio. Responderá: Como sou ímpio, se faço tudo isto? Como aqueles, dos quais foi dito: “Serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito pelos séculos” (ib 1,25). Como és ímpio? E o que dizer se, de todas as boas obras esperas o que se deve esperar, mas não da parte daquele de quem se há de esperar; ou esperas o que não deve esperar, mesmo que seja daquele de quem se há de esperar a vida eterna? Se esperaste certa felicidade terrena por causa das boas obras, és ímpio. Não é esta a recompensa da fé. A fé é preciosa e a consideraste coisa vil. És, pois, ímpio, e essas tuas obras nada são. Se impeles os remos com os braços das boas obras e pensas que governas o navio de maneira excelente, corres ao encontro dos escolhos. E se esperas o que é de se esperar, a vida eterna, mas não da parte de Jesus Cristo, seu exclusivo doador, mas julgas poder chegar à vida eterna, através do exército dos céus, pelo sol e pela lua, pelas postestades do ar, do mar, e da terra e das estrelas? És ímpio. Acredita naquele que justifica o ímpio, a fim de que também tuas boas obras possam ser obras boas. Não as denomino boas enquanto não procederem de uma boa raiz. O que significa isto? Ou esperas do Deus eterno uma vida temporal, ou esperas do demônio a vida eterna; em ambos os casos és ímpio. Corrige tua fé, dirige-a, conserta o caminho. E se tens bons pés, já podes caminhar com segurança, correr, manter-te no caminho. Quanto melhor correres, com tanto maior facilidade chegarás. Mas, se talvez claudicares um pouco? Ao menos não te apartes do caminho; embora mais tarde, hás de chegar. Não pares, não voltes atrás, não te desvies.

7 Como, então? Quais são os bem-aventurados? Não são alguns nos quais Deus não encontrou pecados, pois achou-os em todos. Todos, de fato, “pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23). Se, portanto, em todos existem pecados, resta que não são felizes senão aqueles cujos pecados foram perdoados. O Apóstolo a isto se refere da seguinte maneira: “Acreditou Abraão em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça; ora, a quem faz um trabalho” (isto é, presume de suas obras, e diz que por seu mérito lhe foi dada a graça da fé), “o salário não é considerado como gratificação, mas como um débito” (Rm 4,3.4). O que significa senão que nossa recompensa se chama graça? Se é graça, é concedida gratuitamente. E o que quer dizer: concedida gratuitamente? Que nada recebe em troca. Nada fizeste de bom e te é dada a remissão dos pecados. Tuas obras são examinadas, e resulta que todas são más. Se Deus retribuísse com o que merecem aquelas obras, condenaria efetivamente. “O salário do pecado é a morte” (Rm 6,23). Qual o merecimento das más obras, senão a condenação? O que é devido às boas obras? O reino dos céus. Estavas entregue às más obras; se te for pago o que te é devido, hás de ser punido. Mas, o que aconteceu? Deus não te deu o castigo merecido; ao invés, deu a graça imerecida. Devia vingar-se, mas foi indulgente. Começas a ter fé, pela indulgência de Deus. A fé, tomando consigo a esperança e a caridade, começa a agir bem. Mas, nem assim te glories e orgulhes. Lembra-te de quem te conduziu ao caminho. Lembra-te de que estavas no erro, apesar dos pés sadios e velozes. Lembra-te de que embora estivesses desfalecido e caído, meio morto no caminho, foste colocado num jumento e levado à hospedaria (Lc 10,30). “A quem faz um trabalho, o salário não é considerado como gratificação, mas como um débito”. Se queres te tornar estranho à graça, gaba-te de teus méritos. Deus, porém, vê o que há em ti, e sabe o que e a quem és devedor. Diz o Apóstolo: “A quem, ao invés, não trabalha”. Imagina um ímpio, pecador, que não pratica boas obras. O que lhe acontece? No entanto, acredita naquele que justifica o ímpio. Pelo fato de não agir bem é ímpio. Apesar de parecer praticar boas obras, contudo, ele as pratica sem a fé, por isso, nem merecem ser denominadas boas obras. “A quem crê naquele que justifica o ímpio, é sua fé levada em conta de justiça, como, aliás, também Davi proclama a bem-aventurança do homem a quem Deus credita a justiça, independentemente das obras” (Rm 4,5.6). Mas, qual justiça? A da fé, não precedida, mas seguida das boas obras.

8 Prestai atenção. Se, ao contrário, entenderdes mal e vos lançardes naquela voragem de pecar impunemente, eu ficarei livre, como o próprio Apóstolo ficou livre, diante dos que o entendiam mal. De propósito entenderam mal, para não praticarem, em consequência, boas obras. Não sejais deste número, meus irmãos. Diz-se, em outro salmo, a respeito de um homem desta espécie, como se tratasse de um só: “Não quis entender para agir bem” (Sl 35,4). Não se disse: Não pôde entender. É preciso, portanto, que queirais entender para agir bem. Não vos faltará claro entendimento. Que quer dizer: claro entendimento? Ninguém se gabe de suas obras, antes de possuir a fé; ninguém seja preguiçoso relativamente às boas obras, depois de ter recebido a fé. Deus, efetivamente, concede perdão a todos os ímpios e justificaos pela fé.

9 1-2“Felizes aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados. Feliz o homem a quem o Senhor não imputou pecado e em cuja boca não existe dolo”. Começa o salmo, começa também o entendimento. Entendimento ou inteligência consiste em saberes que não te deves gabar de teus méritos, nem presumir da impunidade de teus pecados. Pois, o título do salmo é: “Salmo a Davi. Da inteligência”. Este salmo se denomina: “Da inteligência”. Em primeiro lugar, é inteligência saberes que és pecador. Em segundo, que ao começares a agir bem, pela caridade oriunda da fé, não o atribuas às tuas forças, mas à graça de Deus. Assim, não haverá dolo em teu coração, isto é, em tua boca interior; nem terás uma coisa nos lábios e outra no pensamento. Não serás daqueles fariseus, dos quais foi dito: “Sois semelhantes a sepulcros caiados; por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mt 23,27). Quem, portanto, é iníquo e se apresenta como justo, não é mentiroso? Não era assim Natanael, do qual diz o Senhor: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”. Por que não havia fingimento em Natanael? “Eu te vi”, diz o Senhor, “quando estavas sob a figueira” (1Jo 47.48). Estava debaixo da figueira, estava sujeito à condição mortal. Se estava sob a condição mortal, porque estava sujeito ao pecado inerente à propagação da carne, estava sob a figueira, a respeito da qual geme-se em outro salmo: “Eis que fui concebido em pecado” (Sl 50,78). Mas, viu-o aquele que veio trazendo a graça. O que quer dizer: Eu o vi? Compadeceu-se dele. Portanto, recomenda o homem sem fingimento, para nele recomendar a sua graça. “Eu te vi, quando estavas sob a figueira”. O que pode significar de importante a frase: “Eu te vi”, se não entenderes de outro modo o que foi dito? Qual a importância de ver um homem debaixo de uma figueira? Se Cristo não tivesse visto o gênero humano debaixo desta figueira, ou murcharíamos inteiramente, ou como aconteceu aos fariseus, que eram fraudulentos, isto é, se justificavam com palavras, mas suas obras eram más, ele só encontraria em nós folhas, e não frutos. Ao ver Cristo esta figueira, amaldiçoou-a, e ela secou. “Vejo”, disse ele, somente folhas, isto é, apenas palavras, sem frutos. Seque, para não ter nem folhas (cf Mt 21,19). Por que tira até as palavras? Uma árvore seca não têm nem folhas. Assim eram os judeus. Os fariseus eram aquela árvore: tinham palavras, mas não tinham obras. Por sentença do Senhor mereceram a aridez. Vejanos, pois, Cristo, debaixo da figueira. Veja em nossa carne também o fruto de boas obras, para não secarmos, em consequência de sua maldição. E como tudo é imputado a sua graça e não aos nossos méritos: “Felizes aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados”. Não se trata daqueles nos quais não se acham pecados, mas daqueles cujos pecados foram perdoados. Foram encobertos os pecados, tapados, apagados. Se Deus oculta os pecados, não quis percebê-los; se não quis perceber, não quis anotar, se não quis anotar, não quis punir, não quis reconhecer, prefere perdoar. “Felizes aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados”. Não penses que o salmista disse pecados encobertos como se ali estivessem, bem vivos. Por que disse que os pecados foram encobertos? Para que não fossem vistos. O que significa dizer que Deus vê os pecados, se não que pune os pecados. Qual a palavra que mostra que, para Deus, ver os pecados é o mesmo que puni-los? “Aparta tua face de meus pecados” (Sl 50,11). Não veja, pois, teus pecados, para te ver. Como te verá? Como Natanael, “Eu te vi, quando estavas sob a figueira”. A sombra da figueira não impediu os olhos da misericórdia de Deus.

10 “E em cuja boca não existe dolo”. De fato, os que não querem confessar os seus pecados, pelejam sem razão procurando defendê-los. E quanto mais se empenham em defender os próprios pecados, gabando-se de seus méritos, sem ver as próprias iniquidades, tanto mais diminui seu vigor e sua força. É forte quem tira sua fortaleza de Deus, não de si mesmo. A esse respeito disse o Apóstolo: “Três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeume: Basta-te a minha graça”. Disse: “a minha graça”, e não: a tua força. “Basta-te a minha graça, pois a força se aperfeiçoa na fraqueza”. Por este motivo, disse ele ainda em outro lugar: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,8.10). Por conseguinte, quem deseja ser forte, de certo modo presumindo de si, e gabando-se de seus méritos, sejam quais forem, assemelhar-se-á ao fariseu que se jactava com orgulho daquilo que ele afirmava ter recebido de Deus. Dizia: “Eu te dou graças”. Observai, meus irmãos, qual o gênero de soberba a que se refere Deus. Verdadeiramente, é a espécie que pode se insinuar no justo, tornar-se subreptícia até para o homem de bem. Dizia o fariseu: “Eu te dou graças”. Ao dizer: “Eu te dou graças”, confessava ter recebido de Deus o que tinha. “O que possuis que não tenhas recebido” (1Cor 4,7)? Portanto disse: “Eu te dou graças. Eu te dou graças, porque não sou como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros, e nem como este publicano”. Onde está sua soberba? Não vem dar graças a Deus por seus dons, mas porque se exalta acima de outro, por causa destes mesmos bens.

11 Atentos, irmãos. O evangelista primeiro registrou porque o Senhor começou a propor a parábola. Depois que Cristo perguntou: “Mas quando o Filho do homem deve voltar, encontrará a fé sobre a terra?” a fim de que não houvesse alguns hereges que, observando e pensando que o mundo quase todo sofrera uma queda, pois todos os hereges são em pequeno número e numa parte só da terra, se gabassem de que neles subsistira o que se perdera em todo o mundo, imediatamente após a palavra do Senhor: “Mas quando o Filho do homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?” o evangelista acrescentou: “Ele contou ainda esta parábola para alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro publicano” etc. como sabeis. Portanto, aquele fariseu dizia: “Eu te dou graças”. Mas, por que se diz que é soberbo? Porque desprezava os outros. Que provas apresentas disso? Suas próprias palavras. Como? O fariseu desprezou aquele que estava a distância, de quem, todavia, o Senhor esta perto, enquanto se confessava pecador. “O publicano mantinha-se a distância”, mas Deus não estava longe dele. Por que Deus não estava distante dele? Porque se diz em outra passagem: “O Senhor está perto dos que têm o coração contrito” (Sl 33,19). Vede se o publicano tinha o coração contrito e verificareis que o Senhor está próximo dos que têm o coração contrito. “O publicano, mantendo-se a distância, não ousava sequer levantar os olhos para o céu, mas batia no peito”. As batidas no peito representavam a contrição do coração. O que ele dizia, ao bater no peito? “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador”. E qual foi a sentença do Senhor? “Eu vos digo, que o publicano desceu para casa justificado, mais do que o outro”. Por quê? Isto é um juízo de Deus. Não sou como este publicano, “não sou como o resto dos homens, injustos, ladrões, adúlteros. Jejuo duas vezes por semana, pago dízimo de todos os meus rendimentos”. Ele não ousa levantar os olhos para o céu, examina a consciência, fica de longe, e é mais justificado do que aquele fariseu. Por quê? Peço-te, Senhor, explica-nos esta tua justiça, expõe-nos a equidade de teu direito. Deus expõe a regra de sua lei. Queres ouvi-la? “Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18,8.14).

12 Veja, pois, V. Caridade. Dissemos que o publicano não ousava levantar os olhos para o céu. Por que não olhava para o céu? Porque olhava para si mesmo. Examinava-se para, em primeiro lugar, desagradar a si mesmo e assim agradar a Deus. Tu, porém, te gabas, com dura cerviz. O Senhor diz ao soberbo: Não queres olhar-te? Eu te olho. Queres que eu não te observe? Observa-te a ti mesmo. Por conseguinte, o publicano não ousava levantar os olhos para o céu, porque olhava para si mesmo, punia a própria consciência. Era seu próprio juiz, para que intercedesse o Senhor. Ele se castigava para que Deus o libertasse; acusava-se para que o Senhor o defendesse. De tal sorte o defendeu, que proferiu sentença favorável: “O publicano desceu para casa justificado, mais do que o outro. Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”. Diz o Senhor: Ele olhou-se atentamente; eu não quis examinar. Ouvi seu pedido: “Aparta os teus olhos de meus pecados”. Quem é que assim falou, senão o mesmo que declarou: “Porque reconheço a minha iniquidade” (Sl 50,5.11)? No entanto, irmãos, também o fariseu era pecador. Não deixava de ser pecador por dizer: “Não sou como o resto dos homens, injustos, ladrões, adúlteros”; nem por jejuar duas vezes por semana, nem por pagar os dízimos. Se não tivesse outro pecado, a soberba já era grande crime; dizia, porém, tudo aquilo. Enfim, quem não tem pecado? “Quem pode dizer: Purifiquei meu coração, do meu pecado estou puro” (Pr 20,9)? Ele, portanto, tinha pecados; mas pervertido e sem saber aonde tinha vindo, era como se estivesse a tratar-se com um médico, e lhe mostrasse os órgãos sadios e escondesse as feridas. Deus ponha uma venda nas minhas feridas, não tu. Se, envergonhado, quiseres escondê-las, o médico não te curará. O médico enfaixe e cure; ele cobre com a pomada. Com o curativo do médico a ferida se cura, mas com a faixa do ferido só se esconde o ferimento. De quem escondes? Daquele que sabe todas as coisas.

13 3Por isso, irmãos, vede o que disse o salmista: “Porque calei, consumiram-se os meus ossos, enquanto eu clamava todos os dias”. Qual o sentido disso? Parece contraditório: “Porque calei, consumiram-se os ossos, enquanto eu clamava todos os dias”. Se clama, como calou? Calou uma coisa, não calou outra. Calou o que faria progredir, não calou o que servia para regredir; calou a confissão, clamou a presunção. “Calei”, disse ele, não confessei. Então devia falar. Calar os próprios méritos, clamar os seus pecados. Mas, agora perversamente calou os seus pecados e clamou os próprios méritos. O que lhe acontecerá? Seus ossos consumiram-se. Notai que, se clamasse os seus pecados e calasse os próprios méritos, renovar-se-iam os seus ossos, isto é, suas virtudes; seria robusto no Senhor, ele que em si mesmo, tornou-se fraco e seus ossos se consumiram. Permaneceu na velhice o que não quis, confessando, amar a renovação. Sabeis, irmãos, quais os que se renovam: “Felizes aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados”. O fariseu não quis fossem-lhe perdoados os pecados: aumentou-os, defendeu-os, vangloriou-se de seus méritos. Por conseguinte, seus ossos se consumiram porque omitiu a confissão. “Enquanto eu clamava todos os dias”. O que significa: “Enquanto eu clamava todos os dias?” Perseverar na defesa dos próprios pecados. E no entanto, vede como ele é, porque conhece-se a si mesmo. Logo virá a compreensão. Não considere coisa alguma fora de si, e desagradar-se-á a si mesmo, porque se conhecerá. Ouvi agora, para serdes curados.

14 4“Feliz o homem a quem o Senhor não imputou pecado e em cuja boca não existe dolo. Porque calei, consumiram-se os meus ossos, enquanto eu clamava todos os dias. Porque dia e noite pesava sobre mim a tua mão”. Qual o sentido da frase: Pesava sobre mim a tua mão? É questão importante, irmãos. Considerai a justa sentença dos dois, a do fariseu e a do publicano. O que foi dito do fariseu? Que foi humilhado. E do publicano? Que foi exaltado. Por que motivo aquele é humilhado? Porque se exaltou. E por que o publicano é exaltado? Porque se humilhou. Quando Deus quer humilhar quem se exalta, faz pesar sobre ele sua mão. Se não quis se humilhar pela confissão de seu pecado, foi humilhado pelo peso da mão de Deus. Enquanto ele suportava a pesada mão de Deus que o humilhava, quão leve foi a mão que exaltava! Em ambos os casos mostrou-se forte: forte para pesar, forte para reerguer.

15 4-5“Porque dia e noite pesava sobre mim a tua mão. Revolvia-me em minha dor, enquanto o espinho era pungente”. Devido ao peso de tua mão, à própria humilhação, revolvia-me em minha dor, tornei-me infeliz, o espinho se cravava em mim, minha consciência se compungia. O que aconteceu quando o espinho era pungente? Foi-lhe sensível a dor, descobriu sua fraqueza. Aquele que calara a confissão de seu pecado, de sorte que clamando em defesa de seu pecado, sua força se consumiu, isto é, seus ossos eram de um velho, o que fez agora que o espinho se cravou? “Reconheci o meu delito”. Já reconhece, pois. Se ele conhece, Deus perdoa. Ouve como continua. Vede como ele mesmo diz: “Reconheci o meu delito e não dissimulei minha injustiça”. Já disse acima: Não ocultes, e Deus encobre. “Felizes aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados”. Os que ocultam os pecados, descobrem-nos; o publicano descobriu-o para que fosse descoberto. “Não dissimulei minha injustiça”. O que quer dizer: “Não dissimulei?” Já calara por muito tempo. E agora? “Disse”. O oposto daquela taciturnidade é este “disse”. O que disseste? “Confessarei contra mim mesmo ao Senhor a minha injustiça, e perdoaste a impiedade de meu coração. Disse”. O que disseste? Ainda não disse, promete dizer; e Deus já perdoa. Atenção, irmãos. É importante. Declarou: confessarei. Não declarou: Confessei, e perdoaste, mas: “Confessarei” e “perdoaste”. Pelo fato de dizer: “confessarei” mostra que ainda não proferira com a boca, mas pronunciara com o coração. Enquanto diz: “Confessarei”, já confessou; por isso, “perdoaste a impiedade de meu coração”. A minha confissão, portanto ainda não chegara à boca, pois eu havia dito: “Confessarei contra mim mesmo”, todavia Deus ouviu a voz de meu coração. Minha voz ainda não chegará aos lábios, mas o ouvido de Deus já auscultara o coração. “Perdoaste a impiedade de meu coração”, porque eu disse: “Confessarei”.

16 Mas não bastara. Não declarou: “Confesarei minha injustiça ao Senhor”. Foi com razão que disse: “Confessarei contra mim mesmo”, e isto importa. Muitos confessam sua iniquidade, mas contra o próprio Senhor Deus. Quando se veem com pecados dizem: Deus assim quis. Se, pois, o homem diz: Não fiz; ou: Esta ação que condenas não é pecado, não pronuncia isto contra si, nem contra Deus. Se disser: Efetivamente agi assim, e é pecado, mas foi Deus quem quis; que fiz eu? Isto é pronunciar contra Deus o seu pecado. Talvez digais: Ninguém diz isto. Quem diz que Deus quis assim? Muitos dizem. E os que não afirmam isto, que diferença há quando dizem: O destino me fez isto, minhas estrelas me fizeram tal coisa? Assim, dão uma volta, para chegarem a Deus. Por um rodeio querem acusar a Deus, os que não querem de cheio vir aplacar a Deus, e declaram: A sorte me fez isto. O que é a sorte? Foram as minhas estrelas. O que são estrelas? Certamente estas que contemplamos no céu. E quem as criou? Deus. Quem as colocou em seu lugar? Deus. Vês, pois, que quiseste afirmar: Deus me fez pecar. Assim, ele é injusto e tu és justo, porque se ele não agisse assim tu não pecarias. Acaba com estas desculpas de teus pecados. Lembra-te das palavras do salmo: “Não inclines meu coração para palavras malignas, a fim de desculpar-me dos pecados, com aqueles que praticam a iniquidade”. Mas, há grandes homens que defendem seus pecados. São grandes os que contam os astros, que calculam o movimento das estrelas e os tempos, e dizem quando alguém pecará ou viverá bem, quando Marte tornará alguém homicida, e Vênus fará um adúltero. Parecem importantes, doutos, seres de eleição, neste mundo. Mas, o que diz o salmo? “Não inclines meu coração para as palavras malignas, com aqueles que praticam a iniquidade, e não terei comunicação com os seus escolhidos” (Sl 140,4). Denominam eles eleitos e doutos os enumeradores das estrelas, chamam de sábios aqueles que parecem ler nas mãos os vaticínios humanos, e leem nas estrelas os costumes dos homens. Deus me criou dotado de livre-arbítrio. Se pequei, fui eu que pequei, de modo que não somente confessarei minha iniquidade ao Senhor, mas confessarei contra mim mesmo, e não contra ele. “Eu disse, Senhor, tem piedade de mim”: assim clama o doente ao médico, “Eu disse”. Por que: “Eu disse?” Bastaria: “disse”. Acrescenta: “Eu”, enfaticamente. “Eu”, eu mesmo, não o destino, não a sorte, não o diabo. Não foi ele que me forçou, mas eu mesmo que consenti em sua persuasão. “Eu disse: Senhor, tem piedade de mim, cura a minha alma, porque pequei contra ti” (Sl 40,5). Igualmente aqui decidiu e propôs-se. “Disse: Confessarei contra mim mesmo ao Senhor a minha injustiça, e perdoaste a impiedade de meu coração”.

