Comentário ao Salmo 4 – Santo Agostinho


1 1“Para o fim. Salmo. Cântico de Davi”. “A finalidade da lei é Cristo para a justificação de todo o que crê” (Rm 10,4). “Fim”, aqui, siginifica perfeição, não aniquilamento. É viável a pergunta se todo cântico é salmo, ou se qualquer salmo é cântico, ou ainda se existem cânticos que não devam ser denominados salmos e salmos aos quais não convém o nome de cânticos. Mas, verifique-se nas Escrituras se cânticos não indicariam alegria, enquanto salmos seriam as composições acompanhadas ao saltério. Narra a história ter o profeta Davi utilizado o saltério (1Cor 13,8 e 16,5), no grande mistério do culto. Não seria oportuno agora dissertar sobre a questão, que exige diuturna pesquisa e longa discussão. Por enquanto vejamos este salmo como palavras do homem-Senhor, após a ressurreição, ou na Igreja, do homem que nele crê e espera.

2 2“Ao invocá-lo, ouviu-me Deus, minha justiça”. Ao invocá-lo, ouviu-me Deus, do qual procede a minha justiça. “Na tribulação, puseste-me ao largo”. Das angústias da tristeza conduziste-me à amplidão das alegrias. “Tribulação e angústia para todo aquele que pratica o mal” (Rm 2,9). Mas quem declara: “Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança”, até o trecho: “Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3.5), não sente angústia no coração, embora os perseguidores a incutam de fora. Se a mudança de pessoa: da terceira, “ouviu”, imediatamente à segunda, “me dilataste”, não foi introduzida para variar e suavizar as expressões, acho estranho que primeiro pareça indicar aos homens que foi ouvido e só depois fazer exigências àquele que o atendeu. A não ser que, após ter declarado como foi ouvido, pelo alívio que teve no coração, preferiu falar com Deus. Deste modo mostrou o que é alívio para o coração, a saber, já ter a Deus infuso em seu coração. Com ele fala em seu íntimo. Isto bem se aplica àquele que, acreditando em Cristo, foi iluminado. Não vejo, porém, como possa convir ao homem-Senhor, assumido pela Sabedoria de Deus, pois não foi em tempo algum abandonado por ela. Mas, como a sua própria súplica é antes indício de nossa fraqueza, assim deste repentino alívio do coração pode o mesmo Senhor falar em lugar dos fiéis, cujas vezes ele fez também quando disse: “Tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber” (Mt 25,35) etc. Por isso, igualmente, pode dizer aqui, “me dilataste”, em lugar de um dos pequeninos que são seus, dirigindo-se a Deus, cuja caridade foi difundida em seu coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado. “Compadece-te de mim, e ouve a minha oração”. Por que roga novamente, se já declarou que foi ouvido e aliviado? Será por nossa causa, uma vez que foi declarado: “E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,25), ou para que se complete no fiel o que foi começado?

3 3“Filhos dos homens, até quando tereis o coração empedernido?” Se ao menos só até o advento do Filho de Deus perdurasse o vosso erro. Por que depois ainda tendes o coração empedernido? Quando haveis de pôr termo às mentiras, se mesmo na presença da verdade não o conseguis? “Por que amais a ilusão e procurais a mentira?” Por que buscais a felicidade em futilidades? Só a verdade, que torna verdadeiras todas as coisas, faz-nos felizes. A vaidade é dos frívolos, e tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? (Ecl 1,2.3). Por que vos deterdes no amor às coisas temporais? Qual o motivo de irdes atrás de coisas ínfimas, isto é, de vaidade e mentira, como se fossem o principal? Desejais que permaneçam convosco todas essas coisas que passam como sombras.

 4 4“E compreendei que o Senhor fez maravilhas em seu santo”. Qual santo senão aquele que Deus ressuscitou da região dos mortos e colocou no céu à sua direita? O gênero humano é convidado a “finalmente” se converter do amor deste mundo para o Senhor. Se alguém ficar intrigado com o acréscimo da conjunção “e” ao verbo “compreendei”, não lhe será difícil descobrir nas Escrituras a frequência desta espécie de locução na língua em que os profetas falaram. Muitas vezes se encontra este início: E o Senhor lhe falou. E foi-lhe dirigida a palavra do Senhor. Se a sentença anterior não se liga à subsequente, a conjunção talvez insinue de modo admirável que a enunciação da verdade pela voz se une à visão do coração. A frase anterior “Por que amais a ilusão e procurais a mentira?” poderia equivaler a: Não ameis a vaidade nem busqueis a mentira. Dito isso, segue-se com plena exatidão: “E compreendei que o Senhor fez maravilhas em seu santo”. Mas a interposição do “diapsalma” impede a junção desta frase com a anterior. “Diapsalma” pode vir do hebraico, conforme opinião de alguns, e significa: faça-se; ou do grego, e marca intervalo na salmodia. Denomina-se salmo o que é cantado, e diapsalma, a pausa na salmodia. Como simpsalma significa a união das vozes no canto, diapsalma representaria a separação entre elas, certa pausa, interrupção. Seja isso, aquilo ou ainda outra coisa, há muita probabilidade de que onde se achar intercalado o diapsalma não se deve continuar, nem unir o sentido.

5 “O Senhor me ouvirá, quando a ele clamar”. Creio tratar-se de uma exortação a implorarmos o auxílio de Deus com grande ardor do coração, com clamor íntimo e espiritual. É mister congratular-nos com as luzes recebidas nesta vida; e cabe-nos suplicar o repouso depois dela. Por isso, quer se aplique ao fiel evangelizador, quer ao próprio Senhor, entenda-se: O Senhor vos ouvirá quando a ele clamardes.

6 5“Irai-vos e não pequeis”. É possível ocorrer a pergunta: Quem será digno de ser ouvido, ou como não clamará o pecador em vão ao Senhor? Por isso diz o salmista: “Irai-vos e não pequeis”. Há dois modos de se entender isso. Ou: Mesmo se vos irardes, não pequeis, isto é, apesar de surgir a emoção, que não está em vosso poder em consequência do pecado, ao menos a razão e o espírito não consintam, eles que foram regenerados interiormente segundo Deus, de modo que pela mente sirvamos à lei de Deus, se ainda pela carne servimos à lei do pecado (Rm 7,26). Ou então: Fazei penitência, isto é, irai-vos contra vós mesmos por causa dos pecados passados e doravante deixai de pecar. “O que dizeis em vossos corações”. Subentende-se: Dizei-o, de sorte que a frase integral seria: O que dizeis, proferi-o em vossos corações, isto é, não sejais o povo do qual se afirmou: “Honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim (Is 29,13). Tende compunção em vossos leitos”. É repetição do que foi dito supra: “Em vossos corações”. São os aposentos, dentro dos quais o Senhor nos exorta a orarmos com as portas fechadas (Mt 6,6). “Tende compunção”, porém, ou se refere à dor da penitência, de sorte que a alma, castigando-se a si mesma, se arrependa a fim de não ser condenada no juízo de Deus e atormentada, ou é relativo ao despertar e usa de um estímulo para vermos bem despertos a luz de Cristo. Alguns, todavia, preferem a leitura: “abri-vos” e não: “arrependei-vos”, porque no saltério grego acha-se katanoígete, em referência à abertura do coração necessária para se receber a efusão da caridade, realizada pelo Espírito Santo.

7 6“Oferecei um sacrifício de justiça e esperai no Senhor”. A mesma coisa encontra-se em outro salmo: “Sacrifício a Deus é o espírito contrito” (Sl 50,10). Não é absurdo considerar aqui sacrifício de justiça o efetuado através da penitência. Que de mais justo do que aborrecer antes os próprios pecados do que os alheios, e castigando-se a si mesmo, sacrificar-se a Deus? Ou sacrifício de justiça seriam as obras justas depois da penitência? Pois o “diapsalma” intercalado talvez insinue com justeza a passagem de uma vida velha a uma vida nova, de tal maneira que extinto ou enfraquecido pela penitência o velho homem, se ofereça a Deus um sacrifício de justiça, segundo a regeneração do homem novo, quando a própria alma, já purificada, a si mesma se oferta e coloca sobre o altar da fé, para ser consumida pelo fogo divino, o Espírito Santo. O sentido seria então: “Oferecei um sacrifício de justiça e esperai no Senhor”, isto é, vivei com retidão e esperai o dom do Espírito Santo, a fim de que a verdade, na qual acreditastes, vos ilumine.

8 7Mas, “esperai no Senhor” é frase incompleta. O que se espera senão os bens? Cada qual deseja obter de Deus o bem que ama; é difícil, contudo, encontrar quem ame os bens interiores, pertencentes ao homem interior, únicos dignos de serem amados; e os demais devem ser utilizados segundo a necessidade e não por prazer. Por isso, o salmista tendo dito admiravelmente: “Esperai no Senhor”, acrescentou: Muitos dizem: “Quem nos dará a felicidade?” Tal palavra, tal interrogação é de todos os dias da parte dos estultos e maus. Ou é dos desejosos da paz e tranquilidade da vida no século, que não as encontram por causa da perversidade do gênero humano; em sua cegueira ousam acusar a ordem do universo, enquanto envolvidos no que merecem, julgam os tempos atuais piores do que os passados. Ou é dos ainda hesitantes ou desesperados em relação à vida futura, a nós prometida, que dizem muitas vezes: Quem sabe se é verdade, ou quem voltou dos infernos para contar essas coisas? Esplêndida e brevemente mostrou o salmista, mas somente aos que veem interiormente, quais os bens desejáveis, respondendo à interrogação: “Quem nos dará a felicidade? Está assinalada em nós, Senhor, a luz de tua face”. Esta luz constitui o bem total e verdadeiro do homem, vista não com os olhos, mas com o intelecto. “Assinalada em nós”. Como o cenário é cunhado com a efígie do rei, o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), mas pecando corrompeu-a. É, portanto, seu bem verdadeiro e eterno ser assinalado, ao renascer. Conforme a opinião prudente de alguns, penso que foi por isto que o Senhor, tendo observado a moeda de César, disse: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21), como se quisesse declarar: César exige de vós o cunho de sua imagem; o mesmo reclama Deus. Como se restitui a moeda a César, se restitua a Deus a alma iluminada e assinalada pela luz de sua face. “Tu me deste alegria ao coração”. Por conseguinte, aqueles que ainda têm o coração empedernido, amam a vaidade e procuram a mentira, não busquem a alegria fora de si, e sim no interior, onde está assinalada a luz da face de Deus. Cristo habita no homem interior (Ef 3,17), diz o Apóstolo. A esse homem cabe a verdade, pois Cristo afirmou: “Eu sou a Verdade” (Jo 14,6). E ao falar Cristo no Apóstolo, que perguntava: “Procurais uma prova de que é Cristo que fala em mim?” (2Cor 13,3), não se dirigia a ele exteriormente, mas no próprio coração, a saber, naquele recinto onde se deve orar (cf. Mt 6,6).

9 8.9Os homens, certamente muito numerosos, que andam à busca de bens temporais, apenas souberam dizer: “Quem nos dará a felicidade?” porque não sabem ver os bens verdadeiros e certos dentro de si mesmos. Por conseguinte, ainda se diz a seu respeito: “No tempo de seu trigo, vinho e óleo se multiplicaram”. Não é supérfluo o acréscimo da palavra “seu”. Há também um trigo de Deus, na verdade, o pão vivo descido do céu (Jo 6,51); existe igualmente um vinho de Deus, pois “inebriar-se-ão na abundância de tua casa” (Sl 35,9). Existe ainda um óleo de Deus, do qual se disse: “Ungiste com óleo a minha cabeça” (Sl 22,5). Todavia, os muitos que dizem: “Quem nos dará a felicidade?” e não veem o reino dos céus dentro de si mesmos (Lc 17,21), “no tempo de seu trigo, vinho e óleo se multiplicaram”. Multiplicação nem sempre significa abundância. Por vezes significa penúria. A alma entregue aos prazeres temporais arde de desejos insaciáveis e dissipada em inúmeros e atribulados pensamentos, acha-se impedida de ver o bem em sua simplicidade. Assim acontece à alma da qual se diz: “Um corpo corruptível pesa sobre a alma — tenda de argila — oprime a mente pensativa” (Sb 9,15). Esta alma, pelas vicissitudes dos bens temporais, isto é, no tempo de seu trigo, vinho e óleo, cheia de inumeráveis fantasias, sente-se de tal modo dispersa que fica impossibilitada de praticar o preceito: “Pensai no Senhor com retidão, procurai-o com simplicidade de coração” (ib. 1,1). Tal dispersão opõe-se diametralmente àquela simplicidade. Por isso, deixando de lado tantos homens, dissipados devido à ambição dos bens temporais, que perguntam: “Quem nos dará a felicidade?”, felicidade esta que não há de ser procurada exteriormente com os olhos e sim no íntimo do coração simples, o fiel exultante profere: “Em paz, logo adormecerei e descansarei em profundo sono”. Destes espera-se, com razão, afastamento espiritual completo das coisas passageiras e esquecimento das misérias deste mundo, significadas de maneira conveniente e profética com os termos adormecer e sono, lá onde a paz suprema não é interrompida por tumulto algum. Tal meta não se alcança nesta vida, mas na outra. Mostram-no os próprios verbos no futuro. Não se disse: Adormeci e dormi profundamente, ou: Adormeci e durmo profundamente, e sim: “Adormecerei e descansarei em profundo sono”. Então este corpo corruptível se revestirá de incorruptibilidade, e este corpo mortal estará revestido da imortalidade; então a morte será absorvida pela vitória (1Cor 15,54). Daí se declarar: “E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (8,25).

10 10Por isso, se acrescenta no final com toda conveniência: “Por que tu, Senhor, de modo singular me firmaste na esperança”. Não disse: firmarás, mas “firmaste”. Para quem já possui tal esperança, virá sem dúvida também o que se espera. E com justeza se afirma: “de modo singular”. Provavelmente tais palavras foram aduzidas contra os muitos que no tempo de seu trigo e óleo dizem: “Quem nos dará a felicidade?” Desaparece esta multiplicidade e subsiste a unidade entre os santos de que falam os Atos dos Apóstolos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4,32). Devemos, portanto, chegar à unidade e ser simples, isto é, separados da multidão e da turba das coisas que nascem e morrem, ser amantes da eternidade e da unidade, se queremos aderir ao nosso único Deus e Senhor.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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