Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 29

I. COMENTÁRIO

1 1“Para o fim. Salmo. Cântico para a dedicação da casa. A Davi”. Salmo para o fim: alegria da ressurreição, mudança para o estado de imortalidade, renovação do corpo, não somente do corpo do Senhor, mas também de toda a Igreja. No salmo anterior, víamos terminado o tabernáculo, onde habitamos em tempo de guerra; agora, é dedicada a casa, que subsistirá em paz eterna.

2 2Fala, portanto, o Cristo total: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste”. Louvarei a tua sublimidade, Senhor, porque me acolheste . “E não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Não permitiste que aqueles que frequentemente se empenharam em oprimir-me com várias perseguições, por toda a terra, se regozijassem por minha causa.

3 3“Senhor, meu Deus, por ti clamei e me curaste”. Senhor, meu Deus, por ti clamei, e já não carrego um corpo ferido e doente, em condição mortal.

4 4“Senhor, retiraste minha alma da região dos mortos, salvaste-me dentre aqueles que descem à fossa”. Salvaste-me da condição de profunda cegueira, e do lodo profundo da carne corruptível.

5 5“Salmodiai ao Senhor, vós seus santos”. Exulta o profeta vendo o futuro e diz: “Salmodiai ao Senhor, vós seus santos, e celebrai a memória de sua santidade”. Louvai-o porque não se esqueceu da santidade que vos concedeu. Todo este espaço de tempo foi longo para vosso desejo.

6 6“De sua indignação vem o castigo”. Castigou-vos por causa do primeiro pecado, que pagaste com a morte. “E a vida, de sua vontade”. Deu-vos, porque o quis, a vida eterna, à qual não podíeis voltar por vossas próprias forças. “Pela tarde se prolongará o pranto”. Este começou à tarde, quando a luz da sabedoria se retirou do homem que pecara, e ele foi condenado à morte. E o pranto se prolongará à tarde, enquanto o povo de Deus espera, no meio de trabalhos e tentações, o dia do Senhor. “De manhã, a alegria”; até a manhã, em que houver a alegria da ressurreição, alegria esta pronunciada na ressurreição matinal do Senhor.

7 7“Eu, porém, disse na prosperidade: Jamais serei abalado”. Eu, porém, o povo que falava no início, disse na prosperidade, quando já não padecia necessidade alguma: “Jamais serei abalado”.

8 8“Senhor, por tua benevolência, confirmaste a minha honra”. Mas, esta prosperidade, Senhor, não provém de mim mesmo, mas por tua benevolência, confirmaste minha posição honrosa; foi o que aprendi, pois “escondeste a tua face e fiquei perturbado”. Ao desviares, em certo tempo, a face de mim, pecador, fiquei perturbado, porque se apartou de mim a iluminação de teu conhecimento.

9 9“Senhor, por ti clamarei, e suplicarei a meu Deus”. Relembrando o tempo de minha tribulação e miséria, e como se ainda estivesse nele mergulhado, ouço a voz de teu primogênito, minha Cabeça, disposto a morrer por mim e a dizer: “Senhor, por ti clamarei, e suplicarei a meu Deus”.

10 10“Que aproveitará o meu sangue, se eu baixar à sepultura?” Qual a utilidade da efusão de meu sangue, se eu baixar à sepultura? “Porventura o pó te há de louvar?” Se não ressuscitar logo, e meu corpo se corromper, “porventura o pó te há de louvar”, a saber, a turba dos ímpios, que justificarei por minha ressurreição? “Ou enaltecer a tua verdade?” Ou anunciará a tua verdade para a salvação dos demais?

11 11“O Senhor ouviu e se compadeceu de mim. O Senhor se fez o meu amparo. Não permitirás que teu santo experimente a corrupção” (Sl 15,10).

12 12“Transformaste minhas lamentações em regozijo”. Tendo a Igreja sucedido ao primogênito dentre os mortos, agora na dedicação de tua casa, digo: “Transformaste minhas lamentações em regozijo. Rasgaste meu cilício e me cingiste de alegria”. Rasgaste o véu de meus pecados, rompeste a tristeza de minha mortalidade, e me cingiste com a primitiva túnica, a alegria imortal.

13 13“Para que te louve a minha glória e não me angustie”. Para não mais chorar e cantar a ti, não a minha humildade, mas a minha glória, porque já me reergueste de minha humilhação. Não me angustie a consciência do pecado, pelo temor da morte e do juízo. “Senhor, meu Deus, confessar-te-ei eternamente”. Minha glória consiste, Senhor meu Deus, em confessar-te eternamente, porque nada tenho de mim mesmo, mas todos os bens provêm de ti, que és, ó Deus, tudo em todos (1Cor 15,28).

II. SERMÃO AO POVO

1 2Acabamos de cantar o seguinte: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste. E não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Se aprendemos das Sagradas Escrituras quais são os nossos inimigos, reconheceremos a verdade deste cântico. Se, porém, nos enganar a prudência carnal, de sorte a desconhecermos contra quem havemos de combater, deparamos logo no início do salmo uma questão insolúvel. De quem será a voz que louva o Senhor, dá graças, exulta e diz: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste. E não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Em primeiro lugar, pensemos no próprio Senhor, que por se ter dignado fazer-se homem, pôde aplicar a si mesmo estas palavras, de maneira adequada, conforme a precedente profecia. Era fraco, porque homem; a orar, porque fraco. Pois, acabamos de ouvir a leitura do evangelho, como se afastou até dos discípulos, indo para o deserto; mas eles o seguiram e encontraram. Longe de todos, “orava”. Disseram-lhe os discípulos ao achá-lo: “Todos te procuram”. Mas ele retrucou: “Vamos a outros lugares, às aldeias da vizinhança, a fim de pregar também ali, pois foi para isso que eu vim” (Mc 1,35.37.38). Se considerares a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo, quem é que ora? A quem ora? Por que ora? Reza a Deus? Implora a um igual? Qual o motivo de rezar para quem é sempre feliz, sempre onipotente, sempre imutável, eterno, coeterno ao Pai? Consideramos o trovão que ele próprio emitiu daquela espécie de nuvem que o encobria, o apóstolo João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele é vida. E a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam” (Jo 1,1-5). Ao recitarmos tudo isso, não encontramos oração, nem razão de orar, nem oportunidade para orar, nem desejo de orar. Mas, como pouco adiante se diz: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (ib 14), aí está a majestade à qual podes suplicar, a humanidade que reza por ti. Foi dito pelo Apóstolo, também após a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo: “Aquele que está à direita de Deus e que intercede por nós” (Rm 8,34). Por que razão intercede por nós? Porque se designou ser mediador. O que significa ser mediador entre Deus e os homens? (1Tm 2,5). Não quero dizer entre o Pai e os homens, mas entre Deus e os homens. O que é Deus? O Pai, o Filho e o Espírito Santo. O que são os homens? Pecadores, ímpios, mortais. Entre a Santíssima Trindade e a fraqueza, a iniquidade dos homens o mediador fez-se homem, não iníquo, contudo fraco. Não sendo iníquo, uniu-te a Deus; sendo fraco, aproximou-se de ti. E assim para que existisse um mediador entre o homem e Deus, o “Verbo se fez carne”, isto é, o Verbo se fez homem. Pelo nome de carne designam-se os homens. Daí a palavra: “E toda a carne verá a salvação de Deus” (Lc 3,6). “Toda a carne representa os homens. Também diz o Apóstolo: “Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne (isto é, contra os homens), mas contra os Principados, contra as Potestades, contra os Dominadores deste mundo de trevas” (Ef 6,12). A respeito disso falaremos mais adiante, se Deus quiser. Pois, esta distinção convém à disposição do salmo, que empreendemos, em nome do Senhor, explicar a Vossa Santidade. Todavia, apresentei esses exemplos para sabermos que os homens são denominados carne, conforme a palavra: “E o Verbo se fez carne”, que deveis entender: E o Verbo se fez homem.

2 Não foi ocioso dizer isto. Houve certa heresia, e talvez ainda haja resquícios dela, chamada dos apolinaristas. Alguns deles afirmaram que a natureza humana, assumida pela Sabedoria de Deus… Nesta natureza humana a Sabedoria manifestou sua pessoa. Não como nos outros homens, mas conforme foi dito no salmo: “Ungiu-te Deus, o teu Deus, com o óleo da alegria, acima de teus companheiros” (Sl 44,8), isto é, mais do que aos teus companheiros. Não se pense ter sido Cristo ungido como os demais, como os outros justos, como os patriarcas, os profetas, os apóstolos e os mártires, e tudo o que há de grande no gênero humano. Na verdade, nada de maior existiu no gênero humano, nem surgiu entre os nascidos de mulher (Mt 11,11) do que João Batista. Se perguntas: O que há de mais sublime entre os homens? A resposta é: João Batista. Aquele, porém, do qual afirma João não ser digno de desatar as correias das sandálias (Mc 1,7), o que era senão o maior de todos? Mesmo enquanto homem era maior do que os outros homens. Pois, enquanto Deus, segundo a divindade, conforme o fato de que no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus, acima de toda criatura, ele é igual ao Pai. Mas, estamos tratando dele, enquanto homem. Talvez algum de vós, irmãos, julgue que a natureza humana, assumida pela Sabedoria de Deus era igual aos demais homens. Em teus membros grande é a diferença entre a cabeça e os demais membros. De fato, nos restantes membros só existe o sentido do tato. Tocando, sentes nos outros membros. Na cabeça, no entanto, acham-se a vista, o ouvido, o olfato, o gosto e o tato. Se tão grande é a excelência da cabeça relativamente aos outros membros, quanto maior não será a supereminência da Cabeça da Igreja, isto é, daquele homem que Deus escolheu para ser o mediador entre Deus e os homens? Como dizíamos, aqueles hereges afirmaram que a natureza humana, assumida pelo Verbo, quando este se fez carne, não teve mente humana, mas teve somente alma, desprovida de inteligência humana. Sabeis que o homem consta de alma e corpo. Mas a própria alma humana de algo que as almas dos animais não têm. Pois, também os animais têm alma, e chamam-se por isso seres animados. Não se chamariam animais se não fosse a alma; vemos também que eles vivem. Mas, o que possui além disso o homem, para se dizer que foi feito à imagem de Deus? Ele entende e avalia, distingue o bem do mal; nisto foi feito à imagem e semelhança de Deus. Possui, portanto, algo que os animais não têm. E se despreza em si aquilo que o torna melhor do que os animais, destrói ou estraga, e de certo modo invalida a imagem de Deus, de sorte que se diga a esses tais: “Não sejais como o cavalo” e o mulo sem inteligência (Sl 31,9). Aqueles hereges, portanto, afirmam que nosso Senhor Jesus Cristo não teve mente humana. Aquilo que os gregos denominam logikon nós chamamos de racional, a faculdade de raciocinar do homem, que os animais não têm. Mas o que afirmam eles? Asseveram que o próprio Verbo de Deus servia de mente ao homem. Foram eles excomungados, a fé católica os rejeitou, e criaram uma heresia. A fé católica assegura aquela natureza humana assumida pela Sabedoria de Deus nada teve de menos que as demais, relativamente à integridade da natureza; quanto, porém, à excelência da pessoa, difere dos outros. Pois, os outros podem dizer-se participantes do Verbo de Deus, podem dizer que possuem o Verbo de Deus; nenhum deles, contudo, pode ser denominado Verbo de Deus, conforme dele se afirmou, na frase: O “Verbo se fez carne”.

3 Não faltaram outros, procedentes do mesmo erro, a afirmarem que aquele homem, Cristo, mediador entre Deus e os homens, não somente era desprovido de intelecto, mas nem mesmo possuía alma; era só verbo e carne, e não tinha alma humana, nem mente humana. Assim afirmaram. Então, de que constava? Do Verbo e da carne. Também a estes rejeitou a Igreja católica, excomungou-os do meio das ovelhas, excluindo-os da fé simples e verdadeira. E foi reafirmado, conforme disse, que aquele mediador era em tudo igual aos homens, exceto no pecado. Se usou do corpo para agir, como sabemos que este corpo não era fictício, mas verdadeiro? Como, por exemplo, nos certificamos de que teve um corpo? Ele andou, sentou, dormiu, foi preso, flagelado, esbofeteado, crucificado, morto. Sem o corpo, nada disso se teria podido realizar. Por estes indícios, verificamos no evangelho que teve um corpo verdadeiro, conforme ele próprio disse após a ressurreição: “Apalpai-me e entendei que um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho” (Lc 24,39). Assim como acreditamos, entendemos, conhecemos, por tais fatos, tais ações que o Senhor Jesus teve um corpo, igualmente através de outras funções naturais percebemos que possuía uma alma. Sentir fome, ter sede provêm da alma. Excluída a alma, o corpo exânime não poderá sentir. Mas, se dissermos que estas sensações eram falsas, falsas também foram as ações atribuídas ao corpo. Se, porém, o corpo era verdadeiro, verdadeira foi a atividade do corpo; igualmente a alma era verdadeira porque verdadeiras foram as operações da alma.

4 E então? O Senhor fez-se fraco por tua causa, ó homem que me ouves. Não te compares a Deus. Efetivamente, és criatura, e ele o teu Criador. Nem te compares a teu mediador, porque se fez homem, por tua causa, teu Deus, o Verbo, Filho de Deus. Deves antepor a ti aquele que é homem, enquanto mediador; Deus, porém, acima de toda criatura. Assim entenderás que, feito homem por ti, com toda conveniência reza por ti. Se, pois, dignamente reza por ti, dignamente também pôde proferir em teu lugar estas palavras: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste. E não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Mas, tais palavras serão falsas se as atribuirmos ao próprio Senhor Jesus Cristo, sem entendermos que inimigos são estes. Como será exato se é o Cristo Senhor que fala: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste?” Como será certo a respeito de sua humanidade, da fraqueza, da carne? De fato, os inimigos se alegraram a respeito dele ao crucificá-lo, prendê-lo, flagelálo, esbofeteá-lo, dizendo: “Faze-nos uma profecia, ó Cristo” (Mt 26,66 etc.). Este gozo deles quase nos obriga a considerar errada a asserção: “Não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Em seguida, pendente na cruz, quando os inimigos passavam, estavam de pé, observavam e sacudiam a cabeça, dizendo: “Eis o Filho de Deus. A outros salvou e a si mesmo não pode salvar! Desça agora da cruz e creremos nele!” (ib 27,42). Assim se exprimindo, não se regozijavam por causa dele? De onde, então provém a palavra: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste. Não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa?”

5 Esta palavra, talvez, não se refira a nosso Senhor Jesus Cristo, mas ao próprio homem, a toda a Igreja, ao povo cristão, todos os homens em Cristo formam um só homem e a unidade dos cristãos constitui um homem só. Talvez o próprio homem, isto é, a unidade dos cristãos é que profere: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste. Não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Como também pode ser verdade a respeito deles? Os apóstolos não foram presos, não foram feridos, flagelados, mortos, crucificados, queimados vivos, não lutaram com as feras, aqueles cujas memórias celebramos? Mas, quando os homens lhes infligiam tudo isto, não se regozijavam por causa disto? Como é possível, portanto, ao povo cristão dizer: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste, e não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa?”

6 1Entenderemos tudo isso, se primeiro examinarmos o título do salmo. É o seguinte: “Para o fim. Salmo. Cântico para a dedicação da casa. A Davi”. Encerra o título toda a esperança, todo o mistério da solução deste problema. A casa agora em construção será dedicada um dia. Agora, de fato, se edifica a casa, isto é, a Igreja; depois será dedicada. Na dedicação manifestar-se-á a glória do povo cristão, agora oculta. Enfureçam-se agora os inimigos, humilhem, façam não propriamente o que querem, mas o que lhes for permitido do alto. Nem tudo o que sofrermos da parte dos inimigos, deve lhes ser atribuído, mas antes ao Senhor nosso Deus. Nosso mediador demonstrou por seu exemplo que, se do alto vêm aos homens a permissão de nos prejudicar, não lhes é dado do alto a vontade de fazer mal, mas apenas o poder. O mau tem em si mesmo a vontade de causar dano; mas não tem o poder de prejudicar. Pelo fato de querer, já se torna réu; quanto a poder, contudo, por oculta disposição da providência de Deus, é permitido contra uns para castigo, contra oustros para provação, e contra outros para coroa. Para castigo, como foi permitido aos allóphiloi, isto é, aos estrangeiros, vencer o povo de Israel, porque este pecara contra Deus (Jz 10,7 e 13,1 etc.). Para provação, como foi permitido ao diabo contra Jó (1,12). Jó foi provado, e o diabo, confundido. Para a coroa, todavia, como foi permitido aos perseguidores contra os mártires. Os mártires foram mortos e os perseguidores pensaram que venciam; eles manifestamente tiveram um falso triunfo, enquanto os mártires ocultamente foram na verdade coroados. Portanto, a permissão de atacar a alguém origina-se de oculto desígnio da providência de Deus. Querer fazer o mal vem do homem, mas ele nem sempre pode matar a quem quiser.

7 Por isso, o próprio Senhor, juiz dos vivos e dos mortos, ao comparecer perante um juiz humano, dando-nos um exemplo de humildade e paciência, e não sendo vencido e sim mostrando como combate um soldado, respondeu ao juiz ameaçador, inchado de soberba, que lhe perguntava: “Não sabes que eu tenho poder para te libertar e poder para te matar?” Tirou-lhe o inchaço do orgulho e de certo modo extraiu-lhe a entumescência, dizendo: “Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto” (Jó 19,10-11). E Jó (de quem o diabo matou os filhos, arrebatou os bens) o que disse? “O Senhor o deu, o Senhor o tirou, como foi de seu agrado, assim se fez, bendito seja o Nome do Senhor” (Jó 1,21). Não cante o triunfo o inimigo por ter conseguido isso. Eu sei, disse Jó, quem o permitiu. Ao diabo se atribua a vontade de prejudicar, ao meu Senhor, o poder de experimentar. Estando Jó ferido no corpo, aproximou-se a mulher que lhe restara, como Eva, auxiliar do diabo, não consoladora do marido, e diz entre muitas censuras: “Amaldiçoa a Deus e morre duma vez!” (Jó 2,9). E este Adão, no monturo, foi mais cauteloso do que o outro, no paraíso; pois Adão no paraíso foi seduzido pela mulher e de lá expulso. Adão no monturo repeliu a mulher, para ser admitido no paraíso. O que disse à mulher Adão no monturo, que interiormente concebia a imortalidade, enquanto por fora fervilhava de vermes? O que disse à mulher? “Falas como uma insensata. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males” (ib 10)? Além disso, Jó disse que pesava sobre si a mão do Senhor, quando o diabo o atingiu, porque não considerava quem o feria, mas quem o permitira. Ainda mais. O próprio diabo denominou mão do Senhor o poder que ambicionava, uma vez que, acusando o justo, do qual o Senhor dava bom testemunho, disse a Deus: “Não é em vão que Jó teme a Deus. Porventura não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abençoaste a obra das suas mãos e seus rebanhos cobrem toda a região”. Deste-lhe tantos bens, e por isto te adora. “Mas estende tua mão e toca nos seus bens; eu te garanto que te lançará maldições em rosto” (Jó 1,9-11). Como é que o diabo diz: “estende tua mão”, se era ele mesmo que queria estender a sua? Mas como ele não podia estender a própria mão, chamou de mão de Deus o poder que dele recebeu.

8 O que dizer, irmãos, a respeito de tantos males que os inimigos infligiram aos cristãos, enquanto exultavam e alegravam-se por isto? Mas quando se manifestará que não se alegraram? Quando estes forem confundidos e os cristãos exultarem na vida do Senhor nosso Deus, que trará na mão a retribuição: condenação para os ímpios, reino para os justos, a sociedade com o diabo para os iníquos, a sociedade com Cristo para os fiéis. Por conseguinte, quando isto acontecer, quando os justos estiverem de pé, com grande firmeza. (Cito a Sagrada Escritura). Vós vos recordais da leitura do livro da Sabedoria: “De pé, porém, estará o justo, em segurança, na presença dos que o oprimiram. Vendo-o, dirão entre si, arrependidos, entre os soluços e gemidos de angústia: que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviu riqueza e arrogância? Tudo isso passou como uma sombra”. E o que dirão sobre o justo? “Como agora é contado entre os filhos de Deus, e partilha a sorte dos santos?” (Sb 5,1 etc.). Então será a dedicação da casa, que agora é construída no meio das tribulações. Então dirá com razão aquele povo: “Eu te exaltarei, Senhor, porque me acolheste. E não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Esta palavra se realizará no povo de Deus, povo agora angustiado, atribulado por tantas tentações, tantos escândalos, tantas perseguições, tantas opressões. O principiante não sente na Igreja estes tormentos espirituais. Pensa que há paz. Mas logo que começar a progredir, verá em que tribulação se há de encontrar, porque quando cresce o trigo, e produz a espiga, então aparece também o joio (Mt 13,26); e quem aumenta o saber, aumenta o sofrer (Ecl 1,18). Progrida, e verá onde está. Apareça o fruto, e aparecerá o joio também. É verídica a palavra do Apóstolo, indelével do início até o fim: “Aliás, todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos. Quanto aos homens maus e impostores, eles progredirão no mal, enganando e sendo enganados” (2Tm 3,12.13). Daí também as palavras do salmo: “Espera no Senhor, age virilmente, conforte-se teu coração, e espera no Senhor” (Sl 26,14). Achou o salmista pouco dizer uma vez: “Espera no Senhor”. Repetiu. Acrescentou, para que não se esperassem dois, três, ou quatro dias e continuassem a angústia e a tribulação: “Age virilmente”; e ainda: “conforte-se teu coração”. E como será assim do princípio até o fim, profere a mesma sentença no começo e no fim: “E espera no Senhor”. Passarão as aflições; virá aquele que esperas, e enxugará teu suor, secará tuas lágrimas e não chorarás mais. Agora, porém, gemamos no meio das tribulações, conforme diz Jó: “Acaso não é contínua tentação a vida humana sobre a terra” (Jó 7,1)?

9 Todavia, irmãos, antes do dia da dedicação da casa, vejamos que nossa Cabeça foi dedicada. A dedicação da casa já se realizou em nossa Cabeça, como se fosse a dedicação dos alicerces. A Cabeça está em cima; e os alicerces, embaixo. Por conseguinte, para não dizermos com impropridade que Cristo é o fundamento, digamos antes que é a cumieira, porque subiu ao céu e está sentado à direita do Pai. Mas acho que não erramos, pois disse o Apóstolo: “Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto, Jesus Cristo. Se alguém sobre este fundamento constrói com ouro, prata, pedras preciosas…” (1Cor 3,11.12). Os que vivem bem, os que honram e louvam a Deus, os pacientes na tribulação, os que desejam a pátria, estes edificam com ouro, prata, pedras preciosas. Os que, porém, ainda amam os bens mundanos, que estão envolvidos em negócios terrenos, entregues a certos vínculos e afetos carnais, sua casa, sua mulher, suas posses, e no entanto são cristãos, sem apartar seu coração de Cristo e a ele nada preferindo (e como numa construção nada se faz antes de colocar o fundamento), estes edificam de fato, mas com madeira, feno e palha. Qual a consequência? “O fogo provará o que vale a obra de cada um” (ib 13), o fogo da tribulação e da tentação. Tal fogo experimentou aqui a muitos mártires, e no fim provará todo o gênero humano. Houve mártires possuidores destes bens temporais. Quantos ricos e senadores padeceram o mártirio! Alguns deles construíam com madeira, feno, palhas: as afeições carnais e os cuidados temporais. Mas, como tinham a Cristo por fundamento e sobre ele edificavam, queimou-se o feno e eles persistiram sobre o fundamento. Assim declara o Apóstolo: “Se a obra subsistir, o operário receberá uma recompensa” e nada perderá, porque encontrará o que amou. Qual foi para eles o efeito do fogo da tribulação? Experimentou-os. “Se a obra subsistir, o operário receberá uma recompensa. Aquele, porém, cuja obra for queimada perderá a recompensa. Ele mesmo, entretanto, será salvo, mas como que através do fogo” (ib 3,11-15). Todavia, uma coisa é não ser prejudicado pelo fogo, outra salvar-se através do fogo. Por quê? Por causa do fundamento. Que este não se afaste do coração. O fundamento não seja de feno, não prefiras o feno ao fundamento, dando-lhe o primeiro lugar no coração e o segundo a Cristo. Se, contudo, for impossível não haver feno ali, ao menos tenha Cristo o primeiro lugar, e o feno o segundo.

10 Cristo é, portanto, o fundamento. Conforme disse acima, nossa Cabeça foi dedicada. Ela é o fundamento. Mas o fundamento costuma estar embaixo, enquanto a cabeça fica em cima. Entenda Vossa Santidade o que digo. Talvez consiga explicar, em nome de Cristo. Há duas espécies de peso. O peso é certo impulso que faz cada coisa tender ao seu lugar. Isto é o peso. Sustenta uma pedra na mão e sentirás o seu peso; ela pressiona a tua mão, porque procura o seu lugar. E queres ver o que procura? Retira a mão e ela cai por terra, repousa na terra. Chegou ao ponto para o qual tendia, encontrou o seu lugar. O peso, portanto, era aquele movimento quase espontâneo, mas inanimado, insensível. Há outros seres que tendem para cima. Procuram seu lugar, querem entrar na ordem. Seria fora da ordem permanecer a água acima do óleo. Até que se estabeleça a ordem, até que alcance o lugar que lhe é peculiar movimenta-se inquieto. Ao contrário, por exemplo, se o óleo é derramado debaixo da água, como acontece se um vaso de óleo cair na água, no abismo, no mar e se quebrar, o óleo não fica por baixo. Como a água jogada acima do óleo, conforme os respectivos pesos, procura seu lugar embaixo, assim o óleo, derramado debaixo da água, conforme o peso, procura seu lugar em cima. Se, portanto, assim é, irmãos, para onde tende o fogo e a água? O fogo tende para cima, e procura aí seu lugar; e a água, devido ao seu peso, procura o lugar que lhe convém. A pedra tende para baixo, assim como a madeira, as colunas, a terra, com as quais se edificam as casas. São do gênero das coisas que, pelo peso, são atraídas para baixo. É manifesto, por isso, que têm em baixo o fundamento, uma vez que, por seu peso, tendem para baixo. E se não houver o que segure, cai tudo, porque o todo tende para a terra. As coisas, portanto, que tendem para baixo, embaixo têm seu fundamento. A Igreja de Deus, porém, colocada embaixo, tende para o céu. O nosso fundamento ali está colocado: nosso Senhor Jesus Cristo, sentado à direita do Pai. Se Vossa Santidade, pois, entendeu que nosso fundamento já está dedicado, ouçamos rapidamente o salmo que vamos percorrer.

11 “Eu te exaltarei, Senhor porque me acolheste. E não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”. Quais? Os judeus? Na dedicação dos alicerces já entendemos a dedicação da futura casa. Então se aplicará à casa inteira o que se diz agora sobre os fundamentos. Por conseguinte, de que inimigos se trata? Dos judeus, ou antes do diabo e de seus anjos, que confusos se afastaram, após a ressurreição do Senhor? O príncipe da morte condoeu-se quando a morte foi vencida. “Não permitiste que meus inimigos se regozijassem por minha causa”, porque não pude ser retido nos infernos.

12 3“Senhor, meu Deus, por ti clamei e me curaste”. O Senhor orou no monte antes da paixão (Mt 26,39), e Deus o curou. Curou a quem? Ao Verbo que é Deus, à divindade do Verbo? A ele que nunca esteve doente? Não. Mas ele era portador de uma carne mortal, portador de tuas feridas, para curá-las. A carne, porém, foi curada. Quando? Quando ele ressurgiu. Ouve o Apóstolo dizer, vê a genuína cura: “A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão? (1Cor 15,54). Naquela exaltação achar-se-á então a vossa voz. Agora, porém, é a exaltação de Cristo.

13 4“Senhor, retira minha alma da região dos mortos”. É ocioso expor. “Salvaste-me dentre aqueles que descem à fossa”. Quais são os que descem à fossa? Os pecadores, que mergulham nas profundezas. Fossa significa as profundezas do século. Quais são as profundezas do século? A abundância da luxúria e da malícia. Descem à fossa aqueles que mergulham nos desejos mundanos, na sensualidade. Esses perseguiram a Cristo. Mas, o que diz o salmista? “Salvaste-me dentre aqueles que descem à fossa”.

14 5“Salmodiai ao Senhor, vós os santos”. Ressuscitou vossa Cabeça. Vós os demais membros, esperai o que vedes na Cabeça, esperai o que credes nela realizado. É um provérbio antigo e verdadeiro: Onde está a cabeça, acham-se também os outros membros. Cristo subiu ao céu, aonde nós havemos de segui-lo. Não ficou na região dos mortos; ressuscitou, já não morre. Quando ressuscitarmos também nós, não morreremos mais. De posse destas promessas, “salmodiai ao Senhor, vós os seus santos e celebrai a memória de sua santidade”. O que quer dizer: “Celebrai a memória de sua santidade?” Estáveis esquecidos dele, mas ele não vos esqueceu.

15 6“Porque de sua indignação vem o castigo, e a vida, de sua vontade”. Em sua indignação se irrita contra o pecador: “No dia em que dela comerdes morrereis” (Gn 2,17). Tocaram (no fruto proibido), morreram, foram expulsos do paraíso, “porque de sua indignação vem o castigo”; mas não castigo sem esperança, porque “a vida” depende “de sua vontade”. O que significa: “de sua vontade?” Não de nossas forças, não de nossos méritos. Salvou-nos porque quis e não porque éramos dignos. De que é digno o pecador, senão do suplício? Ele, no entanto, deu a vida. E se deu a vida aos ímpios, o que reserva para os fiéis?

16 “Pela tarde se prolongará o pranto”. Não temais, porque o salmista nos dissera: “Salmodiai”, e agora aparece o gemido. Na salmodia há exultação, na oração gemido. Geme a respeito das realidades presentes; salmodia acerca das futuras. Ora sobre a realidade, salmodia sobre o que esperas: “Pela tarde se prolongará o pranto”. O que quer dizer: “Pela tarde se prolongará o pranto?” Cai a tarde quando o sol se põe. O sol se pôs para o homem, isto é, aquela luz da justiça, a presença de Deus. Por conseguinte, quando Adão foi expulso do paraíso, o que disse o Gênesis? À tarde passeava Deus, e ao passear Deus no paraíso, já Adão pecador se escondera no meio das árvores e não queria ver a face de Deus (ib 3,8), que costumava alegrá-lo. O sol da justiça para ele se pusera. Não se alegrava mais com a presença de Deus. Foi o início desta vida mortal. “Pela tarde se prolongará o pranto”. Longamente estarás em pranto, ó gênero humano! Pois nasces de Adão. Assim é. Também nós somos oriundos de Adão e quantos procriaram filhos e hão de procriar provêm de Adão, do qual eles descendem. “Pela tarde se prolongará o pranto; de manhã, a alegria”, quando começar a raiar a luz para os fiéis. Ela se pusera para os pecadores. Por conseguinte, também o Senhor Jesus Cristo de manhã ressurgiu do sepulcro (Mt 28,1), prometendo à casa o que dedicara nos alicerces. Para nosso Senhor era tarde quando foi sepultado e manhã quando ressuscitou, ao terceiro dia. Tu também foste sepultado à tarde no paraíso, e ressuscitaste ao terceiro dia. Como no terceiro dia? Pensa nos séculos. O primeiro dia foi antes da Lei; o segundo sob a Lei, o terceiro sob a graça. Manifesta-se em ti no tríduo do século o que se mostrou na Cabeça naqueles três dias. Quando? Pela manhã, esperemo-lo com alegria. Agora, porém ainda temos de suportar e gemer.

17 7“Eu, porém, disse na prosperidade: Jamais serei abalado”. Em que prosperidade disse o homem: “Jamais serei abalado?” Percebemos, irmãos, que se trata de alguém de humilde condição. Quem possui com abundância, aqui na terra? Ninguém. De que existe abundância para o homem? De tribulações, de calamidades. Mas os ricos não desfrutam de prosperidade? Quanto mais têm, mais aumentam as necessidades. Ardem de desejos, dissipam-se em cobiças, atormentam-se com temores, consomem-se de tristeza. Qual a abundância para o homem? Havia abundância quando o homem estava no paraíso, quando nada lhe faltava, quando fruía da presença de Deus. Mas disse o homem: “Jamais serei abalado”. Quando disse: “Jamais serei abalado”? Quando ouviu de bom grado a palavra: “Comei e sereis como deuses”, em contraste com o que Deus dissera: “No dia em que dele comerdes, certamente morrereis”. E o diabo: “Não, não morrereis” (Gn 3,4-5). E o homem acreditando em quem assim o persuadia, disse: “Jamais serei abalado”.

18 8.9Mas, como era verdadeira a promessa do Senhor de que tiraria ao homem soberbo o que lhe dera enquanto era humilde, ao criá-lo, prossegue: “Senhor, por tua benevolência, confirmaste a minha honra”, isto é, por mim mesmo não era bom e forte, mas me tornaste belo e forte, confirmaste minha honra, por tua benevolência, que me criou. E no intuito de me demonstrares que assim era por tua vontade, “escondeste a tua face e fiquei perturbado”. O Senhor escondeu o seu rosto ao homem expulso do paraíso. Na terra, onde agora se acha, clame e diga: “Senhor, por ti clamarei e suplicarei a meu Deus”. No paraiso não clamavas, mas louvavas; não gemias, mas fruías. Fora dele, geme e clama. O Senhor, que abandonou o soberbo, aproxima-se do atribulado, porquanto “Deus resiste aos soberbos; mas dá graça aos humildes” (Tg 4,6). “Senhor, por ti clamarei, e suplicarei a meu Deus”.

19 10É o Senhor, nosso fundamento, quem fala no versículo seguinte: “Que aproveitará meu sangue, se eu baixar à sepultura?” Que pedido formula? O de ressuscitar. Diz ele: Se eu baixar à sepultura, se minha carne entrar em decomposição, como o dos demais homens, para ressurgir somente no fim do mundo, com que finalidade derramei o meu sangue? Se não ressuscitar agora, a ninguém anunciarei, a ninguém lucrarei. Ressuscite minha carne, não entre em decomposição, para que anuncie a alguém as tuas maravilhas, os teus louvores, a vida eterna. Pois, se descer à sepultura como os demais homens, que aproveitará o meu sangue? “Porventura o pó te há de louvar? Ou enaltecer a tua verdade?” Duas são as espécies de confissão: a do pecado e a de louvor. Se vamos mal, confessemos nossos pecados, no meio de nossas tribulações; se vamos bem, com exultação da justiça confessemos, em louvar a Deus. Todavia, jamais fiquemos sem confissão.

20 11“O Senhor ouviu e se compadeceu de mim”. Como? Prestai atenção à dedicação da casa. Ouviu e se compadeceu. “O Senhor se fez o meu amparo”.

21 12Ouve. Já se fala da própria ressurreição. “Transformaste minhas lamentações em regozijo. Rasgaste meu cilício e me cingiste de alegria”. O que é o cilício? A mortalidade. O cilício se confecciona de pelo de cabra e de cabritos. Cabras e cabritos representam os pecadores (cf Mt 25,32). O Senhor de nós assumiu apenas o cilício, mas não o mereceu. O pecado é que merece o cilício. Aquele cilício significa a mortalidade. Ele, que não merecia a morte, aceitou por tua causa a mortalidade. Quem peca merece a morte. O Senhor, que não pecou, não merecia o cilício. Em outra passagem, ele mesmo fala: “Eu, porém, quando me molestavam, usava cilício” (Sl 34,32). O que significa: “Usava cilício?” Apresentava aos perseguidores a parte que tenho de cilício. O Senhor escondeu-se aos olhos dos perseguidores para que o considerassem apenas um homem. Eram indignos de ver aquele que estava revestido do cilício. Portanto, “rasgaste meu cilício e me cingiste de alegria”.

22 13“Para que te louve a minha glória e não me angustie”. Mesma realidade, no corpo e na Cabeça. O que quer dizer: “não me angustie?” Não morrerei mais. Angustiado estava ao pender da cruz e ser atravessado pela lança (Jo 19,34). Diz, portanto, nossa Cabeça: “Não me angustie”, já não morrerei. E nós o que diremos, por causa da dedicação da casa? Não nos angustie a consciência com remorsos pelo pecado. Serão todos perdoados, e então estaremos livres. “Para que te louve a minha glória”, não a minha humilhação. Se é nossa é também de Cristo, porque somos o corpo de Cristo. Por quê? Porque embora esteja Cristo sentado no céu, há de dizer a alguns: “Tive fome e me destes de comer” (Mt 25,35). Está lá e está aqui; lá em si, aqui em nós. E o que diz? “Louve-te a minha glória e eu não me angustie”; minha humildade geme diante de ti, cantar-te-á a minha glória. Já estamos no final do salmo: “Senhor, meu Deus, confessar-te-ei eternamente”. O que quer dizer: “Confessar-te-ei eternamente?” Louvar-te-ei eternamente, porque existe confissão também de louvores e não só de pecados. Confessa, pois, agora o que fizeste contra Deus, e confessarás aquilo que Deus fez em ti. O que fizeste? Pecados. E Deus? Perdoa-te os pecados, ao confessares tua iniquidade, para que depois, sem angústia por causa dos pecados, confesses eternamente seus louvores.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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