Comentário ao Salmo 10 – Santo Agostinho

1 1.2“Para o fim. Salmo do mesmo Davi”. O título não carece de nova explicação. Já foi suficientemente explanado o que significa: “Para o fim”. Vejamos, pois, o próprio texto do salmo que, a meu ver, é cantado contra os hereges1 , os quais rememorando e exagerando os pecados de muitos na Igreja, como se fossem justos todos eles, ou ao menos a maioria, esforçam-se por nos afastar e arrebatar do seio da verdadeira mãe, a única Igreja. Afirmam estar Cristo no meio deles e nos exortam, como se estivessem movidos de piedade e zelo, a passarmos, aderindo a eles, para junto de Cristo, que mentem ter consigo. É sabido que Cristo nas profecias, onde muitos nomes lhe são atribuídos alegoricamente, é também denominado monte. Respondamos-lhes, portanto: “No Senhor eu confio. Por que dizeis a minha alma: Foge para os montes como o pássaro?” Tenho um só monte de minha confiança. Como, então, dizeis que passe para o vosso lado, como se existissem muitos Cristos? Ou se sois montes por causa da soberba, devo ser pássaro, tendo por asas as virtudes e preceitos de Deus. Mas, são eles mesmos que me proíbem voar em direção àqueles montes e pôr a esperança nos soberbos. Tenho casa onde descansar, porque confio no Senhor; pois também o pássaro encontrou uma casa (Sl 83,4). E o Senhor se fez o refúgio do pobre (Sl 9,10). Digamos, portanto, com toda a confiança, para não perdermos a Cristo, procurando-o entre os hereges: “No Senhor eu confio. Porque dizeis a minha alma: Foge para os montes como o pássaro?”

2 “Eis que os pecadores retesaram o arco, dispuseram na aljava as suas setas, para alvejarem, sob uma lua obscura, os retos de coração”. Terrores iminentes, provindos dos pecadores, a fim de passarmos para o seu lado, como se eles fossem justos. “Eis que os pecadores armaram o arco”. Creio nas Escrituras, de onde eles extraem sentenças envenenadas, interpretando-as carnalmente. “Dispuseram na aljava as suas setas”. Prepararam ocultamente no coração as palavras que vão arremessar apoiados na autoridade das Escrituras. “Para alvejarem sob uma lua obscura, os retos de coração”. Ao perceberem que não poderão ser convencidos de erro, uma vez que se obscureceu a luz da Igreja por causa da multidão de homens ignorantes e carnais, procuram corromper por meio de más palavras os bons costumes (1Cor 15,33). Contra esses terrores, digamos: “No Senhor eu confio”.

3 3Lembro-me de ter prometido explanar neste salmo como a lua significa de modo adequado a Igreja. Duas são as opiniões prováveis a respeito da lua. Penso que o homem não chega a saber, de maneira absoluta, ou só com dificuldade qual a verdadeira. Quando se pergunta de onde se origina a luz da lua, uns dizem que lhe é própria, mas só a metade do globo brilha, enquanto a outra fica escura. Quando se move em seu eixo, a parte brilhante pouco a pouco volta-se para a terra, sendo-nos visível, e por isso aparece primeiro como se fossem cornos. Se fizeres uma bola, metade branca e metade escura, ao teres diante dos olhos a parte escura, nada verás da clara e ao começares a olhar a clara, aos poucos verás primeiro os cornos brancos, que irão aumentando até que tenhas diante dos olhos toda a parte branca e mais nada se veja da parte escura. Se continuas a girá-la lentamente, vai surgindo a escuridão e diminuindo a brancura até que novamente volte aos cornos e por fim totalmente desapareça dos olhos e mais uma vez seja possível apenas ver a parte escura. Há quem diga que isto acontece porque a luz da lua parece aumentar até a lua décima quinta e de novo diminuir até a trigésima; e toma a forma de cornos até a luz desaparecer completamente. Segundo esta opinião, a lua alegoricamente significa a Igreja, que em relação à parte espiritual brilha e relativamente à carnal é escura. Por vezes a parte espiritual aparece aos homens, por meio das boas obras; outras vezes, contudo, fica escondida na consciência, só de Deus conhecida, porque apenas o corpo é visível aos homens. Assim sucede ao orarmos só no coração, porque somos convidados a manter o coração ao alto, junto do Senhor e não na terra. Parece então que nada estamos fazendo. Todavia, outros afirmam que a lua não tem luz própria, mas é iluminada pelo sol. Estando mais perto dele, volta para nós a face não iluminada, e por isso nela não se vê luz alguma. Mas, ao começar a se distanciar do sol, fica iluminada também a face voltada para a terra e necessariamente começa pelos cornos, até que na décima quinta está contra o sol. Então ela surge ao pôr-do-sol. Quem estiver observando o pôr-do-sol, se voltar-se para leste, logo que ele descambar, verá surgir a lua. Daí, ao invés, ao começar a se aproximar do sol, a lua nos apresenta a face não iluminada, até voltar aos cornos, e por fim desaparecer completamente, porque então a parte iluminada está para cima, virada para o céu, e volta-se para a terra a face que o sol não pode iluminar. Segundo esta opinião, também, por lua se entende a Igreja, que carece de luz própria, mas é iluminada pelo Filho unigênto de Deus, denominado sol alegoricamente em muitas passagens das sagradas Escrituras. Certos hereges2 , ignorantes e incapazes de discernir este sol, procuram desviar o entendimento dos simples para este sol corpóreo e visível, luz comum à carne dos homens e das moscas. E desviam a alguns, que por não verem mentalmente a luz interior da verdade, não se contentam com a simples fé católica, única salvação dos pequenos e único leite pelo qual se chega, com vigor seguro, à consistência de um alimento sólido. Segundo uma ou outra opinião, portanto, seja qual for a verdadeira, de modo adequado a lua alegoricamente significa a Igreja. Se não é lícito, não se dispõe de tempo, ou não se pode exercer o intelecto nessas questões obscuras, mais embaraçosas do que úteis, é suficiente encarar a lua, como é vulgar, sem procurar causas obscuras, mas entender como os demais seu aumento, sua plenitude e sua diminuição. Se ela mingua para em seguida se renovar, até a multidão ignorante serve de figura da Igreja, que acredita na ressurreição dos mortos.

4 Em seguida, perguntemos qual seria neste salmo o significado de “lua obscura”, sob a qual os pecadores se prepararam para alvejar os retos de coração. De vários modos se pode dizer da lua que é obscura. Pode-se denominar obscura quando terminam as fases mensais, ou seu fulgor é interceptado pelo céu nublado, ou no final do plenilúnio. É possível também aplicar-se aos perseguidores dos mártires, que procuravam flechar, sob uma lua obscura, os retos de coração: seja nos primórdios da Igreja, porque ela ainda não havia fulgurado, como lua cheia, na terra, nem vencera as trevas das superstições dos gentios; seja quando as línguas dos blasfemos e dos difamadores do nome dos cristãos, quais névoas cobriram a terra, a lua, isto é, a Igreja não poderia parecer brilhante; ou então, quando, pelos massacres dos mártires e tamanha efusão de sangue, a lua parecia por aquela diminuição e obscuridade ter a face ensanguentada, os fracos medrosos fugiam do nome de cristãos. Nesta época de terror, os pecadores atacavam com palavras fraudulentas e sacrílegas, no intuito de perverterem até os retos de coração. A imagem pode se referir também àqueles pecadores pertencentes à igreja que, aproveitando a ocasião deste obscurecimento da lua, cometeram muitos pecados, os quais agora os hereges 3 nos lançam em rosto, embora se afirme que foram os seus fundadores que os perpetraram. Seja como for, o que se tenha cometido sob uma lua obscura, agora que o nome dos católicos está difundido e tornou-se célebre em todo o orbe, porque nos incomodam acerca de fatos desconhecidos? “No Senhor eu confio” e não escuto os que dizem a minha alma: “Foge para os montes como o pássaro. Eis que os pecadores armaram o arco, para alvejarem, sob uma lua obscura, os retos de coração”. Ou se também a eles a lua agora parece obscura, porque querem pôr em dúvida o que é a Igreja católica, e tentam culpá-la pelos pecados dos homens carnais, que em grande número estão dentro dela, o que importa àquele que afirma com razão: “No Senhor eu confio?” Com essa declaração, mostra-se ele como trigo e tolera as palhas, até o tempo de serem ventiladas.

5 “No Senhor eu confio”. Temam os que confiam num homem e não podem negar pertencerem ao partido de um homem, por cujas cãs eles juram. 4Quando numa conversa se lhes pergunta a que comunhão pertencem, não se identificam se não disserem que pertencem ao partido daquele homem. Dize o que fazem eles, ao lhes serem relembrados seus tão inumeráveis e diários pecados e crimes, dos quais está cheia sua sociedade? Acaso podem dizer: “No Senhor eu confio? Por que dizeis a minha alma: Foge para os montes como o pássaro?” Não confiam no Senhor os que dizem serem santos os sacramentos somente se forem administrados por santos. E se lhes perguntarmos quem são os santos, envergonham-se de declarar: Nós. Ainda mais. Se não coram de afirmá-lo, os ouvintes coram em seu lugar. Estes, portanto, forçam os que recebem os sacramentos a porem sua esperança num homem, cujo coração não podem ver. Maldito o homem que se fia no homem (Jr 17,5). O que quer dizer: É santo aquilo que eu dou, senão: Põe em mim a tua esperança? E se não fores santo? Ou mostra-me o teu coração. Se não podes, como verei que és santo? Acaso citarás o que está escrito: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7,16)? Vejo, de fato, obras espantosas: as violências cotidianas dos giróvagos (circumcelliones) que, conduzidos por bispos e presbíteros se deslocam por toda parte e são chamados os terríveis bordões de Israel, que os homens de hoje veem e sentem diariamente. Muitos não viram e agora ninguém conhece a época de Macário5, a respeito da qual nos atacam. Qualquer católico que a conheceu pôde dizer, se queria ser servo de Deus: “No Senhor eu confio”. Agora ainda o repete, ao ver muitas coisas que não lhe agradam na Igreja, onde percebe que ele próprio está nadando dentro daquelas redes cheias de peixes bons e maus (ib. 13,47), até que sejam arrastadas à praia, onde os maus serão separados dos bons. O que responderão eles, se o batizando perguntar a algum dos seus: Por que me mandas ter confiança? Se o mérito provém de quem dá e de quem recebe, seja Deus o doador, e receptora a minha consciência. Duas coisas não são incertas para mim: a bondade de Deus e minha fé. Por que te interpões, tu, de quem nada de certo sei? Deixa-me orar: “No Senhor eu confio”. Pois, se em ti confiasse, hei de confiar que nesta noite nada fizeste de mal? Enfim, se queres que creia em ti, acaso posso acreditar em mais alguém além de ti? Como hei de confiar, então, naqueles com os quais ontem estiveste em comunhão, hoje ainda estás e estarás amanhã que, nesses três dias ao menos nada de mal fizeram? Se o ignoramos não te mancha, nem a mim, por que rebatizas os que não conheceram o tempo da entrega (dos Livros Sagrados) e da hostilidade de Macário? Qual o motivo por que ousas rebatizar e negas serem cristãos os que vêm da Mesopotâmia e jamais ouviram falar do nome de Ceciliano e Donato? Se, porém, os pecados alheios, por eles ignorados, os maculam, considera-te réu de todos os crimes que se cometem diariamente no teu partido, sem teu conhecimento, e em vão lançarás em rosto aos católicos as leis imperiais, enquanto em vossos acampamentos atuam tão violentamente os bastões e se incendeiam bens particulares. Eis aonde caíram os que, vendo pecadores na Igreja católica, não quiseram dizer: “No Senhor eu confio”, e puseram num homem a sua esperança. Di-lo-íam com verdade se eles mesmos não fossem pecadores, ou não fossem tais quais julgavam ser aqueles de quem fingiram com soberba sacrílega querer se separar.

6 4Diga então a alma católica: “No Senhor eu confio. Por que dizeis a minha alma: Foge para os montes como o pássaro? Eis que os pecadores armaram o arco, dispuseram na aljava as sua setas, para alvejarem, sob luz obscura, os retos de coração” e deixando-os, dirija a palavra ao Senhor, dizendo: “Porque destruíram o que bem executaste”. Diga-o, não só contra estes, mas opondo-se a todos os hereges. Todos, pois, na medida que deles dependia, destruíram os louvores que Deus tirou da boca das crianças e lactentes (Sl 8,3), agitando com questões fúteis e minuciosas os pequeninos, impedindo-os de se nutrirem do leite da fé. De certo modo seria dito a esta alma: Porque estes te dizem: “Foge para os montes como o pássaro?” Por que te atemorizam aqueles dentre os pecadores que armaram o arco para alvejarem, sob uma lua obscura, os retos de coração? Responderá: Eles me apavoram “porque destruíram o que bem executaste”. Onde, senão em seus conciliábulos? Lá não nutrem com leite, mas envenenam os pequeninos e os que desconhecem a luz interior. “O que fez, porém, o justo?” Se Macário vos ofendeu, se foi Ceciliano, o que vos fez Cristo, que disse: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou” (Jo 14,27), que vós violastes por nefanda divisão? O que vos fez Cristo, que suportou com tamanha paciência o traidor, a ponto de dar-lhe, como aos outros apóstolos, a primeira eucaristia, preparada por suas mãos e entregue com as palavras de sua boca (Lc 22,19.21)? O que vos fez Cristo, que chamou de diabo (Jo 6,71) o mesmo traidor. Este já antes de trair o Senhor, não foi fiel à bolsa do Senhor (ib. 12,6), ao ser enviado com os demais discípulos a pregar o reino dos céus (Mt 10,5), ficando assim demonstrado que os dons de Deus alcançam os que os recebem com fé, mesmo se for como Judas aquele de quem os recebem?

7 5“O Senhor habita em seu templo santo”. É isto o que assegura o Apóstolo: “Pois o templo de Deus é santo e esses templo sois vós. Se alguém destrói o templo de Deus, Deus os destruirá” (1Cor 3,17). Destrói o templo de Deus quem destrói a unidade, pois não se mantém unido à Cabeça, da qual todo o corpo, unido e coeso pelas juntas e articulações, segundo a operação proporcional de cada parte, cresce para sua edificação na caridade (Ef 4,16). Neste templo santo está o Senhor. Ele consta de muitos membros, cada qual fazendo a sua parte, para uma edificação na caridade. Destrói-o quem, para dominar, se separa da sociedade católica. “O Senhor habita em seu templo santo. No céu está o trono do Senhor”. Se interpretas a palavra céu como sendo o justo, assim como tomas por terra o pecador, ao qual foi dito: “Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,9), entenderás que a frase: “O Senhor habita em seu templo santo” é repetida na expressão: “No céu está o trono do Senhor”.

8 “Seus olhos volvem-se para o pobre”. Efetivamente o pobre se entregou a ele, que se fez o refúgio do pobre (Sl 9,10). Por isso, dentro das redes da Igreja, até que sejam arrastadas à praia, por homens que não querem ser pobres de Cristo ocasionados, sucedem-se sedições e tumultos, a respeito deles nos insultam os hereges, o que reverte em perdição para eles em nossa correção. Mas acaso eles afastam os olhos de Deus dos que querem ser pobres de Cristo? “Seus olhos volvem-se para o pobre”. Será de recear que não descubra no meio da turba dos ricos os poucos pobres, a fim de nutri-los no seio da Igreja católica? “Suas pálpebras interrogam os filhos dos homens”. De bom grado, e de acordo com a regra citada, chamarei de “filhos dos homens” os regenerados de seus antigos costumes, por meio da fé. Eles efetivamente exercitam-se na procura, através de certas passagens obscuras das Escrituras, que seriam os olhos de Deus fechados, assim como são iluminados, para sua alegria, pelos textos claros, que seriam os olhos de Deus abertos. Este assíduo abrir e fechar de olhos, nos Livros Sagrados, seriam as pálpebras de Deus a interrogarem, isto é, a provarem os filhos dos homens, incansáveis diante da obscuridade das questões e que se exercitam desta maneira. Não se orgulham de seus conhecimentos, porém se fortificam.

9 6“O Senhor interroga o justo e o ímpio”. Porque haveremos de temer que nos prejudiquem de algum modo os ímpios, que participassem de nossos sacramentos sem sinceridade de coração, uma vez que o Senhor interroga o justo e o ímpio? “Quem ama a iniquidade, odeia a sua alma”, isto é, quem ama a iniquidade não prejudica aquele que crê em Deus e não põe sua esperança num homem, mas causa dano somente a sua própria alma.

10 7.8“Sobre os pecadores fará chover laços”. Se em geral se entendem por nuvens os profetas bons ou maus (também chamados pseudoprofetas), de tal maneira o Senhor dispõe a respeito destes últimos que, por seu intermédio, faz chover laços sobre os pecadores. Não cai nesses laços, seguindo os falsos profetas, senão o pecador, seja como preparação para o extremo suplício, se preferir persistir no pecado; seja para desistir da soberba, se alguma vez procurar a Deus sinceramente. Se por nuvens se entender somente os bons e veradeiros profetas é evidente que Deus por meio deles faz chover laços apenas sobre os pecadores, embora irrigue também os piedosos para que deem fruto. Para uns, diz o Apóstolo, “somos odor que da vida leva à vida; para outros, odor que da morte leva à morte” (2Cor 2,16). Não só os profetas, mas todos os que irrigam as almas com a palavra de Deus podem ser chamados nuvens. Se tomadas em mau sentido, Deus faz chover laços sobre os pecadores; se em bom sentido, fecunda o peito dos piedosos e fiéis. Por exemplo, se o que está escrito: “Serão os dois uma só carne” (Gn 2,24), for interpretado no sentido da concupiscência, ele faz chover laços sobre os pecadores; se, ao invés, se entender como aquele que declara: “Refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja” (Ef 5,32), cai a chuva sobre terra fértil; da mesma nuvem, a Sagrada Escritura, provêm ambas as coisas. Igualmente proferiu o Senhor: “Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro, mas o que sai” (Mt 15,11). Ao ouvi-lo, o pecador prepara a gula à voracidade; ouve o justo e se precavém da superstição de fazer distinção entre os alimentos. Aqui, portanto, também a mesma nuvem das Escrituras, conforme o mérito da cada um, faz cair uma chuva de laços ao pecador e uma chuva fertilizante ao justo.

11 “Fogo, enxofre, vento tempestuoso será a parte de seu cálice”. Eis a pena e o fim daqueles por cuja causa o nome de Deus é blasfemado: primeiro, são devastados pelo fogo de suas paixões; segundo por suas obras fétidas são expulsos do grupo dos bem-aventurados; por fim, arrancados e submersos no inferno, sofrem penas indizíveis. Tal é a porção de seu cálice, assim como a porção dos justos é o cálice do Senhor inebriante, excelente (Sl 22,5)! “Inebriarse-ão na abundância de tua casa” (Sl 35,9). Penso que foi denominado cálice, para não julgarmos que a divina Providência atue sem proporção, nem medida, mesmo ao se tratar dos suplícios dos pecadores. Por isso, apresentando de certo modo o motivo de assim acontecer, acrescentou o salmista: “Porque o Senhor é justo e ama as justiças”. O plural não é ocioso. Talvez por se ter referido a homens, se entenda que justiças apareça em lugar de justos. Em muitos justos parece haver muitas justiças. No entanto, existe uma só, a de Deus, da qual as outras participam. De igual modo, se alguém se mira em muitos espelhos, em si o rosto é um só, mas se torna múltiplo através desses muitos espelhos. Por esta razão, de novo fala o salmista no singular: “Sua face mira a equidade”, como se dissesse: “Em sua face se viu a iniquidade”; em sua face, a saber, em seu conhecimento. A face de Deus é o poder com que se manifesta aos que são dignos. Ou provavelmente “sua face mira a equidade”, porque não se dá a conhecer aos maus, e sim aos bons. E isso é equidade.

12 Se alguém quer aplicar a lua à sinagoga, atribua o salmo à paixão do Senhor, e diga a respeito dos judeus: “Porque destruíram aquilo que bem executaste”, e profira acerca do próprio Senhor: “O que fez, porém, o justo?” acusado de destruidor da lei? Os judeus haviam praticamente abolido os preceitos da lei, vivendo mal, desprezando-a e estabelecendo seus próprios mandamentos. O Senhor, por isso, fala como homem, conforme costuma, dizendo: “No Senhor eu confio”. Porque dizeis a minha alma: Foge para o monte como o pássaro?” Assim fala, por causa das ameaças dos que queriam prendê-lo e crucificá-lo. Não é absurdo entender por pecadores que queriam “alvejar os retos de coração”, isto é, os que haviam acreditado em Cristo, “sob uma lua obscura”, a sinagoga repleta de pecadores. A quem se adapta também a palavra: “O Senhor habita em seu templo santo. No céu está o trono do Senhor”, isto é, o Verbo no homem, ou o próprio Filho do homem que está nos céus? “Seus olhos volvem-se para o pobre”, o que ele assumiu enquanto Deus, ou aqueles por quem padeceu, enquanto homem. “Suas pálpebras interrogam os filhos dos homens”. Podemos tomar o fechar e o abrir dos olhos, aqui provavelmente indicados sob o nome de pálpebras, na acepção de sua morte e ressurreição quando pôs à prova os filhos dos homens, os seus discípulos, aterrorizados com a paixão e alegres com a ressurreição. “O Senhor interroga o justo e o ímpio”, do céu já governando a Igreja. “Quem porém, ama a iniquidade, odeia a sua alma”. Por que motivo? Demonstram-no as palavras que seguem: “Ele fará chover laços sobre os pecadores”, conforme a exposição acima etc., até o fim do salmo.

1 Os donatistas

2 Os maniqueus (cf Aug. de Genesis contra Manich. 1,3,6; II, 25,38; de moribus Manich. 8,13; de haeresibus 46-Pl, 42,38).

3 Os donatistas

4 Os donatistas juravam pelas cãs de Donato.

5 Macário e Paulo, cerca de 348, foram enviados pelo imperador Constante à África. Os donatistas se queixavam de terem eles perseguido cruelmente o partido de Donato. Cf. Optat. contra Parmen. III, 4; Aug. epist. 44,4ss.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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