Comentário ao Salmo 11 – Santo Agostinho

1 1“Para o fim. Para o oitavo. Salmo de Davi”. No salmo 6 foi explicado que “oitavo” pode representar o dia do juízo. É possível também interpretar como oitavo a eternidade, que será concedida aos santos depois do tempo, correspondente ao ciclo de sete dias.

2 2“Salva-me, Senhor, porque desapareceu o santo”, isto é, já não se encontra um santo. Assim falamos, por exemplo, na expressão: Acabou o trigo, ou: Acabou o dinheiro. “Porque diminuíram as verdades entre os filhos dos homens”. A verdade é uma só, e ilumina as almas santas, mas como são muitas as almas, pode-se dizer que nelas há muitas verdades, como de um só rosto refletem-se muitas imagens nos espelhos.

3 3“Cada qual falou futilidades a seu próximo”. Próximo são todos os homens, porque a ninguém se deve fazer o mal e o amor ao próximo não pratica o mal (Rm 13,10). “Os lábios enganadores proferiram o mal no coração e no coração”. Disse duas vezes: “no coração e no coração”, representando duplicidade de coração.

4 4Extirpe o Senhor todos os lábios mentirosos”. Todos, isto é, ninguém se repute exceção, conforme diz o Apóstolo: “Todo aquele que pratica o mal, o judeu em primeiro lugar, mas também o grego” (Rm 2,9). Língua arrogante, língua soberba.

 5 5“Eles disseram: Exaltar-nos-emos com a nossa língua. São nossos os nossos lábios. Quem é Senhor nosso?” O salmista faz referência aos soberbos hipócritas, insubmissos a Deus, que põem a esperança em suas próprias palavras, para enganar os homens.

6 6“Por causa da aflição dos necessitados e dos gemidos dos pobres, agora hei de me levantar, diz o Senhor”. Foi assim que o próprio Senhor no Evangelho se compadeceu de seu povo, desprovido de chefe, apesar de disposto a obedecer. Por isso diz o Evangelho: “A mese é grande, mas os operários são poucos” (Mt 9,37). Entendamos isso de Deus Pai, que se dignou enviar o Filho, em prol dos necessitados e pobres, a saber, dos carentes de bens espirituais, por indulgência e pobreza. Por este motivo, o sermão da montanha, segundo Mateus, assim começa: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus” (Mt 5,3). “Porei a salvo”. Não disse o que porá a salvo; mas o lugar salutar significa Cristo, segundo a palavra: “Porque meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,30). Daí se conclui que o Pai lhe deu meios de afastar a miséria dos indigentes e consolar os gemidos dos pobres. “Agirei nisto com toda a confiança”, de acordo com as palavras do Evangelho: “Ensinava com autoridade e não como os seus escribas” (Mt 7,29).

7 7“Palavras do Senhor, palavras puras”. É a fala do profeta. “Palavras do Senhor, palavras puras”. Puras, não corrompidas por simulação. Muitos pregam a verdade, mas não com pureza, porque a vendem pelo preço das comodidades do mundo. A respeito deles afirma o Apóstolo que anunciam o Cristo sem pureza de intenção (Fl 1,17). “Prata pelo fogo acrisolada de terra”. As palavras do Senhor foram acrisoladas para os pecadores, mediante as tribulações. “Depurada sete vezes” por meio do temor de Deus, da piedade, da ciência, da fortaleza, do conselho, do intelecto, da sabedoria (Is 1,12). Pois sete são também as bemaventuranças que o Senhor enumerou no sermão da montanha, katà Mateus: “Bemaventurados os pobres em espírito, bem-aventurados os mansos, bem-aventurados os que choram, bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, bem-aventurados os misericordiosos, bem-aventurados os puros de coração, bem-aventurados os que promovem a paz” (Mt 5,3.9). É de se notar que todo aquele prolixo sermão trata destas sete sentenças; pois a oitava, que reza: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça” significa o próprio fogo que acrisola a prata sete vezes. No fim deste sermão foi afirmado: “Ensinava com autoridade e não como os seus escribas” (ib. 7,29), à semelhança do versículo deste salmo: “Agirei nisto com toda a confiança”.

8 8“Senhor, tu nos guardarás e desta raça nos preservarás para sempre”, aqui como indigentes e pobres, lá como opulentos e ricos.

9 9“Os ímpios andam ao redor”, tomados pela cobiça dos bens temporais, móveis como uma roda, num ciclo de sete dias. Por isso não alcançam o oitavo, o eterno, que deu o título a este salmo. Assim diz Salomão: “Um rei sábio joeira os ímpios e faz passar sobre eles a roda (Pr 20,26) dos males. Segundo tua sublime sabedoria, multiplicaste os filhos dos homens”, uma vez que nas coisas temporais há multiplicidade; esta afasta da unidade de Deus. Por conseguinte, um corpo corruptível pesa sobre a alma e oprime a mente pensativa (Sb 9,15). Multiplicam-se os justos, segundo a sublime sabedoria de Deus, quando vão de virtude em virtude (Sl 83,8).

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


Comments

Uma resposta para “Comentário ao Salmo 11 – Santo Agostinho”

  1. Avatar de MARIA CRISTINA CATALDI CILENTO
    MARIA CRISTINA CATALDI CILENTO

    Salmo 11, uma pequena reflexão: Súplica da comunidade que percebe estar vivendo em meio a uma sociedade totalmente corrompida.

    No versículo 2, fala sobre a raridade da lealdade. Muitas vezes nos admiramos com a falta de lealdade, mas ela nasceu primeira do que nós. Não se assuste com gente desleal, ela já estava na Terra desde os primórdios, os Filhos de Deus serão exaltados.

    2-5: O estado das relações sociais é calamitoso: a mentira criada e sustentada pelos poderosos faz desaparecer a sinceridade e fidelidade entre as pessoas. Tudo isso é acobertado por uma inocência aparente, que esconde opressão.

    6-7: Contra a palavra dos injustos (v. 5), se opõe a palavra de Javé. Ele assume a causa dos oprimidos e necessitados, desde que estes o desejem, isto é, desde que tomem consciência da situação e se organizem para realizar o projeto de Deus.

    8-9: A esperança de uma nova sociedade nasce do conflito entre os fiéis a Javé e os injustos. Este serão destruído pela força da verdade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *