Comentário ao Salmo 5 – Santo Agostinho


1 1O salmo intitula-se: “Em favor daquela que recebe a herança”. Entende-se ser, portanto, a Igreja, que recebe a herança da vida eterna, por nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de possuir o próprio Deus. Aderindo a ele torna-se bem-aventurada, segundo a palavra: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,5). Que terra, senão aquela da qual se diz: “Tu és meu abrigo, minha herança na terra dos vivos” (Sl 141,6). Ou a passagem ainda mais clara: “O Senhor é a porção de minha herança e de meu cálice” (Sl 15,5). A Igreja, por sua vez, chama-se herança de Deus, segundo a palavra: “Pede-me e dar-te-ei as nações por herança” (Sl 2,8). Deus é, portanto, denominado nossa herança, porque ele nos alimenta e mantém. E nós somos chamados herança de Deus, porque ele nos administra e governa. Neste salmo, por este motivo, encontra-se a voz da Igreja, chamada a herança, para se tornar ela mesma herança do Senhor.

2 2“Escuta, ó Senhor, minhas palavras”. Aquela que é chamada invoca o Senhor, para que auxiliada, por ele, vá além da maldade deste século e chegue até ele. “Entende o meu clamor”. Mostra muito bem qual é este clamor, que chega a Deus do íntimo do coração, sem ruído material; pois a voz corporal é ouvida, a espiritual, porém, é entendida. Este é também o modo de Deus ouvir, não com ouvido carnal, mas pela presença de sua majestade.

3 3“Fica atento à voz de minha prece”, voz suplicante a Deus, para que a escute. O salmista já insinuará qual é, dizendo: “Entende o meu clamor. Fica atento à voz de minha prece, meu rei e meu Deus”. O Filho é Deus, o Pai é Deus, e o Pai e o Filho simultaneamente são um só Deus; e se interrogarmos a respeito do Espírito, só obteremos a resposta de que é Deus. Se nomearmos juntos o Pai e o Filho e o Espírito Santo, não entendamos senão um só Deus. No entanto, a Escritura costuma dar ao Filho o nome de rei. Segundo, pois, a palavra: “Por mim se vai ao Pai” (Jo 14,6), com acerto se diz primeiro: “meu rei”, e em seguida: “meu Deus”. Também não disse: Ficai atentos, mas: “Fica atento”. A fé católica não anuncia dois ou três deuses, e sim a Trindade, um só Deus; nem que a mesma Trindade possa uma vez ser o Pai, outra o Filho, outra o Espírito Santo, como Sabélio opinou; mas, que o Pai é só Pai, o Filho é só Filho e o Espírito Santo é só Espírito Santo, e esta Trindade é um só Deus. Quando o Apóstolo dizia: “Tudo é dele, e por ele e para ele” (Rm 11,36), acredita-se que aludia à própria Trindade. E não acrescentou: A eles a glória, e sim: “A ele a glória”.

4 4“Senhor, implorar-te-ei. Desde a manhã ouvirás minha voz”. O que ele quer dizer? Acima pediu: “ouve”, como se desejasse ser ouvido no presente, e agora afirma: “desde a manhã ouvirás” e não: ouves. E também: “implorar-te-ei” e não: eu te imploro; em seguida, igualmente: “de manhã estarei de pé diante de ti e verei” e não: estou e vejo. A menos que sua oração anterior mostre o que invoca. Às escuras, no meio das procelas deste século, sente que não vê aquilo que deseja, e no entanto não desiste de esperar. “Ver o que se espera, não é esperar” (Rm 8,24). Sabe, contudo, por que razão não vê. A noite ainda não passou, isto é, as trevas em consequência dos pecados. Diz, portanto, “Senhor, implorar-te-ei”, por seres tu, a quem imploro, tão grande, “de manhã ouvirás minha voz”. Impossível seres visto por aqueles perante cujos olhos ainda não terminou a noite dos pecados. Passada a noite de meu erro, e dissipadas as trevas ocasionadas por meus pecados, ouvirás a minha voz. Por que acima não disse: ouvirás, e sim “ouve?” Será que depois de ter clamado: “ouve” e não ter sido atendida, sentiu o que precisa superar para ter a possibilidade de ser ouvida? Ou acima foi ouvida, mas ela não percebe ainda que foi atendida, por não ver quem a atendeu; e se agora diz: “de manhã ouvirás”, quis dizer: de manhã perceberei que fui atendida? Tal como na expressão: “Ergue-te, Senhor!” (Sl 3,7), isto é, faze com que me erga. Aplica-se, contudo, à ressurreição de Cristo. Quanto à seguinte expressão: “E o Senhor vosso Deus vos experimenta, para saber se de fato o amais” (Dt 13,4), certamente não se pode entender senão: Para que saibais através dele, e se vos manifeste quanto progredistes no seu amor.

5 5-7“De manhã estarei de pé diante de ti e verei”. O que significa “estarei de pé” senão: não estarei jogado por terra? Jazer por terra é repousar na terra, procurar a felicidade nos prazeres terrenos. “Estarei de pé e verei”. Não nos apeguemos, pois, às coisas terrenas, se queremos ver a Deus, que só corações puros podem contemplar. “Não és um Deus a quem agrade a iniquidade. Não habitará o mau contigo, nem permanecerão os injustos diante de teus olhos. Detestas a todos os obreiros da iniquidade e destróis o mentiroso. O Senhor abominará o sanguinário e o doloso”. Iniquidade, malignidade, mentira, homicídio, fraude e outras coisas semelhantes são a noite, após a qual vem a manhã, quando se vê a Deus. Expus o motivo de estar de pé pela manhã e ver: “Não és um Deus a quem agrade a iniquidade”. Se Deus amasse a iniquidade, poderia ser visto pelos iníquos; e não seria visto de manhã, isto é, após ter passado a noite da iniquidade.

6 “Não habitará o mau contigo”, quer dizer, não verá de forma a aderir. Por isso, se segue: “Nem permanecerão os injustos diante de teus olhos”. Os olhos deles, isto é, suas mentes repelirão, reverberando-a, a luz da verdade, por causa das trevas do pecado. Habituados a estas, não suportam o julgar do reto entendimento. Por isso, os que veem apenas algumas vezes, isto é, os que entendem a verdade, todavia continuam injustos, nela não permanecem, pois amam aquilo que os aparta da verdade. Levam consigo a sua noite, a saber, não somente o hábito, mas ainda o amor ao pecado. Se esta noite passar, se desistirem de pecar e afugentar o amor e o hábito de pecar, faz-se manhã. Então, não só entendem, mas ainda aderem à verdade.

 7 “Odeias a todos os obreiros da iniquidade”. Ódio em Deus tem o sentido desta expressão: Todo pecador odeia a verdade. Parece igualmente que a verdade odeia aqueles que ela não permite permanecerem em si. Não permanecem, porém, os incapazes de suportá-la, “destróis o mentiroso”. Mentira é o oposto da verdade. Mas, para não se julgar que existe substância ou natureza contrária à verdade, entenda-se que a mentira pertence ao que não é, não ao que é. Se falamos aquilo que é, dizemos a verdade. Se dizemos ser o que não é, é mentira. Por isso, “destróis o mentiroso”, que se aparta do que é e desvia-se para o que não é. Muitas mentiras, de fato, parecem ditas para a salvação ou o bem de alguma pessoa, não provenientes de malícia e sim de bondade. Foi o caso das parteiras, citadas no Êxodo, que deram resposta falsa ao faraó (Ex 1,19), para não serem mortos os meninos israelitas. Mas aqui também não se louva a ação, e sim o motivo da mentira. Mentir apenas desta maneira merece algumas vezes escusa de qualquer mentira. Nos perfeitos, contudo, nem este tipo de mentira se tolera. A estes se ordena: “Seja o vosso ‘sim’, sim, e o vosso ‘não’, não. O que passa disto vem do Maligno” (Mt 5,37). Com razão, está escrito em outra passagem: “A boca mentirosa mata a alma” (Sb 1,11), para não pensar alguém que o homem perfeito e espiritual deve mentir por causa desta vida temporal, cuja perda não mata sua alma, nem a de qualquer outro. Mas, uma coisa é mentir, outra ocultar a verdade, pois difere dizer o que é falso e calar a verdade. Se alguém, acaso, não quer entregar um homem à morte visível, oculte a verdade, mas não profira mentira. Não entregue, nem minta, para não matar a sua própria alma, por causa do corpo de outrem. Se, porém, nem isto pode, ou for necessário proferir somente essa espécie de mentira, se quer se ver livre também desta única restante e receber a força do Espírito Santo, despreze qualquer tipo de sofrimento em prol da verdade. Duas são as espécies de mentira que não constituem culpa grave, mas não são isentas de culpa, a saber, mentir por gracejo, ou para o bem de outrem. O primeiro, o gracejo, não é muito prejudicial, porque não engana. Sabe o outro que é alvo de um gracejo. O segundo é mais leve, por incluir certa benevolência. Não é mentira o que não provém de duplicidade. Por exemplo, confia-se uma espada a alguém que promete devolvê-la ao dono quando a pedir; se acaso o dono, estando furioso, reclamar sua espada, é claro que não deve recebê-la de volta, enquanto não recuperar a razão, para não matar a si ou a outrem. O primeiro não agiu com duplicidade, porque ao receber a espada e prometer devolução ao ser reclamada, não pensou na possibilidade de ser exigida pelo dono, em estado furioso. O Senhor também ocultou a verdade, quando disse aos discípulos ainda incapazes de ouvi-la: “Tenho ainda muito a vos dizer, mas não podeis agora compreender” (Jo 16,12); e o apóstolo Paulo ao declarar: “Quanto a mim, irmãos, não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais” (1Cor 3,1). Evidencia-se não haver culpa de muitas vezes em calar a verdade. Todavia, mentir não é lícito aos perfeitos.

8 7.8“O Senhor abominará o sanguinário e o doloso”. Esta frase pode, com acerto, ser tomada como repetição do que foi dito acima: “Odeias a todos os obreiros da iniquidade. Destróis o mentiroso”. Refira-se “sanguinário a quem pratica a iniquidade”. “Doloso”, porém, à mentira. Dolo consiste em fazer uma coisa e fingir outra. O salmista usou um termo adequado: “abominará”. É costume chamar de abomináveis os deserdados. Este salmo, no entanto, é “em favor daquela que recebe a herança”, a qual introduz aqui a exultação de sua esperança, dizendo: “Eu, porém, cercado pela multidão de tuas misericórdias, entrarei em tua casa. Pela multidão das misericórdias” talvez se refira à multidão dos perfeitos e bem-aventurados, de que constará aquela futura cidade, agora gerada e progressivamente dada à luz pela Igreja. Quem negaria serem com razão os numerosos regenerados e perfeitos denominados “multidão das misericórdias” de Deus, desde que foi dito com toda verdade: “Que é o homem para dele te lembrares, ou o filho do homem para o visitares” (Sl 8,5)? Entrarei na tua casa, a meu ver como a pedra entra no edifício. Que é a casa de Deus senão o templo de Deus, do qual se disse: “O templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (1Cor 3,17)? Pedra angular deste edifício é aquele que a coeterna Virtude do Pai e Sabedoria de Deus assumiu.

9 “Adorarei diante de teu santo templo, cheio de temor. Diante do templo”, quer dizer, perto do templo. Pois não disse: adorarei em teu templo santo, mas: “Adorarei diante de teu santo templo”. Entenda-se não se tratar da perfeição, mas do progresso no caminho da perfeição; a locução: “entrarei em tua casa” significaria a perfeição. Mas, para tal acontecer, antes… “adorarei diante de teu santo templo”. Talvez por essa razão acrescentou cheio de temor, o qual é grande auxílio aos que caminham para a salvação. Naquele que a alcançar, realizar-se-á o que foi dito: “O perfeito amor lança fora o temor” (1Jo 4,18), pois já não temem o amigo aqueles aos quais foi dito: “Não mais vos chamo servos, mas eu vos chamo amigos” (Jo 15,15), quando tiverem obtido o que lhes fora prometido.

10 9-10 “Senhor, guia-me, em tua justiça, por causa de meus inimigos”. O salmista assaz declarou estar a caminho, isto é, progredindo em direção à perfeição, não ainda na própria perfeição, enquanto ainda deseja ardentemente ser conduzido até ela. “Em tua justiça”, não naquela que imaginam os homens. Pagar o mal com o mal, parece justiça; mas não é a justiça de Deus, de quem se disse: “Faz nascer o sol igualmente sobre os maus e os bons” (Mt 5,45). Ao punir os pecadores, Deus não lhes inflige mal proveniente de si próprio, mas abandona-os aos males derivados deles mesmos: “Eis que o mau gerou a injustiça, concebeu o trabalho e pariu a iniquidade. Abriu uma fossa, escavou-a e cairá na fossa que abriu. Seu trabalho recair-lhe-á na própria cabeça e a sua maldade descer-lhe-á sobre a fronte” (Sl 7,15-17). Quando Deus castiga, pune como faz o juiz àqueles que menosprezam a lei, não lhes infligindo por si mesmo o mal, mas expulsando-os para o lugar de sua própria escolha, a fim de que se consuma a miséria em grau extremo. O homem, porém, ao pagar o mal com o mal, levado por mau desejo, já se tornou mau, querendo punir o mal.

11 “Em tua presença dirige o meu caminhar”. É bem claro. Recomenda-o enquanto é tempo. Tal caminho não atravessa lugares terrenos, mas consta de afetos da alma. “Em tua presença dirige o meu caminhar”, isto é, lá onde não se encontra observador humano, pois os homens não são dignos de crédito se louvam ou criticam. Ninguém pode absolutamente julgar a consciência alheia, por onde passa o caminho para Deus. Assim acrescenta: “Porque não há verdade em sua boca”, nos lábios daqueles que não merecem crédito quando julgam. Refugiemo-nos, pois, no íntimo de nossa consciência e na presença de Deus. “Seu coração é só vaidade”. Como pode haver verdade na boca daqueles cujo coração se engana a respeito do pecado e da pena do pecado? Por conseguinte, os homens são novamente interpelados por aquela voz: “Por que amais a ilusão e procurais a mentira?” (Sl 4,3)

12 11“Sua garganta é um sepulcro escancarado”. Pode ser referência à voracidade, que é causa frequente de mentirem os homens, com adulação. E está expresso de modo admirável “sepulcro escancarado”, porque tal voracidade permanece sempre ávida, ao contrário dos sepulcros, que se fecham após receberem os cadáveres. É possível também entender-se que eles atraem a si com mentiras e vis lisonjas aqueles que seduzem ao pecado e devoram, induzindo-os a levar vida igual a sua. Como esses morrem assim pelo pecado, com razão os sedutores são denominados sepulcros escancarados, porque também eles de certo modo estão mortos, privados da vida da verdade, e recebem em si os que eles mataram com palavras mentirosas e coração fútil, tornando-os semelhantes a si. “Para enganar empregavam as suas línguas”, línguas más. Parece ser este o significado de “suas”. Os maus têm más línguas; falam o mal, quando proferem mentira. O Senhor lhes diz: “Como podeis falar coisas boas, se sois maus?” (Mt 12,34)

13 “Julga-os, ó Deus. Malogrem os seus ardis”. É profecia, não maldição. O salmista não deseja que aconteça, mas discerne o que há de suceder. Realiza-se, mas não porque ele aparentemente o desejou, e sim porque eles são tais que sucederá conforme merecem. Assim também é com o que diz em seguida: “Alegrem-se todos os que em ti esperam”. É um dito de certa maneira profético, porque vê que eles se alegrarão. Igualmente em profecia foi escrito: “Desperta teu poder e vem” (Sl 79,3), porque o profeta via que ele haveria de vir. Embora se possam também entender as palavras: “Malogrem os seus ardis”, acreditando-se ter o salmista desejado o melhor, que desistam de seus ardis e já não planejem maldades. Mas as palavras seguintes não permitem tal interpretação: “Expulsa-os”, porque de modo algum se há de tomar em bom sentido que alguém seja repelido por Deus. Entenda-se, portanto, como profecia, e não malevolência. Foi assegurado que necessariamente tal coisa adviria aos que perseverassem nos pecados mencionados. “Malogrem seus ardis”, diz o salmista. Desistam de seus planos, que os acusam, e também o atesta sua consciência, conforme declara o Apóstolo: “Acusam-nos, ou defendem-nos seus pensamentos, na revelação do justo juízo de Deus” (Rm 2,15.16).

14 “Por seus numerosos crimes expulsa-os, repele-os para longe. Por seus numerosos crimes sejam em igual medida repelidos”. Os ímpios são excluídos da herança que se possui entendendo e vendo a Deus, assim como os olhos mórbidos fogem do fulgor da luz, pois constitui para eles sofrimento o que para os outros é alegria. Eles, portanto, de manhã não estarão de pé, nem verão. Tal exclusão se torna castigo tão grande quanto é grandioso o prêmio, do qual se diz: “Para mim só há um bem: é estar unido a Deus” (Sl 78,28). O oposto deste castigo é a palavra: “Entra na alegria de teu Senhor” (Mt 25,23), bem como semelhante a esta expulsão é: “Lançai-o lá fora nas trevas” (Mt 25,30).

15 “Porque, Senhor, te causaram amargura”. Disse ele: “Eu sou o pão que desceu do céu” (Jo 6,51); e “Trabalhai pelo alimento que permanece” (ib 27); e “provai e vede quão suave é o Senhor” (Sl 33,9). Para os pecadores é amargo o pão da verdade; por isso, odeiam a boca que profere a verdade. Amarguram a Deus os que, pecando, contraíram uma doença tal que não suportam o alimento da verdade, fel para eles, alegria das almas sadias.

16 12“Mas alegrem-se todos os que em ti esperam”, que provaram quão suave é o Senhor. “Exultarão eternamente e habitarás no meio deles”. Haverá, portanto, eterna exultação quando os justos se tornarem templo de Deus e for sua alegria aquele que neles habita. “E gloriar-se-ão em ti os que amam teu nome”, tendo presente para sua fruição o bem que amam. E com razão se diz “em ti”, enquanto são possuidores da herança referida no título do salmo, e eles mesmos constituem a herança daquele a quem alude a palavra “habitarás no meio deles”. Deste bem acham-se privados os que Deus repele por seus numerosos crimes.

17 13“Porque abençoarás o justo”. A bênção consiste em gloriar-se em Deus e ter a Deus habitando em si. Esta santificação é concedida aos justos; mas para que se justifiquem precede o chamado, proveniente não dos méritos e sim da graça de Deus. “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23). “Os que chamou, também os justificou; e os que justificou, também os glorificou” (ib 8,30). Uma vez que o chamado não deriva de nossos méritos, mas da benevolência e misericórdia de Deus, acrescentou: “Senhor, como um escudo, nos cercaste de benevolência”. A boa vontade de Deus precede a nossa, chamando os pecadores à penitência. Tais armas vencem o inimigo, contra o qual se diz: “Quem acusará os eleitos de Deus?” e: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós” (ib 8,31,33). “Se quando éramos inimigos, Cristo morreu por nós, com muito mais razão, estando já reconciliados, seremos salvos da ira por ele” (ib 5,9.10). Eis o escudo invencível, que repele o inimigo a sugerir desespero da salvação, através de multidão de tribulações e tentações.

18 Todo o texto do salmo, portanto, é uma oração para ser ouvida, desde: “Escuta, ó Senhor, minhas palavras” até: “meu rei e meu Deus”. Em seguida, a explanação dos impedimentos à visão de Deus, para o salmista saber que a oração foi ouvida, desde: “Senhor, implorar-te-ei, desde a manhã me ouvirás” até: “O Senhor abominará o sanguinário e o doloso”. Em terceiro lugar, o salmista espera que haverá de estar futuramente na casa de Deus e agora se aproxima com temor, antes da consumação, que há de lançar fora o temor, desde a passagem: “Eu, porém, cercado pela multidão de tuas misericórdias” até: “Adorarei em teu santo templo, cheio de temor”. Em quarto lugar, entre obstáculos palpáveis, o salmista, progredindo e adiantando-se, reza para ser ajudado no seu íntimo, que nenhum homem vê, para não se deixar arrastar pelas más línguas, e isto de onde está escrito: “Senhor, guia-me em tua justiça, por causa de meus inimigos” até: “Para enganar empregavam as suas línguas”. Em quinto lugar, é profecia a respeito do castigo reservado aos ímpios, do qual o justo escapará com dificuldade, e do prêmio a ser obtido pelos justos, que sendo chamados vieram e tudo suportaram virilmente até chegarem ao termo, desde: “Julga-os, ó Deus”, até o fim do salmo.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *