1 Tudo aquilo que nosso Senhor Jesus Cristo predisse, parcialmente já foi cumprido, e parcialmente ainda esperamos. Tudo, no entanto, se cumprirá, porque foi a Verdade que o predisse, e o que foi predito com fidelidade, exige homens fiéis. Quem crê, alegrar-se-á quando vierem; quem não crê, será confundido diante dos eventos. Eles virão, contudo, queiram ou não queiram os homens, acreditem ou não acreditem, conforme declara o Apóstolo: “Se nós o renegamos, também ele nos renegará. Se lhe somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar-se a si mesmo” (2Tm 2,12.13). Além do mais, irmãos, relembrai-vos brevemente, e guardai na memória o que todos nós acabamos de ouvir do evangelho: “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 10,22; 24,13). Nossos antepassados foram levados aos tribunais, defenderam sua causa junto de inimigos, que eles amavam; dedicaram-lhes toda a correção que puderam, e toda caridade de que dispunham. O sangue justo foi derramado, e daquele sangue, como uma semeadura feita por todo o mundo, brotou a messe da Igreja. Seguiu-se, porém, o tempo dos escândalos, da simulação, das provas, da parte daqueles que dizem: “Olha o Messias aqui, ou ali” (Mt 24,23). Aquele nosso inimigo era leão quando se enfurecia abertamente; agora é dragão quando ocultamente arma ciladas. Aquele, porém, ao qual foi dito: “Calcarás o leão e o dragão” (Sl 90,13), porque somos seu corpo e seus membros, como calcou aos pés o leão abertamente enfurecido, que arrastou os mártires aos tormentos, por meio dos pés de nossos pais, assim agora calque o dragão, para que não nos arme insídias. O Apóstolo nos acautela contra esse dragão, com as seguintes palavras: “Desposei-vos a um esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura. Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da castidade devida a Cristo Jesus” (2Cor 11,2.3). Esta serpente, portanto, o antigo adúltero, procura corromper a virgindade, não da carne, mas do coração. Como, porém, o adúltero se alegra em sua malícia, ao corromper a carne, assim o diabo se regozija ao corromper a mente. Como a nossos pais era necessária a paciência no combate contra o leão, assim precisamos da vigilância contra o dragão. No entanto, a perseguição, seja do leão, seja do dragão nunca cessa para a Igreja; e é mais temível quando engana do que quando se enfurece. Naquele tempo queria forçar os cristãos a negarem a Cristo; agora ensina os cristãos a negarem a Cristo; então coagia, agora ensina. Então introduzia violências; agora, insídias. Aparecia então furioso, agora mostra-se insinuante e dificilmente aparenta erro. É evidente como então coagia os cristãos a negarem a Cristo. Eram arrastados para negarem, mas como confessavam, eram coroados. Agora, porém, ensina a negar a Cristo; e por isso engana, porque aquele que é persuadido a negar a Cristo, de certo modo julga que não se aparta de Cristo. Agora o que se diz da parte dos hereges1 ao cristão católico? Vem, torna-te cristão. Eles dizem: Torna-te, para que perguntes: Então não sou? É muito diferente dizer: Vem, torna-te cristão, ou: Vem nega a Cristo. O mal às claras, o rugido do leão, ouve-se de longe, e de longe se tem cautela. O dragão insinuante, a serpente de bote oculto e que se arrasta de modo subreptício, sibilando astutamente, não diz: Nega a Cristo. Pois qual dos mártires coroados ouviria? Mas diz: Torna-te cristão. E ele, admirado com esta palavra, e não tendo ainda sido inoculado em si o veneno, responderá: de fato, eu sou cristão. Se, porém, fica abalado, e foi apanhado pelos dentes do dragão, responderá: Por que me dizes: Torna-te cristão? O que há então? Não sou cristão? E ele: Não. Portanto, não sou? Não. Então, faze-me cristão, se não sou. Vem. Mas ao começares a ser interrogado pelo bispo quem és, não digas: Sou cristão. Ou: Sou fiel. Mas dize que não és cristão, para poderes ser. Se declarares ser cristão e fiel, ele não ousará te rebatizar 2 . Se ouvir que não és cristão, dar-te- á o batismo, como se não o tivesses. Ele não poderá ser inculpado, porque agiu conforme a tua declaração. Eu te pergunto, ó herege, como te consideras isento de culpa? O que ouço através desta palavra? Que tu não negas, mas é ele quem nega? Se tem culpa aquele que nega, não a terá aquele que o induz a negar? Então serias sem culpa porque persuadindo fazes, sendo cristão, o que fazia o pagão com ameaças? E o que consegues? Acaso tiras o que ele tem, porque o negou? Não obténs que ele não tenha o batismo, e sim que tenha culpa. Se ele tem, tem. O batismo imprimiu-lhe um caráter, era ornamento do soldado, e convence o desertor. O que estás fazendo? Impões a Cristo sobre Cristo. Se fosses simples, não duplicarias a Cristo. Enfim, pergunto, tu te esqueceste de que Cristo é a pedra, e “a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (Sl 117,22; Mt 21,42; 1Pd 2,4.7)? Se Cristo é a pedra, e queres pôr Cristo sobre Cristo, não te lembras do que ouviste no evangelho, que não ficará pedra sobre pedra (cf Mt 24,2)? Tanto vale, porém, a junção da caridade que, apesar de muitas pedras vivas se reunirem na estrutura do templo de Deus, de todas se faz uma só pedra. Tu, porém, te separaste; és retirado da edificação, e levado para a ruína. Abundam tais ciladas e não param. Vemos, toleramos, à medida do possível tentamos reprimir, disputando, convencendo, reunindo, ameaçando, não obstante amando sempre. E ao agirmos assim, eles perseveram no mal. Nosso coração desfalece diante da morte dos irmãos, quando lastima os que estão fora, teme por causa dos de dentro; no meio das angústias multiformes e incessantes tentações, de que abunda a vida presente, o que haveremos de fazer? Por causa da abundância da iniquidade, há certo torpor na caridade: “Pelo crescimento da iniquidade, o amor de muitos esfriará”. E o que haveremos de fazer, senão o que segue, se o pudermos, com o auxílio de Deus: “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 24,12.13)?
2 2.3Portanto, digamos com o salmo: “No Senhor pus toda a minha esperança. Pus toda a minha esperança”, não na promessa de um homem, que pode enganar e ser enganado, no consolo de um homem, que pode por sua tristeza mais desanimar-me do que estimular-me. Console-me o homem, meu irmão, ficando triste comigo; juntos gemamos, juntos choremos, juntos rezemos, juntos suportemos; quem é ele, senão o “Senhor”, que não falha em sua promessa; apenas adia seu cumprimento? Cumprirá, de fato, cumprirá, porque já cumpriu muitas vezes. Nada devemos recear da fidelidade de Deus, embora ainda não tenha cumprido. Pensemos assim. Tudo prometeu, ainda não deu tudo; é idôneo para prometer, fiel para cumprir; tu apenas sejas um piedoso cobrador, embora pequenino, embora fraco. Exige a misericórdia. Não vês os carneirinhos baterem com a cabeça no úbere das mães, para se saciarem de leite? “No Senhor pus toda a minha esperança”. E o que faz ele? Afasta-se de ti, despreza aquele que confia; ou ele não vê? Absolutamente não. Mas, então? “Atendeu-me e ouviu-me as preces”. Atendeu e ouviu. Não foi em vão que esperaste. Os seus olhos repousam em ti, seus ouvidos estão atentos. “Os olhos do Senhor estão inclinados para os justos, e os ouvidos, atentos as suas preces” (Sl 33,16). Então, ele não via quando fazias o mal, quando blasfemavas contra ele? Não ouvia? Como se realiza então a palavra do mesmo salmo: “Mas a face do Senhor volta-se contra os malfeitores?” Para quê? “Para apagar da terra a sua lembrança” (Sl 33,17). Portanto, quando eras mau ele te ouvia, mas não te atendia. Por conseguinte, para este que no Senhor pôs toda a esperança foi pouco dizer: Ouviu-me, mas acrescentou: “Atendeu-me”, isto é, consolando-me atendeu, da forma que me era proveitosa. Como atendeu? “E ouviu-me as preces”.
3 4E o que te adiantou? O que te fez? “Retirou-me da fossa da miséria e do atoleiro. Firmoume os pés sobre a rocha e dirigiu-me os passos. Pôs em minha boca um cântico novo, um hino a nosso Deus”. Ele nos concedeu grandes bens, e ainda é devedor; mas já os recebeu, espere os restantes quem devia acreditar nele mesmo antes de receber alguma coisa. Os fatos convencem-nos de que nosso Senhor é fiel prometedor e generoso doador. O que fez agora? “Retirou-me da fossa da miséria”. O que é a fossa da miséria? As profundezas da iniquidade, oriunda das concupiscências carnais. É o significado de “atoleiro”. De onde ele te retirou? Das profundezas. Por isso clamavas em outro salmo: “Das profundezas clamei a ti, Senhor” (Sl 129,1). Aqueles que já clamam das profun-dezas, não estão inteiramente no fundo; o clamor já os levanta. Há alguns tão mergulhados nas profundezas que nem sentem que estão nas profundezas. Tais são os soberbos desprezadores, que não suplicam com piedade, nem clamam com lágrimas. São tais quais a Escritura os designa em outra passagem: “O pecador, ao atingir as profundezas do mal, despreza” (cf Pr 18,3). Aquele a quem não basta ser pecador, mas ainda em vez de confessar seus pecados os defende, mergulha mais fundo ainda. Aquele que clamou das profundezas, para clamar já levantou a cabeça do lugar mais fundo; foi ouvido, retirado da fossa da miséria, e do atoleiro. Já possui a fé que não tinha; recupera a esperança, anda com Cristo quem errava na companhia do diabo. Por isso, disse: “Firmou-me os pés sobre a rocha e dirigiu-me os passos. Essa rocha era Cristo” (1Cor 10,4). Estejamos sobre a rocha, e sejam dirigidos os nossos passos; ainda precisamos caminhar para chegarmos a determinado ponto. Pois, o que dizia o apóstolo Paulo, que já estava firmado sobre a pedra, e tinha dirigidos os seus passos? “Não que eu já o tenha alcançado, ou que já seja perfeito. Irmãos, eu não julgo que eu mesmo o tenha alcançado” (Fl 3,12.13). O que te foi dado, se não alcançaste? Por que dás graças, ao dizeres: “Mas obtive misericórdia” (1Tm 1,16)? Porque seus passos já têm uma direção, porque já caminha sobre a rocha. E o que diz? “Uma só coisa faço: esquecendo-me do que fica para trás”… O que está para trás? A fossa da miséria. O que significa: para trás? O atoleiro, as concupiscências carnais, as trevas da iniquidade. “Esquecendo-me do que fica para trás, e avançando para o que está diante”. Não diria: avançando, se já tivesse chegado. O ânimo avança pelo desejo do bem cobiçado, e não pela alegria do que já conseguiu. “Avançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus” (Fl 3,13.14). Corria, prosseguia para obter a palma. E declara em outra passagem, já próximo de obter a palma: “Terminei a minha carreira” (2Tm 4,7). Por conseguinte, quando dizia: “Prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto” (Fl 3,14), seus passoa já estavam na direção certa, já estava no bom caminho; tinha de que dar graças, tinha o que pedir. Dava graças pelos dons recebidos, e pedia o que lhe era devido. Quais os dons recebidos? O perdão dos pecados, a iluminação da fé, o vigor da esperança, a chama da caridade. A respeito de que tinha ainda o Senhor como devedor? “Desde já me está reservada a coroa da justiça”. Portanto, alguma coisa ainda lhe era devida. O que lhe era devido? “A coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia” (2Tm 4,8). Primeiro, Deus era o pai benigno, que libertou da fossa da miséria, perdoou os pecados, livrou do atoleiro; depois será o justo juiz, que dará a quem viver bem o prometido, tendo anteriormente dado a graça para que ele bem vivesse. Retribuirá, portanto, o juiz justo; mas a quem? “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 10,22 e 24,13). 1 Pelos donatistas. 2 Por lei do Imperador era sujeito a penas reiterar o batismo (cod. Theod., lib. XVI, tit. Ne sanctum baptisma interetur).
4 “Pôs em minha boca um cântico novo”. Qual cântico novo? “Um hino a nosso Deus”. Cantavas talvez hinos aos deuses estrangeiros, velhos hinos, porque era o velho homem quem cantava, não o novo. Faça-se homem vivo, cante o cântico novo. Renovado, ame as coisas novas, que o renovam. Pois, o que há de mais antigo do que Deus, que existe antes de todas as coisas e é sem fim e sem início? Faz-se novo para ti, ao voltares, porque ao te afastares te havias feito velho, e dizias: “Envelheci em meio de todos os meus inimigos” (Sl 6,8). Cantamos, pois, um hino a nosso Deus, e ele nos liberta. “Com louvores, invocarei o Senhor e serei salvo de meus inimigos” (Sl 17,4). Hino é cântico de louvor. Invoca com louvores, não com censuras. Quando invocas a Deus a fim de que reprima teu inimigo, quando queres te alegrar por causa do mal alheio, e invocas a Deus em vista deste mal, queres que seja participante de tua malícia. Se o fazes participante da malícia, não o invocas com louvores, mas com censuras. Pensas que Deus é igual a ti. Por isto, te é dito em outra passagem: “Fizeste isto e calei; suspeitaste, devido à tua iniquidade, que sou semelhante a ti” (Sl 49,21). Por conseguinte, invoca o Senhor com louvores; não o consideres igual a ti, para te assemelhares a ele. “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,48.45). Louva pois, o Senhor, sem querer mal a teus inimigos. E quantos bens hei de desejar a eles? Quantos desejas para ti mesmo. Não receberão do que é teu para serem bons, nem diminuirá o que é teu o que lhes é dado. Teu inimigo, porque é mau, é inimigo; faça-se bom e será amigo e companheiro. E já se tornará teu irmão, para que queiras possuir juntos o que amavas. Invoca, pois, com louvores, canta um hino a teu Deus. “O sacrifício de louvor me glorificará” (Sl 49,25). Como? Será maior a glória de Deus se o glorificas? Ou acrescentamos algo à glória de Deus quando lhe dizemos: Eu te glorifico, meu Deus? Ou o fazemos mais santo quando dizemos: Eu te bendigo, meu Deus? Ele, ao nos bendizer, torna-nos mais santos, faz-nos mais felizes; ao nos glorificar, torna-nos mais gloriosos, mais cobertos de honras; ao invés, quando o glorificamos, nós é que lucramos, não ele. Como, então, o glorificamos? Declarando-o glorioso, mas não fazendo-o. Por conseguinte, o que acontece ao dizer o salmista: “O sacrifício de louvor me glorificará” (49,25)? Ele te diz, para não pensares que prestas benefício a Deus, ao lhe ofereceres um sacrifício de louvor: “Este é o caminho onde lhe mostrarei a minha salvação” (Sl 49,25). Vês como é a ti que é proveitoso louvar a Deus, não a ele. Louvas a Deus? Andas pelo caminho. Censuras a Deus? Perdeste o caminho.
5 “Pôs em minha boca um cântico novo, um hino a nosso Deus”. Talvez pergunte alguém quem fala neste salmo. Direi brevemente: é Cristo. Mas, como sabeis, irmãos, e devemos repetir muitas vezes, Cristo às vezes fala por si, isto é, enquanto nossa Cabeça. Ele é o Salvador do corpo, nossa Cabeça, Filho de Deus nascido da Virgem, que sofreu por nós, ressuscitou para nos justificar, está sentado à direita de Deus para interceder por nós, e que há de retribuir no juízo a todos os nossos atos, concedendo bens aos bons, males aos maus. Nossa Cabeça, dignou-se fazer-se cabeça do corpo, assumindo a carne de nossa natureza, segundo a qual morreria em nosso favor; ele também a ressucitou por nossa causa, para naquela carne oferecer-nos um exemplo de ressurreição. Assim aprenderíamos a esperar aquilo de que já havíamos perdido a esperança, e teríamos os pés firmados na rocha, andando em Cristo. Este fala, portanto, algumas vezes enquanto nossa Cabeça, fala por outras também em nosso lugar, isto é, em vez de seus membros. Quando disse: “Tive fome e me destes de comer” (Mt 25,35) falava em lugar de seus membros, não por si mesmo. E quando disse: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9,4), a Cabeça clamava em lugar dos membros; contudo não perguntou: “Por que persegues os meus membros?” mas: “Por que me persegues?”. Se ele padece em nós, também nós nele seremos coroados. Esta é a caridade de Cristo. O que lhe é comparável? Ele pôs em nossa boca este hino, e assim fala por seus membros.
6 “Os justos verão e hão de temer e esperar no Senhor. Verão os justos”. Quais? Os fiéis, porque o justo vive da fé (cf Hab 2,4; Rm 1,17). Por isso, na Igreja existe esta ordem: uns precedem, outros seguem. Os que precedem dão exemplo aos que seguem; e os que seguem imitam seus antecessores. Mas aqueles que dão exemplo aos seguintes, não seguem a ninguém? Se a ninguém seguem, haverão de errar. Seguem, pois, a alguém, o próprio Cristo. Aos melhores na Igreja, que já não têm a quem imitar, porque superaram a todos em perfeição, resta-lhes Cristo, a quem devem seguir até o fim. Vedes a ordem nas palavras do apóstolo Paulo: “Sede meus imitadores, como eu sou de Cristo” (1Cor 4,16). Aqueles, portanto, que já têm os passos firmes sobre a rocha, sejam o modelo dos fiéis. “Sê para os fiéis um modelo” (1Tm 4,12). Os fiéis são os justos que, atentos àqueles que os precedem no bem, seguem-nos imitando-os. Como seguem? “Os justos verão e hão de temer”. Verão e hão de ter medo de seguir caminhos errados, observando que os melhores já escolheram caminhos bons; e, como costumam falar os viajantes, notando que alguns vão pelo caminho com certa presunção, enquanto eles estão na incerteza e hesitantes por onde passar, dizem a si mesmos: Não há de ser inutilmente que passam por aqui aqueles que se encaminham para o mesmo lugar aonde vamos; e por que vão por aqui com tanta confiança, senão porque ir por lá deve ser prejudicial? “Verão os justos e hão de temer”. Verificam que por aqui o caminho é estreito, e por ali é largo; por aqui há poucos e muitos por lá (cf Mt 7,13.14). Mas se és justo, não contes, mas pese; usa uma balança fiel, não fraudulenta, porque és denominado justo: “Os justos verão e hão de temer”, foi dito a teu respeito. Não contes as turbas dos homens que avançam por largos caminhos, que amanhã encherão o circo, celebrando com clamores o aniversário da cidade, e no entanto, manchando a cidade com sua vida depravada. Não lhes dês atenção. São muitos e quem os calcula? Poucos, porém, os que vão pelo caminho estreito. Digo: Traze uma balança, pesa; contra uns poucos grãos vê quanta palha. Assim procedam os justos fiéis que seguem. E os que precedem? Não se ensoberbeçam, não se exaltem, não enganem os que os seguem. Como podem enganar os que os seguem? Prometendo-lhes por si mesmos a salvação. Como devem agir os que seguem? “Verão os justos e hão de temer e esperar no Senhor”, não nos que os precedem. Atentos àqueles que os precedem, seguirão de fato e imitarão, pensando de quem receberam seus antecessores, e no Senhor esperando. Apesar de imitá-los, põem a esperança naquele que lhes deu serem o que são. “Verão os justos e hão de temer e de esperar no Senhor”, conforme se encontra naquele salmo: “Ergui os olhos para os montes” (Sl 120,1). Entendemos por montes aqueles que na Igreja são espiritualmente grandes e ilustres, mas sua grandeza é sólida e não estremecida. Por eles a Escritura nos foi dispensada; são profetas, são evangelistas, são doutores excelentes. “Ergui os olhos para os montes; de onde me virá o auxílio” (Sl 120,1.2)? E a fim de não pensares em auxílio humano, acrescenta: “O meu auxílio está no Senhor, que fez o céu e a terra. Verão os justos e hão de temer e de esperar no Senhor”.
7 5Avante os que querem esperar no Senhor, os que veem e temem. Receiem andar por caminhos errados, estradas largas; escolham o caminho estreito, onde seus passos já estejam firmes sobre a rocha. Ouçam agora o que têm a fazer. “Feliz o homem que pôs no nome do Senhor a esperança e não olhou vaidades e enganosas loucuras”. Eis por onde querias ir, eis as multidões do caminho largo. Não é em vão que ele conduz ao anfiteatro, não é em vão que conduz à morte. O caminho largo é mortífero; a amplidão que possui deleita de modo transitório, mas seu fim angustiado é eterno. Mas as multidões fazem barulho, as multidões se apressam, as multidões se alegram, as multidões concorrem. Não imites, não mudes de direção; são vaidades e loucuras mentirosas. Seja o Senhor teu Deus a tua esperança; não esperes outra coisa do Senhor teu Deus, mas o próprio Senhor seja a tua esperança. Pois muitos de Deus esperam dinheiro, muitos esperam de Deus honras caducas e passageiras, e outras coisas mais, exceto o próprio Deus. Mas tu pede o próprio Deus. Ainda mais. Desprezando as demais coisas, parte para junto dele; esquecendo-te das outras coisas, lembra-te dele. Deixando as outras para trás, avança para ele. Ele certamente corrige o errante, ele conduz pelo caminho reto, ele leva até o fim; portanto, seja ele a tua esperança, ele que conduz e leva até o fim. Por onde leva e para onde conduz a avareza terrena? Procuravas propriedades, desejavas possuir terras, excluías vizinhos. Afastados os primeiros, atacavas os outros. E tão longe levavas a avareza que chegavas ao litoral. Chegando ao litoral, desejas as ilhas; possuída a terra, talvez queiras apreender o céu. Abandona todos os amores; mais belo é aquele que fez o céu e a terra.
8 “Feliz o homem que pôs no nome do Senhor a esperança e não olhou vaidades e enganosas loucuras”. Por que são loucuras enganosas? A loucura é enganosa, e a saúde veraz. Julgas boas as coisas visíveis; tu te enganas. Tua saúde não está boa. A febre alta te deixou frenético. É falso aquilo que amas. Elogias o auriga, aplaudes o auriga, enlouqueces por causa do auriga1 . Vaidade, loucura enganosa! Respondes: Nada de melhor, de mais aprazível. O que fazer por este febricitante? Se tendes misericórdia, rezai por ele. Pois, o médico muitas vezes, já sem esperança, volta-se para os circunstantes que estão em lágrimas numa casa e que, em suspenso, querem ouvir o diagnóstico sobre o doente, em estado grave; o médico, cheio de dúvidas, não sabe o que prometer de bom, não quer pronunciar o pior para não assustar: emite então um parecer moderado: Deus é bom. Ele pode tudo. Rezai por ele. Qual destes loucos hei de apanhar? Quem me ouvirá? Qual deles não nos chamará de infelizes? Se não enlouquecemos com eles, pensam que estamos perdendo grandes e variados prazeres, que os tornam loucos. Não veem como são enganosos. Se ofereço um ovo, ou estendo ao doente uma bebida salutar, e ele recusa como conseguir que se refaça? Exorto a que tome a refeição para não desmaiar de fraqueza e recuperar a saúde. Cerra os punhos e procura bater no médico. Mesmo se bater, o doente seja amado; e se injuriar, não seja abandonado. Ao voltar à razão, há de agradecer. Aqui, quantos são os que se conhecem, veem-se mutuamente, e falam a respeito de si na Igreja de Deus. No grêmio da santa Igreja aplicam-se bem à palavra de Deus, aos deveres e serviços caridosos, não se afastam da igreja para frequentarem a Igreja de Cristo. Veem-se mutuamente e falam uns dos outros. Quem é este frequentador do circo? Quem este torcedor daquele caçador2 , daquele pantomimo? Fala de outro, e este de si mesmo. Certamente assim se dão os fatos, certamente alegramo-nos com eles. Se nos alegramos por causa deles, não percamos a esperança acerca deles. Oremos por eles, irmãos caríssimos; o número dos santos cresce com aqueles que eram do número dos ímpios. “E não olhou vaidades e enganosas loucuras”. Aquele venceu, domou o cavalo, proclama-se vencedor, quase quer ser divinizado? Simula divindade, perdendo a fonte da divindade. Frequentemente o proclama, frequentemente se engana. Por quê? Porque são loucuras enganosas. Por que razão algumas vezes acontece o que eles dizem? Para atrair os estultos que, amando a aparência de verdade incorram na laço da falsidade, voltem para trás, sejam abandonados, amputados. Se eram nossos membros, mortifiquem-se. Diz o Apóstolo: “Mortificai, pois, os vossos membros terrenos” (Cl 3,5). Seja nosso Deus a nossa esperança. Ele que fez todas as coisas é melhor do que todas; que criou as coisas belas é mais belo do que todas; que criou as coisas fortes, é o mais forte; que fez as coisas grandes é o maior de todas; será para ti tudo o que há de amável. Aprende a amar na criatura o criador, na obra o que a fez, para que não te prenda a criatura e percas aquele que te criou. Portanto: “Feliz o homem que pôs no nome do Senhor a esperança e não olhou vaidades e enganosas loucuras”.
9 6Talvez nos diga aquele que, tocado por este versí-culo, quiser corrigir-se e tomado pelo temor da justiça da fé, começar a caminhar pelo caminho estreito, talvez nos diga: Não aguentarei andar, se nada vejo. O que faremos, irmãos? Despedi-lo-emos sem apresentar-lhe um espectáculo? Morrerá, não subsistirá, não nos seguirá. O que faremos? Demos um espectáculo em lugar dos outros espectáculos. E que espectáculo apresentaremos ao cristão que queremos afastar dos outros espectáculos? Graças ao Senhor nosso Deus; o versículo seguinte do salmo nos mostra o que devemos oferecer e exibir aos espectadores que queiram ver espectáculos. Eis que ele abandonou o circo, o teatro, o anfiteatro, e procura o que ver, procura absolutamente; não o deixamos sem espectáculo. Ouve a continuação do salmo. “Muitas são as maravilhas que fizeste, Senhor meu Deus”. Olhava as maravilhas dos homens, dê atenção agora às maravilhas de Deus. Muitas são as maravilhas de Deus; contemple estas. Por que estão diminuídas para ele? Ele elogia o auriga que dirige quatro cavalos, os quais correm sem falha nem tropeço. Será que Deus não fez destes milagres espiritualmente? Domine a luxúria, domine a preguiça, domine a injustiça, domine a imprudência, estes movimentos que muito livres geram tais vícios. Domine e submeta a si, segure as rédeas e não será arrastado. Conduza para onde quiser, ao invés de ser arrastado para onde não quer. Louvava o auriga, será louvado o auriga; clamava que o auriga fosse revestido e será vestido de imortalidade. Deus proporciona estes dons, este espectáculo. Clama do céu: Eu vos observo; lutai, eu ajudarei; vencei, eu coroarei. “Muitas são as maravilhas que fizeste, Senhor meu Deus e não há quem te iguale em teus pensamentos”. Agora olha o pantomimo. Aprendeu com muitos exercícios a andar na corda, e ficas admirado de vê-lo equilibrando-se. Observa o empresário de espectáculos mais elevados. Ele aprendeu a andar sobre a corda, acaso anda sobre as águas do mar? Esquece teu teatro, e presta atenção a nosso Pedro, não equilibrista sobre a corda, mas por assim dizer, sobre o mar. Anda também tu não sobre aquelas águas sobre as quais andou Pedro, como determinado sinal, mas sobre outras águas, as do mar deste século. Este mar encerra um amargor prejudicial, possui as ondas das tribulações, as tempestades das tentações; contém homens, quais peixes, contentes no meio de seus males e devorando-se mutuamente. Anda, calca aos pés. Queres assitir a um espectáculo, dá-te em espectáculo. Não desanimes, vê como o Apóstolo te precede e diz: “Fomos dados em espectáculo ao mundo, aos anjos e aos homens” (1Cor 4,9). Pisa o mar, não mergulhes. Não irás, não calcarás, se não to ordenar aquele que antes de ti andou sobre o mar. Disse-lhe Pedro: “Se és tu, manda que eu vá ao teu encontro sobre as águas” (cf Mt 14,28). E como era o Senhor, ouviu o suplicante e atendeu o desejo; chamou-o para andar e reergueu-o quando afundava. O Senhor fez tais maravilhas. Olha-as. A fé te sirva de olho para contemplar. E faze também tu coisas semelhantes. Embora os ventos perturbem, os vagalhões se levantem enfurecidos, e a fragilidade humana te levar a dúvidas acerca de tua salvação, podes clamar: Senhor, estou perdido. Aquele que te mandou avançar não te deixa perecer. Já andas sobre a pedra; não receies fazê-lo sobre o mar. Se não tiveres a rocha, mergulharás no mar, porque devemos andar sobre uma rocha que não esteja imersa no mar.
10 Vede as maravilhas de Deus. “Eu as anunciei e narrei; multiplicaram-se acima de qualquer número”. Há número e supernúmero. O número certo pertence à Jerusalém celeste. O Senhor conhece os que são dele (cf 2Tm 2,18.19) os cristãos tementes a Deus, os cristãos fiéis, os cristãos que observam os preceitos, que andam nos caminhos de Deus, abstém-se de pecados e caso cairem, confessam-se; estes pertencem ao número. Mas, acaso são os únicos? Existem também os supernumerários. Pois, embora atualmente sejam poucos, poucos em comparação das multidões maiores, quantos são os que enchem as igrejas, lotam o recinto, apertam-se, quase se sufocam, no entanto, alguns deles, se há espectáculo, correm para o anfiteatro; estes são supernumerários. Dizemos isto, para que entrem no número certo. Como não estão presentes, não nos ouvem. Mas, ao saírdes daqui, que eles ouçam isto de vossa boca. “Anunciei e narrei”. Cristo disse. Anunciou enquanto nossa Cabeça, anunciou por meio de seus membros, enviou núncios, enviou apóstolos: “seu som, repercutiu por toda a terra, em todo o orbe as suas palavras” (Sl 18,5). Quantos fiéis se aglomeram, quantas turbas acorrem! Muitos verdadeiramente convertidos, muitos falsamente convertidos; e muito menos são os verdadeiros que os os falsos, porque “multiplicaram-se acima de qualquer número”.
11 7“Eu os anunciei e narrei: multiplicaram-se acima de qualquer número. Não quiseste sacrifício nem oblação”. Estes são os milagres de Deus, os pensamentos de Deus, aos quais nada se assemelha, a fim de que aquele espectador seja afastado da vã curiosidade, e conosco procure os bens melhores, mais frutuosos, de cuja posse ele se alegrará. Ele se regozijará sem receio de que seja vencido aquele que ele ama. Pois, se ele torce por determinado auriga e este é vencido, o torcedor é insultado. Mas, quando o auriga vence, ele é que é revestido. Acaso a distinção é para o pobre que o aclama? O vencedor é revestido, mas o torcedor é injuriado em lugar do vencido. Por que recebes afrontas em lugar daquele com o qual não partilhas a veste? Acontece de modo muito diferente em nossos espetáculos. Diz o apóstolo Paulo: “Correm todos”, naquele estádio, durante o espetáculo, “mas um só ganha o prêmio” (1Cor 9,24); os demais se afastam, vencidos. No entanto, perseveraram na corrida; mas tendo um recebido o prêmio, ficam sem ele os outros que igualmente se esforçaram. Conosco não acontece assim. Todos os que correm, corram com perseverança, porque todos recebem; o que chegou primeiro espera ser coroado com os que vêm depois. Não é a ambição, mas a caridade que realiza este combate; todos os corredores se amam, e este amor é que constitui a corrida.
12 “Não quiseste sacrifício nem oblação”, diz o salmo a Deus. Os antigos, quando ainda era prenunciado em figuras o verdadeiro sacrifício que os fiéis conhecem, celebravam as figuras da futura realidade; muitos estavam cientes, mas a maioria o ignorava. Pois, os profetas e os santos pratriarcas sabiam o que celebravam; os restantes, porém, a multidão iníqua era de tal modo carnal que dela se faria uma figura do que viria no futuro; e veio a realidade, tendo sido abolidos os sacrifícios primitivos, abolidos os holocaustos de carneiros, bodes, novilhos e demais vítimas; Deus não as quis mais. E por que razão não as quis mais? Por que as quis anteriormente? Porque todas elas eram como que palavras de uma promessa; e a promessa, quando chega o que foi prometido, já não se formula. Alguém é prometedor até que dê; quando tiver dado, muda o vocábulo. Não diz mais: Darei, aquilo que dizia haver de dar; mas fala: Dei. Mudou a palavra. Porque de início aprouve-lhe esta palavra, e por que motivo a mudou? Porque era palavra oportuna, e em seu tempo era aprazível. Quando se prometia, então, era proferida; ao ser concedido o que foi prometido, omitiram-se as palavras promissórias, e falou-se de realização. Aqueles sacrifícios, portanto, enquanto palavras promissórias foram abolidos. O que foi dado, no cumprimento da promessa? O corpo que conheceis, que nem todos conhecem3 . E oxalá que alguns de vós que o conheceis, não o conheçam para a própria condenação. Vede quando foi dito; pois Cristo é nosso Senhor, que ora fala em vez de seus membros, ora fala em seu próprio nome. Ele diz: “Não quiseste sacrifício nem oblação”. E então? Nós agora ficamos na carência de um sacrifício? De modo nenhum. “Mas preparaste-me um corpo”. Por conseguinte, não quiseste os primeiros sacrifícios para realizares este; quiseste aqueles antes de cumprires este. A consumação da promessa aboliu as palavras promissórias. Pois, se ainda vigoram as promissórias, ainda não se cumpriu o que foi prometido. A realidade era prometida por determinados sinais; foram abolidos os sinais promissórios porque apresentou-se a realidade prometida. Estamos neste corpo, sabemos o que recebemos; somos membros deste corpo. E vós que não sabeis, haveis de conhecer; e depois de saberdes, oxalá não o recebais para vossa condenação. “Pois, quem comer do pão ou beber do cálice indignamente, come e bebe a própria condenação” (1Cor 11,27.29). O corpo para nós é coisa bem acabada; aperfeiçoemo-nos também nós, inseridos neste corpo.
13 8“Não quiseste sacrifício nem oblação, mas preparaste-me um corpo. Não pediste holocausto nem vítima pelo pecado. Disse eu então: Eis que venho”. Talvez se deva explicar assim: “Não quiseste sacrifício nem oblação, mas preparaste-me um corpo? Não pediste holocausto nem vítima pelo pecado”, mas anteriormente os pedias. “Então disse eu: Eis que venho”. Chegou o tempo da realização das promessas, e da abolição das figuras que as anunciavam. De fato, meus irmãos, verificai como as figuras foram abolidas e as promessas cumpridas. Apresente-me agora o povo hebraico um sacerdote seu. Onde estão os seus sacrifícios? Certamente terminaram, certamente agora foram abolidos. Então outrora os reprovávamos? É agora que os rejeitemos. Porque se os quiseres fazer agora, estão fora do tempo, não são oportunos, não convêm. Queres ainda prometer o que já recebi. Restou ao povo judaico alguma coisa que podem celebrar, para não ficarem inteiramente sem sinal. Pois, Caim era o irmão mais velho, que matou o irmão menor. Ele recebeu um sinal para que ninguém o matasse, conforme se acha escrito no Gênesis: “E o Senhor colocou um sinal sobre Caim, a fim de que não fosse morto” (Gn 4,15). Por conseguinte, também o povo judaico subsiste. Todas as gentes sujeitas ao império romano seguiam as leis romanas e suas superstições; depois, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo começaram a se separar delas. O povo judaico, continua com o seu sinal, com o sinal da circuncisão, com o sinal dos pães ázimos. Caim não foi morto. Não foi morto porque tem um sinal. Foi amaldiçoado pela terra, que abriu a boca para receber o sangue de seu irmão, que suas mãos derramaram. O povo judaico pois, derramou o sangue, não o recebeu. Ele o derramou, outra terra o recebeu. E foi maldito pela terra que recebeu o sangue em sua boca, e a terra que o recebeu é a Igreja. Por esta, portanto, foi amaldiçoado. E aquele sangue clama da terra por Deus. Desta terra disse o Senhor: “Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim” (Gn 4,10). Da terra clama a mim. Clama ao Senhor; mas o que derramou o sangue é surdo, porque não bebeu. Eles são, portanto, como Caim marcado com o sinal. Os sacrifícios que faziam foram abolidos; e o que lhes restou, semelhante ao sinal de Caim, já está terminado, e eles não o sabem. Matam o cordeiro, comem os pães ázimos. “Pois nossa Páscoa, Cristo, foi imolado” (1Cor 5,7). Reconheço o cordeiro imolado, porque Cristo foi imolado. E quanto aos ázimos? “Celebremos, portanto, a festa, não com o velho fermento, nem com fermento de malícia e perversidade” (explica o que é velho, a farinha fermentada), “mas com pães ázimos: na pureza e na verdade” (1Cor 5,8). Permaneceram nas sombras, não suportam a claridade do sol; nós já estamos na luz, possuímos o corpo de Cristo, temos o sangue de Cristo. Se temos uma vida nova, cantemos um cântico novo, um hino a nosso Deus. “Não pediste holocausto nem vítima pelo pecado. Disse eu então: Eis que venho”.
14 9“No começo do livro de mim está escrito que faça a tua vontade. Meu Deus, eu o quis e a tua lei está no fundo de meu coração”. Cristo levou em consideração os seus membros, e fez a vontade do Pai. Mas em que livro, no início, está escrito a respeito dele? Talvez no início deste livro dos salmos. Por que haveremos de ir mais longe, ou procurar outros livros? Acha-se escrito no início deste livro dos salmos: “Feliz o homem que não entrou no conselho dos ímpios, não se deteve no caminho dos pecadores, nem se sentou em cátedra pestífera. Mas aderiu à lei do Senhor; o mesmo que quer dizer: Meu Deus, eu o quis e a tua lei está no fundo de meu coração”; quer dizer também: “e dia e noite a meditará” (Sl 1,1.2).
15 10“Anunciei a tua justiça na grande igreja”. Ele fala a seus membros, exortando-os a fazerem o mesmo que ele fez. Ele anunciou; anunciemos nós também. Padeceu; padeçamos com ele. Foi glorificado; seremos com ele glorificados. “Anunciei a tua justiça na grande igreja”. Qual o seu tamanho? Ocupa a terra inteira. Qual a sua extensão? Por todos os povos. Por que se estende a todos os povos? Porque é a descendência de Abraão, no qual são abençoadas todas as gentes. Por que entre todas as gentes? Porque seu som se espalhou por toda a terra (cf. Gn 12,13.18; Sl 18,5). “Na grande igreja. Não cerrei os lábios, bem o sabes, Senhor”. Falam meus lábios. Não os cerro. As palavras de meus lábios ressoem aos ouvidos dos homens; mas tu conheces o meu coração. “Não cerrei os lábios, bem o sabes, Senhor”. Uma coisa é o que ouve o homem, outra o que Deus conhece. Não sejam apenas nossos lábios a anunciarem, para que não digam a nosso respeito: “Observai quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações” (Mt 23,3). Ou se diga ao povo que louva com a boca, não com o coração, a Deus: “Este povo me glorifica com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13). Ressoe o anúncio em teus lábios; aproxima-te de coração. “Pois quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,10). Assim sucedeu àquele ladrão, crucificado com o Senhor, e que na cruz o reconheceu. Outros o desconheceram enquanto fazia milagres, e ele o conheceu quando crucificado. Tinha todos os membros presos: as mãos atravessadas pelos cravos, os pés traspassados, todo o corpo aderente ao madeiro. Aquele corpo carecia do uso de todos os membros, exceto da língua e do coração. Creu com o coração, confessou com a boca. Senhor, disse ele, “lembra-te de mim, quando vieres com teu reino” (Lc 23,43). Esperava a sua salvação num tempo longínquo, e se contentava com recebê-la após longa demora. Esperava que demorasse, e não passou de um dia. Ele disse: “Lembra-te de mim, quando vieres com teu reino”. E o Senhor respondeu: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso (Lc 23,43). Hoje”, disse ele, “estarás comigo no paraíso”. O paraíso possui felizes madeiros: hoje comigo no madeiro da cruz, amanhã comigo no lenho da salvação.
16 “Não cerrei os lábios, bem o sabes, Senhor”. Não acredite somente no coração e de medo cerre os lábios para não anunciar aquilo que acreditou. Pois, existem cristãos que têm a fé no coração; se pagãos amargurados, sem educação, sórdidos, infiéis, ineptos, injuriadores começarem a atacá-los por serem cristãos, mantêm a fé no coração, mas receiam confessá-la pelos lábios; cerram os lábios para não dizerem o que sabem, não falarem o que eles têm no seu íntimo. Mas o Senhor os censura: “Aquele que se envergonhar de mim diante dos homens, também me envergonharei dele diante de meu Pai” (cf Mc 8,38), isto é, não o reconhecerei. Como se envergonhou de me confessar diante dos homens, não o reconhecerei diante de meu Pai. Digam, portanto, os lábios o que guarda o coração, combatendo o medo. Guarde o coração o que os lábios proferem, combatendo a simulação. Por vezes, sentes temor e não ousas proferir o que sabes e crês: outras vezes, empregas simulação e falas o que não tens no coração. Estejam de acordo teus lábios e teu coração. Se pedes a paz a Deus, sê pacato para contigo mesmo; não haja discórdia entre tua boca e teu coração. “Não cerrei os lábios, bem o sabes, Senhor”. Como agiu o salmista? E o que conheceu o Senhor? O íntimo do coração, onde o homem não vê. Por isso diz o salmista: “Acreditei”. Eis que o coração já possui, já tem o que Deus há de ver; que o salmista não cerre os lábios. Não os fecha, pois o que diz? “Por isso falei”. E como falou aquilo que acreditou, procurando a retribuição por tudo aquilo que o Senhor lhe deu em paga, acrescentou: “Tomarei o cálice da salvação, e invocarei o nome do Senhor” (Sl 115,13). Não ficou horrorizado ao lhe perguntar o Senhor: “Podeis beber o cálice que estou para beber” (Mt 20,22)? Confessou com os lábios o que tinha no coração, e chegou à paixão. E por que sofreu a paixão, em que o inimigo o prejudicou? Na verdade, “preciosa na presença do Senhor é a morte de seus justos” (Sl 115,15). Hoje nos serve de conforto a morte que lhes infligiram os pagãos enfurecidos. Celebramos o dia natalício dos mártires, propondonos a imitação de seus exemplos. Observamos com atenção sua fé, como foram encontrados, como foram arrastados e como compareceram diante dos juízes. Na Igreja católica, preservados de qualquer simulação, agregados na unidade, confessaram a Cristo. Ambicionaram seguir, na qualidade de membros, a Cabeça que os precedera. Mas quais foram os que o desejaram? Os que foram pacientes no meio dos tormentos, fiéis na confissão, verdadeiros nas palavras. Lançavam as setas de Deus na boca dos que os interrogavam, e feriam-nos até irritá-los. Muitos feriram também para a salvação deles. Tudo isso nos propomos, tudo isso contemplamos e queremos imitar. São esses os espetáculos cristãos. Deus os contempla do alto, exorta-nos e ajuda-nos a agir de igual modo. Oferece e concede prêmios a estes certames. “Não cerrei os lábios”. Cuida de não teres medo, nem fechares a boca. “Bem o sabes, Senhor”, que tenho no coração o que os lábios proferem.
17 11“Não escondi a minha justiça no meu coração”. O que significa: “a minha justiça”? Minha fé; porque o justo vive da fé (cf Hab 2,4; Rm 1,17). Imagina o perseguidor interrogando com a ameaça de castigo, o que às vezes lhe era lícito: És pagão ou cristão? Cristão. Esta é a sua justiça; acreditou, viveu da fé. Não escondeu sua justiça no coração. Não disse a si mesmo: Efetivamente, creio em Cristo, mas não direi a este perseguidor irritado e ameaçador que creio. Meu Deus sabe que no íntimo do coração eu creio, que a ele não renuncio. Isto é o que dizes ter intimamente no coração; mas e nos lábios? Não sou cristão? Teus lábios proferem testemunho contra teu coração. “Não escondi a minha justiça no meu coração”.
1 Aquele que no circo dirigia e animava os cavalos atrelados ao carro chamava-se auriga. Cf. Concil. Arelat. I, can.4, et II can. 20.
2 Caçador aqui é aquele que na arena lutava com as feras. 3 Esta fórmula designa os catecúmenos presentes.
18 “Proclamei a tua verdade e a tua salvação”. Anunciei o teu Cristo. Tal o significado da frase: “Proclamei a tua verdade e a tua salvação”. Por que dizer que Cristo é a verdade? “Eu sou a verdade” (Jo 14,6). E como Cristo é salvação? Simeão reconheceu o menino nas mãos de sua mãe no templo, e disse: “Por que meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,30). O ancião reconheceu o menino, tornou-se criança com o menino, renovou-se pela fé. Assim falou porque recebera uma promessa. O Senhor lhe dissera que não deixaria esta vida antes de ver a salvação de Deus. É bom mostrar aos homens esta salvação de Deus. Mas que eles clamem: “Mostra-nos, Senhor, a tua misericórdia, e concede-nos a tua salvação” (Sl 84,8). A salvação de Deus, porém, atinge todos os povos, pois tendo dito em certa passagem: “Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça luzir sobre nós o brilho de sua face, para que conheçamos na terra o teu caminho”, acrescentou: “Em todos os povos a tua salvação” (Sl 66,2.3). Parece que alguém lhe pergunta: Qual é o caminho que queres conhecer? Os homens procuram o caminho. Por acaso o caminho vem ao encontro dos homens? Nosso caminho veio aos homens. Encontrou alguns errando e chamou os que andavam fora dele. E lhes disse: Anda por mim e não desviarás: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Não digas: Onde está o caminho de Deus? A que região devo ir? Que montes subir? Que campos procurar? Procuras o caminho de Deus? A salvação de Deus é o seu caminho, e está em toda a parte, porque a “tua salvação encontra-se em todos os povos” (Sl 66,3). “Proclamei a tua verdade e a tua salvação”.
19 “Não ocultei a tua misericórdia e a tua verdade à grande assembleia”. Neste corpo estejamos também nós, sejamos do número de seus membros, manifestando a misericórdia do Senhor e sua verdade. Queres ouvir como é a misericórdia do Senhor? Afasta-te do pecado e ele te perdoará. Queres saber como é a sua verdade? Persevera na justiça, e ela será coroada. Agora, pois, sua misericórdia te é anunciada, depois se revelará a verdade. Deus não é misericordioso e injusto ao mesmo tempo; nem justo sem ser misericordioso. Parece-te coisa pequena a misericórdia? Ele não te imputará os males anteriores; viveste mal até hoje, ainda vives deste modo. Começa a viver bem hoje e esta misericórdia se mostrará. Se tal é a misericórdia, qual é a verdade? “Serão reunidos diante dele os homens de todas as nações, e ele os separará como o pastor separa as ovelhas dos cabritos; porá as ovelhas à direita, e os cabritos à esquerda”. O que dirá às ovelhas? “Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino preparado para vós”. E aos cabritos? “Ide para o fogo eterno” (Mt 25,32.34.41). Ali não há lugar para a penitência. Desprezaste a misericórdia de Deus, experimentarás a sua verdade. Se, porém, não desprezaste a misericórdia, alegrar-te-ás com a verdade.
20 12.13“Mas tu, Senhor, não afastes de mim as tuas misericórdias”. Considerou o salmista os membros feridos. Não escondi a tua misericórdia e a tua vontade à grande assembleia, à Igreja que mantém a unidade, em todo o orbe da terra. Atende aos membros doentes, atende aos delinquentes e pecadores, e não afastes deles as tuas misericórdias. “A tua misericórdia e a tua verdade sempre me sustentaram”. Não ousaria converter-me, se não estivesse seguro do perdão; não aguentaria perseverar, se não estivesse certo acerca da promessa. “A tua misericórdia e a tua verdade sempre me sustentaram”. Considero que és bom, considero que és justo; amo aquele que é bom e temo aquele que é justo. O amor e o temor me conduzem, porque “a tua misericórdia e a tua verdade sempre me sustentaram”. Por que elas sustentam e não devo delas apartar os olhos? “Porque males inumeráveis me cercaram”. Quem pode contar os pecados? Quem é capaz de enumerar as iniquidades alheias e próprias? Debaixo deste peso gemia aquele que dizia: “Purifica-me, Senhor, de meus pecados ocultos. E dos alheios, poupa teu servo” (Sl 18, 13.14). Os nossos eram pequenos, mas impostos nos foram os alheios. Receio por mim, receio por um bom irmão, suporto um mau; e sob tal peso o que nos acontecerá se cessar a misericórdia de Deus? “Mas tu, Senhor, não te afastes”; fica bem perto. De quem o Senhor está próximo? Daqueles que têm o coração contrito (cf Sl 33,19). Está longe dos soberbos e próximo dos humildes. Pois, o Senhor é excelso, mas olha os humildes (Sl 137,6). Não pensem, contudo, os soberbos que se escondem dele; quem está no alto vê longe. Ele conhecia de longe o fariseu orgulhoso, e socorria de perto ao publicano que confessava seus pecados (cf. Lc 18,11). O primeiro se gabava de seus méritos e encobria suas feridas; o segundo não se gabava, mas mostrava seus ferimentos. Procurara o médico porque sabia que estava doente, e que havia de ser curado; não ousava levantar os olhos aos céus e batia no peito. Não se poupava, para que Deus o poupasse; reconhecia quem era para que Deus o perdoasse; castigava-se, para que ele o libertasse. Desta espécie são aqui as palavras do salmo. Ouçamo-las piedosamente, e piedosamente as amemos. Digamos de coração, de boca, com todo o nosso ser. Ninguém se considere justo. Vive quem fala; vive, e oxalá viva, de fato! Vive ainda na terra, mas convive com a morte. Se o espírito vive por causa da justiça, o corpo, no entanto, está morto por causa do pecado (Rm 8,10). “Um corpo corruptível pesa sobre a alma e – tenda de argila – oprime a mente pensativa” (Sb 9,15). A ti compete clamar, gemer, confessar, não te exaltar, não te gabar, não te gloriar de teus méritos; porque se tens alguma coisa que te alegre, o que é que não recebeste? “Porque males inumeráveis me cercaram”.
21 “Minhas iniquidades me dominaram e tolheram-me a vista”. Temos algo a ver; o que impede a visão? Não será a iniquidade? Talvez apareceu um tumor sobre teu olho, impedindo-te de ver a luz, ou mesmo a fumaça, a poeira, ou qualquer coisa que nele entrou; e não podias abrir os olhos feridos para ver a luz; como, então, erguerás para Deus um coração ferido? Não é preciso primeiro curá-lo para veres? Não serás soberbo se disseres: Que eu veja primeiro, depois acredito? Quem diz isto? Quem é que quer ver e diz: Que eu veja primeiro, e depois acreditarei? Vou mostrar-te a luz, ou antes, a própria luz quer se mostrar. A quem? Não é possível a um cego, porque ele não vê. Por que não vê? Porque tem a visão impedida em consequência de muitos pecados. Como é que fala? “Minhas iniquidades me dominaram e tolheram-me a vista”. Retirem-se as iniquidades, sejam perdoados os pecados, afaste-se o que torna as pálpebras pesadas, cure-se a ferida, empregue-se como colírio o preceito amargo. Em primeiro lugar, cumpre o que te é ordenado: cura o coração, purifica-o, ama o teu inimigo (Mt 5,44; Lc 6,27.35). E quem ama o seu inimigo? É isto o que prescreve o médico: remédio amargo, mas salutar. O que te farei? Diz o médico, és incomodado, para que te cures. E diz mais ainda: Depois de curado, não te será pesado, e amarás o inimigo com gosto. Emprega todos os esforços para sarares. Sê forte nas tribulações, nas angústias, nas tentações. Persiste. É mão de médico, não de ladrão. Diz o doente: Atendi ao preceito, mantive a fé, e antes, conforme ordenas, tratarei de meu coração. Com o coração curado e purificado, o que verei? “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Deste modo, responde ele, não posso. “Minhas iniquidades me dominaram e tolheram-me a vista”.
22 “Fizeram-se mais numerosas que os cabelos de minha cabeça”. Refere-se aos cabelos da cabeça para significar um grande número. Quem pode contar os cabelos da cabeça? Muito menos os pecados que superam o número dos cabelos. Parecem pequenos, mas são muitos. Tu te precaveste dos pecados graves; já não cometes adultério, já não praticas o homicídio, não roubas os bens alheios, não blasfemas, não levantas falso testemunho; estes pecados constituem a massa volumosa. Tu te acautelas dos pecados graves, mas como ages relativamente aos leves? Não os temes? Derrubaste a parte volumosa; cuidado para não ficares sepultado sob os escombros. “Fizeram-se mais numerosos que os cabelos de minha cabeça”.
23 13.14“Desfaleceu-me o coração”. Por que admirar se teu coração foi abandonado por teu Deus, se descuida de si mesmo? O que significa: “Desfaleceu-me o coração”? Meu coração não é capaz de conhecer-se a si mesmo. “Desfaleceu-me o coração”, quer dizer: Quero ver o Senhor através de meu coração e não posso, por causa da quantidade de meus pecados; ainda não é tudo: meu coração nem a si mesmo compreende. Pois ninguém se compreende, ninguém presuma de si mesmo. Acaso Pedro compreendeu o próprio coração, por ele mesmo, quando disse: “Mesmo que tivesse de morrer contigo…” (Mt 26,35)? Em seu coração havia falsa presunção, em seu coração escondia-se verdadeiro medo; e seu coração não era capaz de conhecer-se a si mesmo. Ao doente estava oculto o que havia no coração, mas para o médico era evidente. Realizou-se o que este predisse, Deus conhecia nele o que ele mesmo desconhecia, porque desfalecera o seu coração, e o coração não se conhecia. “Desfaleceume o coração”. E então? Como clamaremos? O que diremos? “Apraza-te, Senhor, livrar-me”. De certo modo, é como se dissesse: “Senhor, se queres tens poder para purificar-me” (Mt 8,2); “Apraza-te, Senhor, livrar-me; olha-me para me socorrer”. Membros penitentes, membros doloridos, membros que gritam sob os ferros do médico, mas que esperam. “Senhor, olha-me para socorrer”.
24 15“Confundam-se e envergonhem-se juntos os que procuram tirar-me a vida”. Em certa passagem, o salmista acusa: “Olhava à direita e examinava, e não havia quem cuidasse de minha vida” (Sl 141,5), isto é, não havia quem me imitasse. Fala Cristo, na paixão; ele olhava à direita, isto é, não para os ímpios judeus, mas à própria direita, para os apóstolos: “E não havia quem cuidasse de minha vida”. A tal ponto não houve quem procurasse a minha vida que aquele que presumira, a negou (cf Mt 26,70). Mas como existem duas maneiras de procurar alguém, uma com amizade e outra no intuito de perseguição, aqui trata dos segundos, que quer sejam confundidos e envergonhados por procurarem a sua vida. Mas, para que não se entenda assim, como se queixa de alguns que não cuidam de sua vida “para tirá-la” (isto é, procuram para matar-me), acrescentou: “Confundam-se e envergonhem-se”. Efetivamente, muitos procuraram a sua vida, e ficaram confundidos e envergonhados; procuraram a sua vida, e conforme lhes pareceu conveniente, tiraram-lhe a vida; mas ele tinha o poder de dar a sua vida, e poder de recuperá-la (cf Jo 10,18). Portanto, aqueles que se alegraram quando ele morreu, ficaram confusos em sua ressurreição. “Confundam-se e envergonhem-se juntos os que procuram tirar-me a vida”.
25 “Retrocedam e corem de vergonha os que me desejam males. Retrocedam.” Não tomemos isto em pior sentido. Ele está desejando o bem para eles. Pois trata-se da voz daquele que disse na cruz: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Por que, então, lhes diz que retrocedam? Porque os que antes eram soberbos a ponto de terem de retroceder, fizeramse humildes para ressurgirem. Quando estão na frente, querem preceder o Senhor, ser melhores do que ele; se, porém, vão para trás, reconhecem-no por melhor, por superior a si, de sorte que ele precede e eles vão atrás. Por esta razão, o Senhor censura a Pedro que lhe deu um mau conselho. O Senhor estava para sofrer a paixão por causa de nossa salvação, e anunciava de antemão o que sucederia na própria paixão, mas Pedro lhe disse: “Deus não o permita, Senhor! Isto jamais te acontecerá!” (Mt 16,22.23). Queria ir à frente do Senhor e dar conselhos ao mestre. O Senhor, porém, lhe respondeu, para não deixá-lo ir à frente, mas fazêlo seu seguidor: “Arreda-te de mim, Satanás!” (Mt 16,23). Satanás, por quereres ir à frente daquele que devias seguir; se ficares para trás e seguires, já não serás satanás. Será o que, então? “Sobre esta pedra edificarei minha Igreja” (Mt 16,18).
26 16.17“Retrocedam e corem de vergonha os que me desejam males”. São malévolos os que apesar de bendizerem, quanto ao que têm no coração, maldizem. Se disseres a alguém: Fazete cristão. Tu, sim, sê cristão. Aconselhou uma coisa boa, mas não lhe é imputado o que disse, e sim com que ânimo o proferiu, aconteceu aos judeus, por causa do cego de nascimento que passou a ver. Quando eles o enchiam de insultos e o pressionavam, o cego perguntou-lhes: “Por acaso, quereis tornar-vos seus discípulos?” E injuriaram-no. Assim se exprime o evangelista. “Maldisseram-no dizendo: Tu, sim, sê seu discípulo” (cf Jo 9,27.28). Eles maldisseram, mas o Senhor abençoou; fez ao curado aquilo que os judeus lhe disseram, e retribuiu a estes conforme sua maldição. “Retrocedam e corem de vergonha os que me desejam males”. Existem outros malvados que desejam o bem; destes também devemos precaver-nos. Como os primeiros maldiziam, desejando-nos o bem, mas com intenção má, assim muitos outros nos desejam o mal, com bom ânimo. O que digo é o seguinte: Quem te disser: Tu, sim, torna-te cristão, deseja-te um bem, mas com má vontade; se outro te disser: Ninguém é melhor do que tu, quando estás praticando o mal (porque o pecador se gloria nos desejos de sua alma e o iníquo se bendiz: Sl 9,24), louvando-te, deseja-te o mal. Como o primeiro, ao te maldizer, desejava-te um bem, assim o segundo profere o mal contra ti, ao te bendizer. Foge de ambas as espécies de inimigo; acautela-te de um e de outro. O primeiro se enfurece, o segundo acaricia; ambos são maus. Um é iracundo, o outro te louva com fingimento. O primeiro censura, o segundo elogia; mas tanto um é inimigo com suas censuras quanto o outro é fingido com seus elogios. Acautela-te de ambos, reza em oposição a um e outro. O salmista, ao orar: “Retrocedam e corem de vergonha os que me desejam males”, estava pensando em outra espécie mentirosamente malévola, e falsamente benévola: “Sofram logo confusão os que me dizem: Muito bem, muito bem”. Elogiam com falsidade: Grande homem, bom, literato, douto; mas por que é cristão (cf Tert. Apol. 3,1)? Louvam os feitos que não queres sejam louvados, e censuram aquilo que faz a tua alegria. Mas se acaso dizes: Por que razão me louvas, ó homem, porque sou bom, sou justo? Se me julgas assim, foi Cristo que me fez tal; louva-o. E ele responde: De modo algum; não te injuriei, pois tu mesmo te fizeste assim. “Sejam confundidos os que me dizem: Muito bem, muito bem”. E como continua? “Exultem e se rejubilem em ti todos os que te procuram, Senhor”. Não me procuram, mas te procuram. Não a mim, eles dizem: Muito bem, muito bem. Mas eles veem que em ti me glorio, se tenho alguma coisa de que me gloriar. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (cf 1Cor 1,31). “Exultem e se rejubilem em ti todos os que te procuram, Senhor, e digam sempre: Glorificado seja o Senhor”. Embora de pecador se torne justo, glorifica aquele que justifica o ímpio (cf Rm 4,5). Seja, portanto, pecador; louve aquele que chama ao perdão. Se já caminha na via da justiça, louve quem chama à coroa. “Glorificado seja sempre o Senhor”, por aqueles “que amam a tua salvação”.
27 18“Quanto a mim”, a quem desejavam males. “Quanto a mim”, cuja vida procuravam tirar. Mas, volta-te para outra espécie de homens. “Quanto a mim”, a quem diziam: Muito bem, muito bem, “sou desvalido e pobre”. Não há o que elogiar em mim. O Senhor rasgue o meu saco e me cubra com sua veste. “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Se Cristo vive em ti, e todo o bem que tens é de Cristo, tudo o que terás é de Cristo. Por ti mesmo, o que és? “Quanto a mim sou desvalido e pobre”. Não sou rico, porque não sou soberbo. Era rico aquele que dizia: “Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens”. O publicano era pobre, pois dizia: “Senhor, tem piedade de mim, pecador” (Lc 18,11.13). O primeiro arrotava, por causa da saciedade, o segundo chorava de fome. “Quanto a mim sou desvalido e pobre”. E o que hás de fazer, ó desvalido e pobre? Mendiga diante da porta de Deus; bate e abrir-se-á. “Quanto a mim sou desvalido e pobre, mas o Senhor cuidará de mim. Lança sobre o Senhor os teus cuidados, espera nele e ele agirá” (Sl 54,23). Por que hás de te preocupar contigo? De que te proverás? Cuide de ti o teu criador. Ele que antes de existires cuidou de ti, como não cuidará quando já és aquilo que ele quis que fosses? Já és fiel, já andas no caminho da justiça. Não cuidará de ti aquele que faz o seu sol se levantar sobre bons e maus, e chover sobre justos e injustos (cf Mt 5,45)? Agora que já és justo e vives da fé (cf Rm 1,17), há de negligenciar, abandonar, deixar? Ao contrário, favorece, ajuda, dá o necessário, corta o que é prejudicial. Se dá, consola para que perseveres, se tira, corrige para que não te percas. O Senhor cuída de ti, fica tranquilo. Teu criador te sustenta, não escapes da mão de teu artífice, porque se caíres, tu te quebrarás. Para permaneceres em suas mãos, necessitas de boa vontade. Dize: Meu Deus o quis, ele me carregará, me segurará. Lança-te nele; não penses que é inútil ou é um precípicio. Não te pareça assim. Ele disse: “Não sou eu que encho o céu e a terra?” (Jr 23,24). Ele jamais te faltará. Tu é que não lhe deves faltar, nem a ti mesmo; “O Senhor cuidará de mim”.
28 “Tu és meu auxílio e protetor, meu Deus, não tardes”. Invoca, implora, tem medo de desfalecer: “não tardes”. O que quer dizer: “não tardes”? “E se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma vida se salvaria” (Mt 24,22), acabamos de ler acerca dos dias das tribulações. Rogam a Deus, como se fosse um só homem, os membros de Cristo, o corpo de Cristo, espalhado por toda a parte, um só mendigo, um só pobre. Pois, também Cristo que era rico fez-se pobre, conforme diz o Apóstolo: “Fez-se pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). Enriquece os verdadeiros pobres e empobrece os falsos ricos. Clama o corpo de Cristo a Deus: “Dos confins da terra clamei a ti, quando minha alma estava atribulada” (Sl 60,3). Virão dias de tribulações, e das maiores tribulações; virão, conforme diz a Escritura; e à medida que se aproximam, as tribulações aumentam. Ninguém prometa a si mesmo o que o evangelho não promete. Meus irmãos, eu vos exorto, e notai se nossas Escrituras se enganaram em algum ponto, ou se disseram alguma coisa e sucedeu coisa diferente do que disseram. Forçoso é que até o fim tudo aconteça conforme elas predisseram. Neste mundo as Escrituras não nos prometem senão tribulações, angústias, aflições, intensificação das dores, abundância das tentações. Preparamo-nos principalmente para isso, para não desfalecermos por falta de preparação. “Ai daquelas que estiverem grávidas e estiverem amamentando” (Mt 24,19), conforme acabastes de ouvir. Grávidas são figuras dos que se enchem de esperanças e as que amamentam, dos que já alcançaram o objeto de suas ambições. Pois, a mulher grávida se enche de esperanças acerca do filho, mas não o vê ainda; a que já amamenta, abraça o que esperava. Apresentemos um exemplo. Diz alguém: É boa esta propriedade de meu vizinho; oh! se fosse minha; oh! se pudesse adquiri-la e fazer deste e daquele terreno um só. A avareza também aprecia a unidade; em si, é bom, mas ela não sabe onde deve amá-la. Mas, este alguém deseja a propriedade do vizinho; acontece, porém, que o vizinho é rico, não está necessitado, recebe honras, tem poder, e até mesmo tens medo de seu poder e nada esperas obter daquele terreno; como é inútil esperar, a alma não concebe este desejo, não o gera. Se, ao contrário, o vizinho é pobre, ou está precisado de dinheiro, de sorte que é possível que venda, ou pode ser obrigado, coagido a vender, então aquele homem lança os olhos sobre a propriedade, espera obtê-la; a alma gera o desejo, espera conseguir o terreno e a propriedade do vizinho pobre. E quando este pobre estiver em necessidade, procura o vizinho rico, que talvez costume obsequiar, tributar-lhe deferência, levantar-se a sua passagem, saudar com a cabeça inclinada e diz-lhe: Peço-te, dáme esta quantia; sofro necessidade, o credor está exigindo. E ele responde: Agora não tenho. Se ele quisesse vender, teria. Já vimos tais coisas. Existiam entre nós; que já não existam. Não o vivemos ontem? E hoje? Ainda é tempo de emenda, ainda não se fez aquela separação de uns à direita e outros à esquerda (cf Mt 25,33); não estamos naquele inferno onde estava o rico sedento e ansioso por uma gota d’água (cf Lc 16,22). Ouçamos enquanto vivemos, corrijamo-nos. Não esperemos os bens alheios, não nos inchemos como engravidados, nem nos aproximemos deles se uma vez que os obtenhamos, os beijemos como filhos. “Ai daquelas que estiverem grávidas e estiverem amamentando naqueles dias” (Mt 24,19). Temos de mudar os corações, levá-los ao alto, não deixá-los habitar aqui; a região é má. Baste-nos ser-nos necessário permanecer aqui pela carne. Não se faça o que for desnecessário. Baste a cada dia a sua malícia (cf Mt 6,34). Corações ao alto. “Se, pois, ressuscitastes com Cristo”, diz o Apóstolo aos fiéis, que recebem o corpo e o sangue do Senhor. Diz: “Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra, pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,1-3). Ainda não aparece o que vos foi prometido; está preparado, mas vós ainda não vistes. Queres encher-te, conceber, ter esperança. O parto será certo, não será abortivo, nem para o tempo; abraçarás o que gerares, eternamente. Isto é o que afirma Isaías: “Concebemos e demos à luz o espírito da salvação” (cf Is 26,18). É, portanto, retrospectivo. Agora não se realiza, mas realizar-se-á. Quem pode enumerar quantas profecias, segundo as Escrituras, já se realizaram? Nelas encontra-se escrito a respeito da Igreja, e já se vê realizado. Está escrito que os ídolos já não existirão, e vê-se que já não existem. Escrito está que os judeus haveriam de perder o reino, e já se vê. Está escrito sobre os futuros hereges, e já se realizou. Está escrito a respeito do dia do juízo; acha-se ali escrito acerca do prêmio dos bons e do castigo dos maus. Em tudo verificamos que Deus é fiel; só o último caso falhará e enganará? “O Senhor cuidará de mim. Tu és meu auxílio e protetor, não tardes, meu Deus. E se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma vida se salvaria. Mas, por causa dos eleitos, aqueles dias serão abreviados” (Mt 24,22). Serão dias de tribulação, mas não tão longos como se pensa. Logo passarão; o repouso que se seguirá não passará. Embora longo, o mal deve ser suportado em vista do bem infinito.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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