17 6“Por isso, todo santo há de te implorar na ocasião oportuna”. Em que ocasião? “Por causa disso”. Por causa de quê? Da impiedade. A fim de quê? Para obter a remissão dos pecados. “Por isso, todo santo há de te implorar na ocasião oportuna”. Todo santo há de te suplicar, porque perdoaste os pecados. Pois, se não perdoasses os pecados, não haveria santo para te suplicar. “Por isso, todo santo há de te implorar na ocasião oportuna”. Tempo oportuno será quando se manifestar o Novo Testamento, quando se manifestar a graça de Cristo. “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus seu Filho, nascido de mulher” (Gl 4,4.5), isto é, de uma jovem. Assim falavam os antigos, sem fazer distinções. “Nascido sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei”. De que os redimiria? Do diabo, da perdição, de seus pecados, daquele ao qual os homens haviam se vendido. “Para remir os que estavam sob a Lei”. Estavam sob a Lei, porque a Lei os oprimia. Sua condição os oprimia, convencendo-os de culpa, não salvando. De fato, a Lei proibia o mal; mas como eles não possuíam forças para justificar-se a si mesmos, deviam clamar ao Senhor, como clamava aquele que se achava cativo sob a lei do pecado: “Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de, morte” (Rm 7,23- 24)? Todos eles estavam sob a Lei; dentro da Lei. Lei deprimente, que convencia de pecado; efetivamente, a Lei revelou o pecado. Ela cravou o espinho, fez o coração se compungir, admoestou a que se reconhecesse cada um como réu, e clamasse a Deus por perdão. “Por isso, todo santo há de te implorar na ocasião oportuna”. Dizia, portanto, acerca da ocasião oportuna: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho”. Ainda diz o Apóstolo: “No tempo favorável, eu te ouvi. E no dia da salvação vim em teu auxílio”. E como o profeta fizera esta predição acerca de todos os cristãos, acrescentou o Apóstolo: “Eis agora o tempo favorável, eis agora o dia da salvação” (2Cor 6,2). “Por isso, todo santo há de te implorar na ocasião oportuna”.

18 “Quando as águas diluvianas transbordarem, jamais o atingirão”. A quem? A Deus. O salmista costuma mudar de pessoa, conforme fez no salmo: “Do Senhor vem a salvação. Sobre o teu povo, a tua bênção” (Sl 3,9). Não disse: “Do Senhor vem a salvação”. Sobre seu povo, a sua bênção. Ou então: Senhor, de ti vem a salvação. Sobre teu povo, a tua bênção, mas tendo começado assim: “Do Senhor vem a salvação”, não se dirige a ele, mas fala a respeito dele. Depois, volta-se para ele, dizendo: “Sobre o teu povo, a tua bênção”. O mesmo acontece com o presente salmo; ouvindo dizer primeiro: “a ti”, e em seguida: “a ele”, não penses tratar-se de outro. “Por isso, todo santo há de te implorar na ocasião oportuna. Quando as águas diluvianas transbordarem, jamais o atingirão”. O que significam as águas diluvianas? Os que nadam na abundância das águas, não se aproximam de Deus. O que é dilúvio de muitas águas? A multiplicidade das várias doutrinas. Atenção, irmãos. Muitas águas são as diversas doutrinas. A doutrina de Deus é uma só, suas águas não são muitas, mas uma só água, seja a do sacramento do batismo, seja a da doutrina salutar. Diz-se a respeito desta doutrina, que nos irriga, por obra do Espírito Santo: “Bebe a água da tua cisterna, a água que jorra do teu poço” (Pr 5,15). Os ímpios não têm acesso a estas fontes; ao invés, delas se aproximam os que acreditam naquele que justifica o ímpio (Rm 4,5), depois que foram justificados. Outras águas abundantes, muitas doutrinas mancham as almas dos homens, conforme diz acima. Uma doutrina diz: O destino fez-me isto. Outra doutrina: A sorte fez-me assim, foi o acaso. Se os homens fossem governados pelo acaso, não haveria providência. No entanto, esta também é objeto de doutrina. Um outro afirma: Existe um povo de adversários, de trevas, que se rebelou contra Deus e faz os homens pecarem. Neste transbordar de águas diluvianas, eles não se aproximarão de Deus. Qual é a água verdadeira, que mana da fonte mais profunda, do puro filão da verdade? Que água é esta, meus irmãos, senão a que ensina a louvar o Senhor? Que água, senão a que exorta: É bom confessar ao Senhor (Sl 91,2)? Que água, a não ser a que transmite esta palavra: “Confessarei contra mim mesmo ao Senhor a minha injustiça”, e ainda: “Eu disse: Senhor, tem piedade de mim, cura a minha alma, porque pequei contra ti?” Água da confissão dos pecados, água da humilhação do coração, água da vida da salvação, água da renúncia a si mesmo, que nada presume de si, nada orgulhosamente atribui a seu próprio poder. Tal água não se encontra em livro algum de escritores estranhos, em livros dos epicureus, dos estoicos, dos maniqueus, dos platônicos. Em todos eles se encontram ótimos preceitos sobre costumes e disciplina; contudo lá não se acha esta humildade. A corrente desta humildade mana de outra fonte: vem de Cristo. Essa estrada parte dele, que sendo excelso, veio humildemente. Que coisa diferente ensinou ao se humilhar, feito obediente até a morte, e morte de cruz (Fl 2,8)? O que ensinou, pagando o que não devia, para solver nosso débito? O que ensinou de diverso, ao ser batizado sem ter pecado, e ser crucificado sem ter culpa alguma? Ensinou outra coisa, a não ser esta humildade? Não foi sem razão que disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Com esta humildade é que alguém se aproxima de Deus, porque o Senhor está perto daqueles que têm o coração contrito (Sl 33,19). Quando transbordarem as águas diluvianas, os que se erguem contra Deus e ensinam soberbas impiedades, não se aproximam de Deus.

19 7Tu, porém, que foste justificado e estás no meio daquelas águas, o que farás? Por toda a parte, meus irmãos, mesmo quando confessamos os pecados, fazem ruído em torno de nós aquelas águas diluvianas. Não estamos submersos no dilúvio, mas estamos cercados dele. As águas pressionam, mas não oprimem, impelem-nos, mas não nos submergem. O que se há de fazer, então, no meio do dilúvio, avançado por este mundo? Acaso não se ouvem tais doutores, não se ouvem tais soberbos, ou não se sofre cotidianamente, no coração, perseguições? Como rezará, então, quem já está justificado e que presume de Deus, cercado de tantas águas? “Tu és o meu refúgio na tribulação que me envolveu”. Refugiem-se eles nos seus deuses, ou em seus demônios, ou em suas forças, ou nas escusas de seus pecados. Para mim, neste dilúvio não há refúgio senão em ti, diante da angústia que me cerca.

20 “Tu que és a minha alegria, preserva-me”. Se já exultas, porque desejas ser redimido? “Tu que és a minha alegria, preserva-me?” Ouço a palavra de alegria: “Minha alegria”. Ouço os gemidos: “Preserva-me”. Alegras-te e gemes. Sim, diz o salmista, alegro-me e gemo. Alegrome na esperança, gemo ainda na realidade. “Tu que és a minha alegria, preserva-me. Alegres na esperança”, diz o Apóstolo. Por conseguinte, é com razão que reza: “Tu que és a minha alegria, preserva-me”. Por que: “preserva-me?” Continua o Apóstolo: “Perseverantes na tribulação” (Rm 12,12). “Tu és a minha alegria, preserva-me”. O Apóstolo também já estava justificado, mas como se exprime? “E não somente a criação! Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos”. Por que diz: “preserva-me?” Porque “gememos interiormente, esperando a adoção, suspirando pela redenção do nosso corpo”. Eis aí por que diz: “preservame”; porque ainda esperamos, gemendo interiormente, a redenção de nosso corpo. De onde vem, então, “a minha alegria?” O mesmo Apóstolo prossegue: “Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na esperança que o aguardamos” (Rm 8,23-25). Se esperas tens alegria; se aguardas na esperança, ainda gemes, pois não há necessidade de paciência quando não sofres mal algum. Somente quando existem males fala-se em tolerância, paciência, constância no sofrimento, longaminidade. Se pressionado, sentes angústia. Por conseguinte, se aguardamos com paciência, ainda pedimos: Salva-me da angústia que me cerca: como, de fato, somos salvos na esperança, dizemos ambas as coisas: “Minha alegria e preserva-me”.

21 8“Vou te dar entendimento”. O próprio salmo é de inteligência. “Vou te dar entendimento e indicar o caminho a seguir”. O que significa: “Indicar o caminho a seguir?” Não é para te deteres, mas para não te desviares. Dar-te-ei entendimento para sempre te conheceres, e sempre te alegrares na esperança depositada em Deus, até chegares à pátria, onde não terás mais esperança, e sim a realidade. “Fixarei em ti os meus olhos”. Não tirarei os olhos de ti, porque também tu não apartas de mim os teus olhos. Já justificado, após a remissão dos pecados, ergue para Deus os teus olhos. Teu coração apodrecera, retido na terra. Não é inutilmente que ouves a exortação: Corações ao alto, para não se estragarem. Tu também levanta os olhos para Deus continuamente para que ele fixe em ti os seus olhos. Mas por que receias que, mantendo os olhos elevados para Deus, tropeces? Ou não olhas para a frente, e talvez caias num laço? Não temas. Veem os olhos daquele que os fixou em ti. “Não andeis preocupados” (Mt 6,31). E diz o apóstolo Pedro: “Lançai sobre ele a vossa preocupação, porque é ele que cuida de vós” (1Pd 5,7). Portanto, “fixarei em ti os meus olhos”. Tu, pois, ergue os olhos para ele, sem temer, como disse, cair numa armadilha. Ouve as palavras de outro salmo: “Meus olhos se voltam sempre para o Senhor” (Sl 24,15). E como se alguém lhe perguntasse: O que fazes de teus pés, uma vez que não olhas para a frente? Responde: “Porque ele é quem há de tirar os meus pés do laço” (Sl 24,15). “Fixarei em ti os meus olhos”.

22 9O Senhor prometeu-lhe entendimento e a sua proteção. Agora se dirige aos soberbos, que defendem seus próprios pecados e mostra-nos o que quer dizer entendimento: “Não sejais como o cavalo e o mulo, sem inteligência”. O cavalo e o mulo levantam a cerviz. Não são como aquele boi que conhece o seu dono, e aquele jumento que conhece a manjedoura de seu Senhor (Is 1,3). “Não sejais como o cavalo e o mulo, sem inteligência”. E o que é o que eles sofrem? “Suas madíbulas se prendem com freio e cabresto. De outro modo, de ti não se aproximam”. Queres ser cavalo e mulo, e não queres ter cavaleiro? Tuas mandíbulas serão apertadas com o freio e o cabresto. Tua boca será amarrada; com ela te gabas de teus méritos e calas os teus pecados. “Cujas mandíbulas se prendem com freio e cabresto. De outro modo, de ti não se aproximam”, humilhando-se.

23 10“Muitos são os sofrimentos do pecador”. Não é de admirar que, uma vez usado o freio, siga-se o chicote. Ele queria ser um animal indômito; é domado com o freio e o chicote. E oxalá seja domado por completo. Pois, é de recear que, resistindo demais, mereça ser abandonado, permanecendo indômito e prossiga em sua licenciosa vagabundagem de sorte que se diga a seu respeito: “A sua maldade parece brotar da obesidade” (Sl 72,7), à semelhança, cujos pecados ainda continuam impunes. Por conseguinte, ao ser flagelado, corrija-se, dome-se. Também este disse aqui ter sido domado. Denominou-se a si mesmo cavalo e mulo, porque se calou. Mas, como foi domado? Com o chicote. “Revolvia-me em minha dor, enquanto o espinho era pungente”. Seja qual for o nome que lhe deres, chicote ou aguilhão, Deus doma o jumento, que ele monta, porque ao jumento convém ser montado. Deus não o monta por estar cansado de andar a pé. Não é cheio de mistério o fato de que um jumentinho foi levado ao Senhor (Mt 21,7)? O povo manso e quieto que carrega com segurança o Senhor é um jumentinho e encaminha-se para Jerusalém. Como está em outro salmo: “Dirigirá os mansos no juízo. Ensinará aos dóceis os seus caminhos” (Sl 24,9). Quais são esses mansos? Os que não erguem a cerviz contra seu domador, os que suportam o chicote e o freio, a fim de que, depois de domados, andem sem chicote, e sem freio nem cabresto se mantenham no caminho. Se te faltar este cavaleiro, tu cais, não ele. “Muitos são os sofrimentos do pecador. Mas de misericórdia o que espera no Senhor se vê cercado”. De que maneira o Senhor é refúgio na tribulação? Aquele que primeiro está cercado de tribulação, cerca-o em seguida a misericórdia, porque quem deu a lei, dará a misericórdia (cf Sl 83,8); a lei nos flagelos, a misericórdia nas consolações. “Mas o que espera no Senhor, de misericórdia se vê cercado”.

24 11Daí, como conclui? “Alegrai-vos e exultai no Senhor, ó justos”. Ó vós, que em vós mesmos vos alegrais! ó ímpios, ó soberbos, que em vós mesmos vos regozijais. Uma vez que credes naquele que justifica os ímpios, seja vossa fé levada em conta de justiça (cf Rm 4,5). “Alegrai-vos no Senhor e exultai, ó justos. E exultai”, subentenda-se: no Senhor. Por quê? Porque já são justos. E como sois justos? Não por vossos méritos, mas por sua graça. Como sois justos? Porque fostes justificados.

25 “E gloriai-vos todos vós, retos de coração”. Qual o sentido da expressão: “retos de coração?” São aqueles que não resistem a Deus. Preste atenção, V. Caridade, para compreender o que é reto de coração. Falo rapidamente, mas insisto muito. Graças a Deus, por que vem no fim; grave-se em vossa memória. Esta a diferença entre coração reto e coração malvado: Reto de coração é aquele que, sofrendo contra a sua vontade, aflições, tristezas, trabalhos, humilhações atribui tudo isso à justa vontade de Deus e não a julga insensata, como se não soubesse Deus o que faz, porque castiga a um e a outros poupa. Malvados de coração, maus e perversos aqueles que dizem serem injustos os males que sofrem, acusando de iniquidade aquele por cuja vontade padecem, ou não ousando acusá-lo de maldade, negam-lhe o cuidado no governo. Dizem eles o seguinte: Deus não pode praticar o mal; no entanto, é um mal que eu sofra e outro não sofra. Concedo que sou pecador. Mas, certamente são piores os que estão alegres, enquanto eu sofro. E como é um mal que outros piores do que eu se regozijem, enquanto eu estou atribulado, eu que sou justo, ou menos pecador do que ele, tenho certeza de que isto é injusto e igual certeza de que Deus não faz injustiça; portanto, Deus não governa os acontecimentos humanos, nem se preocupa conosco. Portanto, os corações perversos, isto é, distorcidos, têm três opiniões. Ou: Deus não existe, pois “disse o insensato em seu coração: Deus não existe” (Sl 13,1). E conforme foi dito a respeito daquelas águas diluvianas, não faltou tal ensinamento entre os filósofos, não faltaram os que afirmaram que não existe um Deus que governa todas as coisas e tudo criou; mas há muitos deuses, que cuidam de si mesmos, alheios ao mundo, sem se preocupar com tais coisas. Por conseguinte, ou (1ª opinião) Deus não existe, segundo afirma o ímpio, a quem desagrada tudo o que lhe acontece contra sua vontade, e que não sucede a outrem, ao qual se julga superior. Ou, então (2ª opinião), Deus é injusto, pois agradam-lhe tais fatos e ele assim age. Ou ainda (3ª opinião): Deus não governa os eventos humanos, nem cuida de todos. Estas três opiniões são muito ímpias, porque ou negam a existência de Deus, ou o denominam injusto, ou não lhe atribui o governo do mundo. De onde vêm isto? De um coração distorcido. Deus é reto, portanto o coração distorcido não se ajusta a ele. Em outro salmo, se diz: “Como é bom o Deus de Israel, para os retos de coração”. Como o próprio salmista certa vez emitiu esta opinião: “Como sabe Deus? Ou será que o Altíssimo tem conhecimento?” acrescentou ali: “Meus pés quase se abalaram” (Sl 72,1.11.2). Se colocas uma tábua recurvada num pavimento bem liso, não se ajeita, não encontra posição, não se ajusta, sempre se mexe e balança. Não é por ser desigual o lugar em que a colocaste, mas porque é torto o que puseste. Assim também teu coração, enquanto for mau e distorcido, não pode alinhar-se com a retidão de Deus, e não pode sobre ele ser colocado para aderir e realizar-se a palavra: “Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito” (1Cor 6,17). Por isso disse o salmista: “Gloriai-vos todos vós, retos de coração”. Como se gloriam os corações retos? Ouvi como se gloriam. Declara o Apóstolo: “E não é só. Nós nos gloriamos também nas tribulações”. Pois não é grande coisa gloriar-se no meio de regozijos, de alegrias; os corações retos se alegram mesmo nas tribulações. Escuta como o Apóstolo fala, vê o coração reto se gloriando nas tribulações; não o faz inutilmente, em vão: “Sabendo que a tribulação produz a paciência, a paciência uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3.5).

26 Assim, pois, irmãos, é que um coração é reto. Em qualquer acontecimento diga: O Senhor deu, o Senhor tirou. Eis um coração reto: como foi do agrado do Senhor, assim se fez. Bendito seja o nome do Senhor (cf Jó 1,21). Quem tirou? O que tirou? De quem tirou? Quando tirou? Seja bendito o nome do Senhor. E não disse: O Senhor deu, o diabo tirou . Preste atenção, V. Caridade, para não dizerdes: Isto foi o diabo que me fez. Atribui inteiramente a Deus o castigo que te aflige, porque nem o diabo consegue te fazer algo, sem a permissão daquele que do alto tem o poder de castigar ou de corrigir. Castigo para os ímpios, correção para os filhos. Ele castiga todo filho que acolhe (Hb 12,6). Não esperes ficar isento de qualquer castigo, a menos que penses ser deserdado. Ele castiga todo filho que acolhe. Na verdade, a todos? Onde querias te esconder? Todo filho, sem exceção. Nenhum ficará sem castigo. Como? A todos? Queres ouvir como se trata de todos? Mesmo o Unigênito; sem pecado, mas não sem castigo. Em consequência, o próprio Unigênito, carregando tua fraqueza e prefigurando em si a tua pessoa e como Cabeça representando também seu corpo, ao se aproximar da paixão, contristou-se segundo a natureza humana, para te alegrar; contristou-se para te consolar. O Senhor poderia, efetivamente, não sentir tristeza, ao se encaminhar para a paixão. Se um soldado pôde, não poderia o general? Como pôde o soldado? Ouve como Paulo exulta ao se aproximar a paixão. Declarou: “Quanto a mim, já fui oferecido em libação, e chegou o tempo de minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia; e não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor a sua aparição” (2Tm 4,6.8). Vede como exulta, a caminho da paixão. Alegra-se, então, o que há de ser coroado, e se contristaria aquele que coroa? O que trazia em si? A fraqueza e alguns, que diante da tribulação ou da morte se contristam. Mas vede com os conduz à retidão do coração. Tu querias viver, não querias que te sucedesse coisa alguma: mas Deus quis de maneira diferente. São duas vontades. Mas, tua vontade se corrija segundo a vontade de Deus, e não se dobre a vontade de Deus à tua. Tua vontade é má; a dele é a regra. Válida fique a regra, para que se corrija o que estiver torto, por meio da regra. Vede como o ensina nosso Senhor Jesus Cristo: “A minha alma está triste até a morte, e: Meu Pai, se é possível, que passse de mim este cálice”. Aqui mostrou sua vontade humana. Mas vê o coração reto: “Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres, Pai” (Mt 26,38.39). Age assim alegrando-te com o que te acontece; e se chegar o último dia, alegra-te. Se certa fragilidade humana sorrateiramente se introduzir, seja logo dirigida para Deus, a fim de seres do número daqueles aos quais se diz: “Alegrai-vos todos vós, retos de coração”.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *