1 1Falamos de algumas coisas tão conhecidas de V. Caridade que não precisamos nelas nos deter. Passaremos por alto aquilo que já sabeis. Entendamos que somos nós os filhos de Coré. Lembro-vos que Coré significa calvície; que nosso Senhor, crucificado no Calvário, atraiu a muitos a si, como o grão de trigo, que se não morresse, ficaria só (cf Jo 12,24); e que os que foram atraídos se chamam filhos de Coré. Assim é, em mistério. Além disso, havia no tempo em que isto foi cantado, alguns filhos de Coré; mas o espírito deve nos vivificar e não a letra nos ocultar o seu sentido. Entendamos, pois, que se refere a nós. Vede se o que segue, isto é, se o contexto do próprio salmo a nós se adapta. Descobriremos que se aplica a nós, se estivermos incluídos entre os membros daquele corpo, cuja Cabeça se acha no céu, para onde subiu depois da paixão, a fim de levar consigo àquela abundância de bens os que estavam prostrados na humildade e deram frutos pela paciência. Efetivamente, está escrito: “Para o fim dos filhos de Coré, sobre os mistérios. Salmo”. É, portanto, oculto; mas sabeis que aquele mesmo que no Calvário foi crucificado, rasgou o véu, para que se manifestassem os segredos do templo (cf Mt 27,51). Por conseguinte, a cruz de nosso Senhor foi a chave que abriu os recintos fechados; acreditemos que estes mistérios nos hão de ser revelados. “Para o fim”, conforme traz o título, sempre se aplica a Cristo. “A finalidade da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). Fala-se de fim, não por consumir, mas por consumar. Pois, também dizemos que o alimento que era tomado chegou ao fim, e foi finalizada a túnica que era tecida; o primeiro foi consumido e a segunda consumada. Uma vez que, tendo chegado a Cristo, não temos além coisa alguma a que possamos tender, ele é denominado o fim de nossa carreira. Mas, não pensemos que tendo chegado até ele, tenhamos de empregar esforços ainda para alcançar o Pai. Filipe assim opinava, quando dizia ao Senhor: “Senhor, mostra-nos o Pai e isto nos basta”. Com os termos: “nos basta”, designa o fim, a saciedade e a perfeição. Responde-lhe o Senhor: “Há tanto tempo estou convosco e não me conheceis? Filipe, quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,8.9). Com ele, portanto, temos o Pai, porque ele está no Pai e o Pai nele. Ele e o Pai são um (cf Lc 10,30).
2 2A que nos admoesta aqui o cantor, no qual reconheçamos nossa voz se tivermos os sentimentos neste canto demonstrados? “Deus é nosso refúgio e nossa força”. Há refúgios tão desprovidos de força que se alguém fugir para lá, fica mais fraco, ao invés de encontrar reforço. Por exemplo, se te refugias junto de algum magnata do mundo, visando a obter um amigo poderoso; parece-te ser um refúgio. Como, porém, são tão incertas as coisas deste mundo, e de tal modo aumentam cada dia os poderosos arruinados, ao te abrigares neste refúgio começarás a sentir medo maior. Antes, tinhas receio apenas por tua causa; quando, porém, procuras tal socorro, o temor será também por causa dele. Muitos que procuraram tais refúgios, com a queda daqueles junto dos quais se abrigaram, foram também envolvidos. Ninguém os procuraria se não se houvessem ali refugiado. O nosso refúgio não é desta espécie, mas é refúgio e força. Ao nos refugiarmos ali, estaremos seguros.
3 “Auxílio nas tribulações que se acercaram de nós em demasia”. São muitas as tribulações e em todas elas o refúgio está no Senhor. Quer venha das questões familiares, da saúde corporal, do perigo de entes muito caros, de bens necessários ao sustento, não deve absolutamente haver para o cristão outro refúgio senão o seu Deus, para que seja forte em seu abrigo. Ele não será forte em si mesmo, não será a fortaleza para si; mas fortaleza para ele será quem se tornou o seu refúgio. Não obstante, caríssimos, entre todas as tribulações da alma humana nenhuma é maior do que a consciência dos delitos. Pois, se a consciência não está ferida, se é sadio o interior do homem, denominado consciência, qualquer que for a tribulação que o atingir em outras partes, ele pode nela se refugiar e lá encontrará a Deus. Se, ao invés, ali não encontra repouso, devido à quantidade de pecados, e portanto Deus ali não se acha, o que há de fazer o homem? Para onde fugirá ao começarem as tribulações? Fugirá do campo à cidade, da rua a sua casa, da casa ao quarto, e a tribulação irá atrás. Do quarto já não tem aonde ir, senão ao seu interior. Todavia, se ali há tumulto, se há a fumaça da iniquidade, a chama do crime, não pode se abrigar ali; é expulso dali, e ao ser expulso, é repelido por si mesmo. E assim encontra um inimigo no lugar em que se escondera; para onde fugirá de si mesmo? Seja para onde for que fugir, arrasta-se consigo. E aonde se arrastar, atormenta-se. São essas as tribulações que se acercam do homem em demasia; mais acerbas do que essas não há, e tanto mais acerbas quanto mais íntimas. Vede, caríssimos, os marceneiros derrubando árvores e examinando-as. Por vezes, na superfície parecem carcomidas e pútridas. O marceneiro examina o cerne, o centro da madeira, e se por dentro vir que está perfeita, garante que há de durar no edifício. Não se preocupará muito com a superfície carcomida, se por dentro estiver perfeita a madeira. Enquanto para o homem nada existe de mais íntimo do que a consciência. O que adianta, então, por fora estar sadio, se o íntimo da consciência está putrefacto? Estas tribulações são angustiosas e veementes, absolutamente, e conforme se exprime o salmo, são em demasia. Deus, contudo, mesmo nestas tribulações faz-se um auxílio, perdoando os pecados. Não cura as consciências dos malvados a não ser por indulgência. Se alguém se confessa devedor do fisco, sem recursos domésticos e insolúvel, diz que sofre grandes tribulações; por causa dos fiscais que vêm todo ano, afirma passar por enormes aflições e só respira com a esperança de obter um indulto, do ponto de vista material; com quanto mais razão, o réu de uma quantidade de delitos, não poderá pagar o débito de sua consciência pesada, uma vez que o preço seria sua condenação. Pagar tal débito representa sofrer o castigo correspondente. Resta, portanto, que possamos estar seguros acerca do perdão relativamente a eles; contanto que posteriormente não voltemos a contrair novas dívidas.
4 É possível também serem os filhos de Coré figura dos fiéis referidos nos Atos dos Apóstolos. Pedro falou a homens atentos às maravilhas operadas pela vinda do Espírito Santo, pois todos os que o receberam falavam todas as línguas. Anunciou-lhes o Cristo, que tinha o grande poder de enviar o Espírito Santo. Cristo, que eles haviam crucificado com suas mãos, e desprezado quando o mataram, tornou-se junto de Deus tão elevado e excelso que encheu com o Espírito Santo homens ignorantes e fez eloquentes as línguas das crianças. Com o coração transpassado, eles perguntaram: “Que devemos fazer?” Eram tribulações que se acercaram deles em demasia. Eles não descobriram seus pecados por si mesmos, mas os encontraram através da exortação dos apóstolos. Por conseguinte, foram as tribulações que se acercaram deles, e não eles das tribulações. Porquanto, se alguém, mesmo sem admoestação de outrem, considera o seu ato e roga a Deus, como se expressa? “Encontrei, diz ele, a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor” (Sl 114,3-4). Por conseguinte, uma é a tribulação que encontras e outra a que se acerca de ti. Em ambos os casos, quer a tribulação se acerque de ti, quer tu a encontres, a fim de vencer uma e outra, deves rogar àquele que é auxílio na tribulação. Mesmo quem a encontrou disse: “E invoquei o nome do Senhor”. E aqueles que se encontram nas tribulações que os cercaram, declaram: “Deus é nosso refúgio e nossa força, auxílio nas tribulações que se acercaram de nós em demasia”. Mas, como foi que Deus se fez auxílio? “Com o coração transpassado, disseram: Que devemos fazer?” Pareciam estar no maior desespero. Aquele que matamos é tão grande; o que será de nós? Pedro respondeu: “Convertei-vos, e seja cada um de vós batizado, em nome de Jesus Cristo, para remissão dos pecados” (At 2,4.37.38). Nada puderam planejar de mais grave do que este pecado. Que pecado mais grave pode cometer o doente do que matar o médico? Que de pior pode ele fazer do que matar seu médico? Se isto é perdoado, o que não o será? Daquele, portanto, ao qual denomina o salmista: “Refúgio e força”, eles receberam a maior garantia. “Seja cada um de vós batizado em nome de nosso Senhor Jesus Cristo”. Sede batizados em nome daquele que matastes, “para remissão de vossos pecados”. Reconhecestes o médico, ao menos posteriormente. Bebei com confiança o sangue que derramastes.
5 3Finalmente, tendo recebido tal segurança, o que dizem? “Por isso não temeremos se a terra estremecer”. Há pouco estavam solícitos; de repente encheram-se de segurança, saindo de excessivas tribulações para uma grande tranquilidade. Cristo para eles dormia, e por isso eles se perturbavam; Cristo foi despertado, como ouvimos há pouco no evangelho, ordenou aos ventos e fez-se grande tranquilidade (cf Mt 8,24-26). Cristo está no coração de cada um pela fé. Por esta razão, foi-nos indicado que um coração, como uma nave no meio da tempestade deste mundo se agita, se ele esquece a sua fé e perturba-se como se Cristo estivesse dormindo. Cristo desperta e faz-se a bonança. Enfim, o que diz o próprio Senhor? “Onde está a vossa fé” (Lc 8,25)? Cristo despertou e tornou a fé desperta, de sorte que no coração deles se fez o mesmo que se realizara na nave. “Auxílio nas tribulações que se acercaram de nós em demasia”. Fez com que ali reinasse a maior bonança.
6 Vede que tranquilidade: “Por isso não temeremos se a terra estremecer, se os montes se transportarem para o fundo do mar”. Então não temeremos. Procuremos saber quais são esses montes que se transportam. Se conseguirmos achar, será evidentemente nossa segurança. De fato, o Senhor disse aos discípulos: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Transporta-te daqui para o mar e isto se fará” (Mt 17,19). Talvez com a expressão: “este monte” quis referir-se a si mesmo, pois foi chamado de monte: “Dias virão em que o monte da casa do Senhor será manifesto”. Mas este monte estará mais elevado do que os outros outeiros, porque os apóstolos são montes, que sustentam este monte. Daí se segue: “Dias virão em que o monte da casa do Senhor será manifesto e se alçará acima de todos os outeiros” (cf Is 2,2). Ultrapassa, portanto, o cume de todos os montes, e acha-se colocado acima de todos eles; porque existem montes que o anunciam. O mar representa este mundo. Em comparação com este mar, o povo judaico parecia terra. Não estava encoberto pela amargura da idolatria, mas era como a terra seca, cercada do mar amargo das nações. A terra estava para ser conturbada, isto é, a própria nação judaica, e os montes se transportariam para o fundo do mar, isto é, em primeiro lugar o monte elevado, estabelecido acima do cume de todos os montes. Ele abandonou o povo judaico, e se estabeleceu no meio dos gentios; transferiu-se da terra para o mar. Quem o transferiria? Os apóstolos, aos quais Cristo dissera: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Transporta-te daqui para o mar, e isto se fará”, isto é, por meio de vossa pregação fiel far-se-á o mesmo que a este monte. Serei pregado no meio das nações, serei glorificado, conhecido, e suceder-me-á o que foi predito a meu respeito: “Um povo que eu não conhecia pôs-se a meu serviço” (Sl 17,45). Quando, porém, aqueles montes foram transferidos? Também isto indicam-nos as Escrituras divinas. Quando o Apóstolo pregava aos judeus, que repeliram a sua palavra, ele lhes disse: “Era primeiro a vós que devíamos anunciar a palavra de Deus. Como a rejeitais, nós nos voltamos para os gentios” (At 13,46). Os montes foram transferidos para o fundo do mar. Verdadeiramente os gentios acreditaram nos montes, e aqueles montes assim foram para o fundo do mar. Não fizeram como os judeus, acerca dos quais foi dito: “Este povo me glorifica com palavras, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13; Mt 15,8). O Senhor prometeu o mesmo no Novo Testamento, conforme disse pelo profeta: “Eu porei minha lei no seu coração” (Jr 31,33; Hb 8,10). Esta lei, esses preceitos foram indicados pelos apóstolos a todas as gentes para que acreditassem. São chamados de montes, que se transferiram para o fundo do mar. Então nós não temeremos. Quais são os que não temem? Aqueles que tiveram o coração transpassado, para não serem do número dos judeus réprobos, ramos quebrados. Alguns deles acreditaram e aderiram à pregação dos apóstolos. Temam, portanto, os que abandonaram os montes. Nós, porém, não nos afastamos dos montes; e quando eles se transferiram para o fundo do mar, nós os seguimos.
7 4Qual a consequência de se haverem os montes transferido para o meio do mar? Atenção. Vede a realidade. Quando se prediziam tais fatos, tudo era obscuro, porque ainda não haviam sucedido. Agora, contudo, quem não reconhece que se realizaram? Sirva-te de livro as páginas sagradas, para que ouças a profecia; usa o livro do orbe da terra, para verificares a sua realização. Podem ler os códices somente os que conhecem as letras; até os ignorantes podem ler o que acontece em todo o mundo. O que sucedeu, quando os montes foram transladados para o fundo do mar? “As águas produziram um estrondo, encresparam-se”. Disseram os atenienses quando o evangelho lhes era pregado: “Que é isto? Dir-se-ia um pregador de divindades exóticas” (At 17,18). Os efésios, porém, em tumulto queriam matar os apóstolos, quando no teatro, por causa de sua deusa Diana, fizeram tamanho barulho que clamavam: “Grande é a Diana dos efésios!” (At 19,28). No meio destas vagas e ruído do mar, aqueles que haviam procurado refúgio no Senhor não temiam. Enfim, o apóstolo Paulo queria entrar no teatro e os discípulos o impediram, porque ainda era necessário que ele permanecesse na carne por causa deles. Todavia “as águas produziram um estrondo, encresparam-se; abalaram-se os montes diante de sua fortaleza”. De quem? Do mar? Ou antes de Deus, de quem está escrito: “Nosso refúgio e nossa força, auxílio nas tribulações que se acercaram de nós em demasia?” Os montes se abalaram, isto é, os potentados deste mundo. Uns são os montes de Deus e outros os do mundo. Os montes do mundo têm o diabo por cabeça. Dos montes de Deus, Cabeça é o Cristo. Mas estes montes perturbaram aqueles. Então gritaram contra os cristãos; os montes se perturbaram com o ruído das ondas. Os montes abalaram-se, e houve um grande terremoto, com movimento das águas. Mas contra quem? Contra a cidade estabelecida sobre a pedra. As águas produzem estrondo, abalam-se os montes, com a pregação do evangelho. E o que te acontece, cidade de Deus? Ouve a continuação.
8 5“Um rio impetuoso alegra a cidade de Deus”. Os montes se abalam, o mar se enfurece. Deus não abandona a sua cidade, mas a alegra com um rio impetuoso. Qual? A inundação do Espírito Santo, a que se referia o Senhor: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, de seu seio jorrarão rios de água viva”. Tais rios jorravam do seio de Paulo, de Pedro, de João, dos outros apóstolos, dos outros evangelistas fiéis. Como estes rios provinham de um só rio, muitos “rios impetuosos alegram a cidade de Deus”. Pois, reconhecereis que o Espírito Santo o disse, uma vez que no mesmo evangelho diz o evangelista em seguida: “Ele falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem. O Espírito ainda não fora dado, porque Jesus não fora ainda glorificado” (Jo 7,37-39). Tendo sido Jesus glorificado após a ressurreição, após a ascensão, no dia de pentecostes, o Espírito Santo desceu, encheu o coração dos fiéis, que falaram em línguas, e o evangelho começou a ser pregado aos povos (cf At 2,4). Com isso alegrava-se a cidade de Deus, enquanto o mar se agitava com o estrondo de suas águas, os montes se abalavam, perguntando o que estava acontecendo, como repeliriam a nova doutrina, como arrancariam a raça dos cristãos da face da terra. Contra quem? Contra o rio impetuoso que alegra a cidade de Deus. Daí se deduz que o referido rio representava o Espírito Santo: “Um rio impetuoso alegra a cidade de Deus”. Qual a sequência? “O Altíssimo santificou o seu tabernáculo”. Se vem em seguida a palavra santificação é evidente que o rio impetuoso seria o Espírito Santo; ele santifica a alma piedosa que acredita em Cristo, tornando-se assim cidadão da cidade de Deus.
9 6“Deus está em seu meio; ela é inabalável”. Enfureça-se o mar, abalem-se os montes: “Deus está em seu meio; ela é inabalável”. Qual o sentido da expressão: “em seu meio”? Pareceria que Deus está num determinado lugar, e que o cercam os que nele creem. Deus, então, está encerrado num lugar, e têm espaço os que o cercam, enquanto ele se acha apertado? De modo nenhum. Não imagines tal coisa de Deus, que não está circunscrito a lugar algum, mas tem por morada a consciência dos homens piedosos. O coração dos homens é morada de Deus de tal modo que se o homem dele se afasta, Deus permanece em si mesmo; ele não cai, como se não encontrasse onde ficar. Antes é ele que te sustenta para seres nele, do que se apoia em ti de sorte que se te subtraíres ele caia. Se ele se subtrair, sim, é que tu cais; mas se te subtraíres, ele não cai. O que significa então: “Deus está em seu meio”? Significa que Deus é justo em tudo, e não faz acepção de pessoas. Quem está no meio, está a igual distância de ambos os extremos; assim se diz que Deus está no meio, cuidando igualmente de todos. “Deus está em seu meio; ela é inabalável”. Por que inabalável? Porque Deus está em seu meio. “Deus a ajudará com sua presença. Ele é auxílio nas tribulações que nos cercaram em demasia. Deus a ajudará com sua presença”. Qual o sentido de: “sua presença”? Ele se mostra. Como se mostra, de sorte que vejamos sua presença? Já relembro. Sabemos que Deus está presente, por suas obras. Quando recebemos dele alguma ajuda, de maneira que não tenhamos a menor dúvida de que foi Deus que no-lo concedeu, temos a presença de Deus. “Deus a ajudará com sua presença”.
10 7“As nações se agitaram”. Como se agitaram? Por que motivo? Para derrubarem a cidade de Deus, em cujo meio ele se encontra? Para arruinarem o tabernáculo santificado, que Deus ajuda com sua presença? Não. Mas as nações já se agitaram de modo salutar. Como continua o salmo? “Os reinos se dobraram”. Os reinos se dobraram, não estão mais eretos para se enfurecerem; mas dobraram-se para adorar. Quando eles se dobraram? Quando se realizou a predição de outro salmo: “Adorá-lo-ão todos os reis da terra, todas as nações o servirão” (Sl 71,11). Como agiu ele para os reinos se dobrarem? Escuta: “O Altíssimo fez ouvir a sua voz e tremeu a terra”. Os possessos dos ídolos coaxavam como rãs dos pântanos e faziam tanto maior ruído quanto mais cobertos de lodo e lama. Mas de que serve o coaxar das rãs diante dos trovões que vêm das nuvens? Daí, o “Altíssimo fez ouvir a sua voz e tremeu a terra”. Trovejou das nuvens. Quais as suas nuvens? Seus apóstolos, seus pregadores, por meio dos quais fazia atroar os preceitos, e corruscar os milagres. Eles são nuvens e ainda montes. Montes devido à altura e firmeza, nuvens por causa da chuva e fecundidade. Estas nuvens irrigaram a terra; delas foi dito: “O Altíssimo fez ouvir a sua voz e tremeu a terra”. É dessas nuvens que provêm as ameaças a certa vinha estéril (o povo judaico), de onde foram transferidos os montes para o fundo do mar. Disse o profeta: “Quanto às nuvens, ordenar-lhesei que não derramem a sua chuva sobre ela” (Is 5,6). Cumpriram-se as ameaças na ocasião que rememoramos, quando os montes se transladaram para o fundo do mar, e foi-lhes dito: “Era primeiro a vós que devíamos anunciar a palavra. Como a rejeitais, nós nos voltamos para os gentios” (At 13,46). Realizou-se a palavra: “Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela”. Enfim, o povo judaico continua agora seco como o tosão na eira. Pois, como sabeis, aconteceu este milagre. A eira ficou seca, e somente o tosão ficara úmido, mas não aparecia orvalho no tosão (Jz 6,37.38). Assim também o mistério do Novo Testamento não aparecia no povo judaico. Ali havia o tosão, e aqui o véu; o mistério estava velado no tosão. Na eira, porém, entre os gentios, revela-se o evangelho de Cristo; o orvalho é manifesto, evidente a graça de Cristo, que não está encoberta pelo véu. Para se extrair o orvalho, espremeu-se o tosão. Apertando-o, eles afastaram de si o Cristo, e assim o Senhor enviou de suas nuvens o orvalho para a eira, deixando seco o tosão. Por isso, “o Altíssimo fez ouvir a sua voz” através destas nuvens, e esta voz fez os reinos se inclinarem e adorarem.
11 8“Conosco está o Senhor dos exércitos. O nosso defensor é o Deus de Jacó”. Não é um homem qualquer, nem qualquer potentado, nem um anjo, nem outra criatura, quer da terra, quer do céu, mas conosco quem está é “o Senhor dos exércitos. O nosso defensor é o Deus de Jacó”. Ele enviou anjos, veio depois deles, veio para que os anjos o servissem, veio para tornar os homens iguais aos anjos. Grande graça! Se Deus é por nós, quem será contra nós (cf Rm 8,31)? “Conosco está o Senhor dos exércitos”. Quem é o “Senhor dos exércitos que está conosco”? Se Deus está conosco, quem estará contra nós? “Quem não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele?” (Rm 8,31.32). Por conseguinte, estejamos seguros, e nutramos com o pão do Senhor uma boa consciência, em tranquilidade de coração. “Conosco está o Senhor dos exércitos. O nosso defensor é o Deus de Jacó”. Por maior que seja tua fraqueza, vê quem é que te defende. Alguém adoece, chama-se o médico; ele diz que o doente é seu protegido. Quem o defende? Ele. A esperança da saúde é grande porque um bom médico o atende. Qual? Todo médico, exceto ele, é um homem; todo médico que atende um enfermo, pode adoecer no dia seguinte, exceto ele. “O nosso defensor é o Deus de Jacó”. Torna-te uma criança, bem pequenina, como aqueles que os pais recebem. As que não são aceitas, são expostas; as que são aceitas são sustentadas. Pensas que Deus te recebeu como tua mãe te aceitou quando eras criancinha? Não foi assim, mas foi desde toda eternidade. É tua a palavra de outro salmo: “Meu pai e minha mãe me abandonaram. O Senhor, porém, me acolheu” (Sl 26,10). “O nosso defensor é o Deus de Jacó”.
12 9“Vinde contemplar as obras do Senhor”. Relativamente a esta aceitação, o que fez o Senhor? Observa o orbe da terra. Vem e vê. Se não vens, não vês; se não vês, não crês; se não crês, ficas de longe; se acreditas, vens; se crês, vês. Como se alcança este monte? Com os pés? Por navio? Com asas? Em cavalos? Não te agites, não te perturbes, quanto aos espaços; ele vem a ti. Pois, uma pequena pedra cresceu e se tornou uma grande montanha, que encheu toda a terra. Como queres chegar até ele, atravessando terras, se ele encheu a terra? Eis que ele vem. Alerta! Vem chegando e sacode os que dormem; contanto que o sono não seja tão pesado que continuem dormindo, apesar de o monte vir chegando, mas ouçam a palavra: “Ó tu que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará” (Ef 5,14). Foi inutilmente que os judeus viram a pedra. Ainda era pequenina, e eles desprezaram a sua pequenez; desprezando-a tropeçaram e tropeçando se quebraram. Falta somente serem esmagados. Foi referido daquela pedra: “Aquele que cair sobre essa pedra vai se quebrar de todo, e aquele sobre quem ela cair, o esmagará” (Lc 20,18). Uma coisa é ser esmagado e outra ser quebrado; quebrar-se é menos do que ser esmagado. Mas, o Altíssimo, em sua vinda a ninguém esmaga, a não ser aquele que se tiver quebrado diante do que estava humildemente prostrado. Pois, agora, antes que nosso Senhor volte, mostrou-se humilde diante dos judeus, e estes tropeçaram e se quebraram; o Senhor voltará depois para julgar mostrando-se, ilustre, elevado, grandioso e potente; não virá na fraqueza para ser julgado, mas cheio de força para julgar, e esmagará os que se quebraram, escandalizados por sua causa. Ele é, de fato, pedra de tropeço e de escândalo para os que nele não acreditam. Portanto, caríssimos, não é de admirar que os judeus não tenham conhecido aquele que eles desprezaram como uma pedrinha, a seus pés. É espantoso que outros não o tenham querido reconhecer quando já era uma grande montanha. Os judeus tropeçaram na pedrinha que não viram, e os hereges tropeçam no monte. Aquela pedrinha já cresceu. Já podemos lhes dizer: Cumpriu-se a profecia de Daniel: “E a pedra”, que era pequena, “tornou-se uma grande montanha, que ocupou a terra inteira” (cf 1Pd 2,8; Dn 2,35). Por que tropeçais na pedra, ao invés de subir o monte? Quem é tão cego que tropece num monte? Ages como se ele tenha se colocado ali para tropeçares, e não para teres aonde subir. “Vinde, subamos ao monte do Senhor” (Is 2,3). Assim fala Isaías: “Vinde, subamos”. O que quer dizer: “Vinde, subamos? Vinde”, isto é, acreditai. “Subamos”, aperfeiçoemo-nos. Alguns, porém, não querem vir, nem subir, nem crer, nem progredir. Ladram contra o monte. Tantas vezes eles tropeçaram que se quebraram, e preferem não subir, mas ficar sempre tropeçando. Exortemo-los: “Vinde contemplar as obras do Senhor, os prodígios que operou na terra”. Chamam-se prodígios porque prenunciam alguma coisa, aqueles milagres que se realizaram quando o mundo acreditou. O que foi que estes prodígios realizaram, prenunciaram?
13 10“Pôs termo aos combates até os confins da terra”. Ainda não vemos isto realizado. Ainda existem guerras: entre os povos, por um reinado; entre seitas, entre judeus, pagãos, cristãos, hereges há guerras, intensificam-se os combates. Uns lutam pela verdade, outros em prol da falsidade. Ainda não se cumpriu o que foi dito: “Pôs termo aos combates até os confins da terra”; mas talvez se cumpra. Será que agora já se cumpriu? Em alguns, sim. No meio do trigo, já se fez; entre o joio, não. Então, o que significa: “Pôs termo aos combates até os confins da terra”? O salmista chama de guerra os ataques contra Deus? Quem combate contra Deus? A impiedade. E o que pode a impiedade fazer contra Deus? Nada. Qual o resultado que obtém um vaso de barro que se joga contra a pedra, mesmo que bata com força? Sua desgraça é tanto maior quanto maior for o seu ímpeto. Fortes eram estas guerras; muito frequentes. A impiedade lutava contra Deus, e quebravam-se os vasos de argila. Os homens presumiam de suas forças, prevalecendo por causa delas. Também Jó se refere a tal como se fosse um escudo, ao falar de certo ímpio: “Corre contra Deus, sob o dorso espesso de seus escudos” (Jó 15,26). O que quer dizer: “sob o dorso espesso de seus escudos”? Presumindo muito de sua proteção. Seriam estes que diziam: “Deus é nosso refúgio e nossa força, auxílio nas tribulações que de nós se acercaram em demasia?” Ou em outro salmo: “Não é em meu arco que porei a confiança, nem é meu braço que me salvará” (Sl 43,7)? Quando alguém reconhece que em si mesmo nada é, e que não encontra em si auxílio algum, quebra as armas e termina com as guerras. Tais guerras foram as que dissipou a voz do Altíssimo, através das nuvens de seus santos, e que abalou a terra e dobrou os reinos; ele tirou estas guerras, até dos confins da terra. “Partirá o arco, quebrará as armas, e consumirá no fogo os escudos”. Arco, armas, escudos, fogo. Arco significa as insídias; as armas representam os ataques públicos; o escudo, a proteção vã da presunção. O fogo que consumirá tudo isto vem do Senhor que disse: “Eu vim trazer fogo à terra” (Lc 12,49). A este fogo refere-se outro salmo: “Ninguém se subtrai a seu calor” (Sl 18,7). Estando aceso este fogo, não restarão mais em nós armas da impiedade. Forçosamente tudo será quebrado, esmigalhado, queimado. Permanece inerme, sem ter qualquer outro auxílio; e quanto mais fores fraco, desarmado, tanto mais te acolhe aquele do qual foi dito: “O nosso defensor é o Deus de Jacó”. Sentias valor, como se o auxílio viesse de ti mesmo; serás abalado em ti. Perde as armas nas quais confiavas e escuta o Senhor a te dizer: “Basta-te a minha graça”, e de tua parte, dize: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,9.10). É palavra do Apóstolo. Perdera todas as suas armas, a sua fortaleza, aquele que dizia: “Por isso, eu não me gloriarei senão de minhas fraquezas” (2Cor 12,9.10), como se dissesse: Não corro contra Deus, sob o dorso espesso de meus escudos, “eu, outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia, para que em mim, Cristo Jesus demonstrasse toda a sua longanimidade, como exemplo para quantos nele hão de crer, para a vida eterna” (1Tm 1,13.16). “Pôs termo aos combates até os confins da terra”. Quando Deus nos acolhe, despede-nos inermes? Ele nos arma, mas com armas diferentes: as do evangelho, da verdade, da continência, da salvação, da esperança, da fé, da caridade. Teremos estas armas, mas não as obteremos por nós mesmos. As armas que tínhamos, obtivéramos por nós mesmos, queimaram-se, se de fato, nós nos inflamamos por meio daquele fogo do Espírito Santo, do qual foi dito: “Consumirá no fogo os escudos”. Querias ser forte por ti mesmo. Deus te tornou fraco. Queria fazer-te forte, ele mesmo, visto que por ti estavas enfraquecido.
14 11Como continua o salmista? “Cessai”. Para quê? “Reconhecei que eu sou Deus”. Quer dizer: Vós não sois deuses; eu é que sou Deus. Eu criei, e novamente crio; formei e reformo; fiz e refaço. Se não pudeste fazer-te, como poderás refazer-te? O tumulto, a revolta do espírito humano impede que se veja isto. Em vista deste tumulto e desta revolta, se diz: “Cessai”, isto é, reprimi as contradições de vosso ânimo. Não argumentes, nem te armes contra Deus; do contrário, terás armas somente enquanto não forem queimadas por aquele fogo. Se forem consumidas, “cessai”, porque não tendes com que lutar. Se cessardes, e me pedirdes o que constituía antes o objeto de vossa presunção, “cessai e” vereis “que eu sou Deus”.
15 “Serei exaltado entre as nações e glorificado sobre a terra”. Afirmei um pouco acima que terra representava o povo judaico, e mar as demais nações. Os montes se transferiram para o fundo do mar; as nações se agitaram e os reinos se dobraram, o Altíssimo fez ouvir a sua voz e tremeu a terra. “Conosco está o Senhor dos exércitos. O nosso defensor é o Deus de Jacó”. No meio das gentes realizaram-se milagres, os povos receberam a fé, arderam as armas da presunção humana. Cessaram, com o coração tranquilo, e foi conhecido Deus, autor de todos os dons. E depois desta glorificação, Deus abandonaria o povo judaico, do qual diz o Apóstolo: Digo-vos, para que “não vos tenhais na conta de sábios: o endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios” (Rm 11,25.26)? A saber, até que os montes se transportassem para cá, as nuvens chovessem aqui, o Senhor dobrasse os reinos, através de seus trovões, até que “chegasse a plenitude dos gentios”. E depois? “E assim todo Israel será salvo” (Rm 11,26). Por conseguinte, também aqui a ordem é observada, conforme está escrito: “Serei exaltado entre as nações e glorificado sobre a terra”, isto é, no mar e na terra, de modo que todos repitam o seguinte: “Conosco está o Senhor dos exércitos. O nosso defensor é o Deus de Jacó”.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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