Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 49

SERMÃO AO POVO

1 1Pondere cada um quanto vale para nós a palavra de Deus, quando temos em vista a correção de nossa vida, os prêmios esperados, os castigos ameaçadores. Ponha diante dos olhos a própria consciência, sem disfarces, sem complacências diante de tão grande perigo, uma vez que nem o próprio Senhor a ninguém acaricia. Se ele consola, prometendo-nos seus bens, confirmando nossa esperança, não poupa de modo algum os que vivem mal e desprezam sua palavra. Examine-se, pois, cada um, enquanto é tempo, e verifique onde se encontra. Persevere no bem, ou converta-se do mal. Conforme se exprime o presente salmo, não fala um homem qualquer, nem qualquer anjo, mas “falou o Senhor, Deus dos deuses”. Que realizou com sua palavra? “Convocou a terra do oriente ao ocaso”. Jesus Cristo é nosso Senhor e Salvador, que convocou a terra do oriente ao ocaso. Verbo que se fez carne para habitar entre nós. Nosso Senhor Jesus Cristo é, portanto, o Deus dos deuses; por ele tudo foi feito e sem ele nada se fez. Verbo de Deus, se é Deus, efetivamente é o Deus dos deuses. O evangelho responde que ele é Deus: “No príncipio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). E se tudo foi feito por ele, como está escrito em seguida, também os deuses que foram feitos, foram feitos por ele. De fato, há um só Deus, não criado, e em verdade só ele é Deus. Somente ele é Deus, Pai e Filho e Espírito Santo, um só Deus.

2 Quais são, ou onde estão os deuses, portanto, dos quais Deus é o verdadeiro Deus? Declara outro salmo: “Deus está de pé na assembleia dos deuses e no meio deles instituiu seu julgamento” (Sl 81,1). Ainda não sabemos se alguns deuses se reuniram no céu, e se em sua sinagoga, isto é, na assembleia, Deus está presente para julgá-los. Vede o que afirma o mesmo salmo: “Eu disse: Vós sois deuses e sois todos filhos do Altíssimo. Morrereis todavia como homens e caireis como um príncipe qualquer” (ib, 6.7). É evidente, portanto, que chama os homens de deuses, deificados por sua graça, não nascidos de sua substância. Santifica aquele, pois, que por si mesmo é justo, não por meio de outro; e diviniza quem é Deus por si mesmo, não por participação. Quem justifica diviniza, porque justificando faz filhos de Deus. “Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12). Se nos tornamos filhos de Deus, também nos tornamos deuses; mas pela graça da adoção, não por geração natural. Pois, o único Deus Filho de Deus e com o Pai um só Deus, nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, no princípio era o Verbo e o Verbo junto de Deus, e o Verbo era Deus. Os demais, que se tornam deuses, é pela graça; não nascem de sua substância, de sorte a se tornarem iguais a ele, mas para que por benefício se aproximem dele, e sejam co-herdeiros de Cristo, porquanto tamanha é a caridade deste herdeiro que quis ter co-herdeiros. Qual o avaro que queira ter coherdeiros? Mas se houver algum, terá de dividir com eles a herança, ficando com menos aquele que divide do que se a possuísse sozinho. A herança, porém, da qual somos coherdeiros com Cristo, não diminui pelo número dos seus possuidores, nem fica menor pela quantidade dos co-herdeiros; mas é tão grande para muitos como para poucos, do mesmo tamanho para cada um quanto para todos. Observa o apóstolo João: “Vede que prova de amor nos deu o Pai: que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos”. E em seguida: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou”. Por conseguinte, nós o somos em esperança, ainda não na realidade. “Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,1.2). Ele é o único semelhante por nascimento; nós somos semelhantes, vendo-o. Não somos semelhantes como ele, que é um só com seu genitor; nós porém somos semelhantes, não iguais; ele como é igual, é também semelhante. Ouvimos quais são os que se tornaram deuses pela justificação, e são chamados filhos de Deus; e os deuses que não são deuses, para os quais aquele Deus dos deuses é temível. Pois, diz outro salmo: “É temível sobre todos os deuses” (Sl 95,4.5). E se perguntares: Quais? “Porque os deuses das nações são demônios”. Ele é terrível para os deuses das nações, os demônios; para os deuses que ele fez seus filhos, é amável. Entretanto, descubro que ambos confessam a majestade de Deus. Os demônios confessaram a Cristo, e os fiéis também o confessaram. Disse Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16,16). E os demônios: “Sabemos quem és: Tu és Filho de Deus” (cf Mc 5,7). Escuto igual confissão, mas descubro amor desigual; ou melhor, no primeiro vejo amor, e nos outros, temor. Os que amam a Cristo são filhos; os que o temem, não o são. Fez deuses daqueles que o amam. Convenceu de não serem deuses aqueles que o temem. Os primeiros tornam-se deuses, os outros são apenas tidos por tais. A verdade fez deuses, o erro produz apenas esta fama.

3 “Falou, portanto, o Senhor, Deus dos deuses”. Falou de muitas maneiras. Falou pelos anjos, falou pelos profetas, falou por própria boca, falou pelos apóstolos, fala por seus fiéis; por nós, apesar de nossa condição humilde, quando falamos a verdade, é ele quem fala. Vede-o, em verdade, a falar muitas vezes, de muitos modos, por muitos instrumentos, por muitos órgãos; é ele, contudo, que sempre fala, tocando, modificando, inspirando. Vede o que fez. Pois, “falou, e convocou a terra”. Que terra? Talvez a África? Digo isto, por causa daqueles que afirmam: A Igreja de Cristo é o partido de Donato. Efetivamente, ele não chamou somente a África, mas também não a excluiu. Aquele que “convocou a terra do oriente ao ocaso”, não deixou parte da terra que não chamasse e no seu chamado incluiu a África. Alegre-se, portanto, a África na unidade, mas não se orgulhe na divisão. Asseguramos com razão que a voz do Deus dos deuses chegou também à África, mas nela não parou. Pois, “convocou a terra do oriente ao ocaso”. Não há esconderijo para as insídias dos hereges, não existe sombra de falsidade onde se ocultem; nada se oculta a seu calor (cf Sl 18,7). Quem convocou a terra, chamou a terra inteira; quem a convocou, chamou-a em toda a extensão em que a criou. Por que me hão de surgir falsos cristos e falsos profetas? Por que razão se empenham em me apanhar por palavras capciosas, dizendo: “Olha o Messias aqui! ou ali!” (Mt 24,23)? Não o ouço a designar partes. O Deus dos deuses mostrou-me o todo. Ele redimiu o todo, ele que “convocou a terra do oriente ao ocaso”; condenou, todavia, as partes caluniadoras.

4 2Mas, ouvimos que a terra inteira foi convocada, do oriente ao ocidente. De onde começou o chamado de quem convoca? Escutai. “De Sião, imagem de sua beleza”. Certamente o salmo concorda com o evangelho: “A todas as nações, a começar por Jerusalém” (Lc 24,47). Escuta: “A todas as nações: Convocou a terra do oriente ao ocaso”. Escuta: “A começar por Jerusalém: De Sião, imagem de sua beleza”. Portanto: “Convocou a terra do oriente ao ocaso”, concorda com as palavras do Senhor: “O Cristo devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, e que, em seu nome, fosse proclamada a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações”. Todas as nações se encontram entre o oriente e o ocaso. Concorda com as palavras do Senhor: “A começar por Jerusalém”, o seguinte: “De Sião, imagem de sua beleza”, começou a formosura de seu evangelho, e de lá começou a ser anunciado aquele que é muito belo, acima dos filhos dos homens (cf Sl 44,3). As realidades novas são consoantes às antigas, e as antigas às novas. Os dois serafins clamam um ao outro: “Santo, santo, santo é o Senhor Deus dos exércitos” (Is 6,3). Os dois Testamentos são concordes, têm uma só voz. Que se ouça a voz uníssona dos Testamentos e não a dos deserdados detratores. Por conseguinte, assim agiu o Deus dos deuses: “Convocou a terra do oriente ao ocaso”, e de Sião procede a sua beleza. Lá se encontravam os discípulos, que receberam o Espírito Santo no quinquagésimo dia após a sua ressurreição, enviado por ele do céu (cf At 2,4). De lá provém o evangelho, de lá a pregação, de lá encheu-se toda a terra, pela graça da fé.

5 O Senhor, em sua vinda, como viera para sofrer, veio ocultamente. Sendo forte em si mesmo, apareceu fraco na carne. Era preciso que o vissem sem o entenderem, que fosse desprezado para ser morto. Sua condição gloriosa estava na divindade; mas escondia-se na carne. Se o tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8). Desta forma, portanto, entre os judeus, no meio dos inimigos, ele andava oculto, fazendo milagres, sofrendo males, até que fosse suspenso no madeiro. Os judeus, vendo-o crucificado ainda mais o desprezaram, e meneando a cabeça diante da cruz, diziam: “Se és Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27,38.39). Por conseguinte, o Deus dos deuses estava oculto, e emitia palavras mais adequadas aos nossos padecimentos do que a sua majestade. De onde provêm as palavras seguintes, a não ser da natureza que assumiu igual à nossa: “Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” (Sl 21,2; Mt 27,46). Mas, quando foi que o Pai abandonou o Filho, ou o Filho ao Pai? Não são um só Deus, o Filho e o Pai? Não é inteiramente verdade a afirmação: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30)? De onde provém, então, a pergunta: “Deus, meu Deus, por que me desamparaste”, a não ser que na fraqueza da carne se mostrava a voz dos pecadores? Quem aceitou a semelhança da carne de pecado (cf Rm 8,3), por que não tomaria a semelhança da voz do pecado? De fato, estava escondido o Deus dos deuses quando andava no meio dos homens, quando tinha fome e sede, quando se assentou cansado, quando dormiu fatigado, quando foi preso, flagelado, compareceu diante do juiz e respondeu a seu orgulho: “Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto” (Jo 19,11); e ainda ao ser conduzido como um cordeiro ao matadouro, como uma ovelha que permanece muda na presença dos tosquiadores (cf Is 53,7), esteve sempre oculto o Deus dos deuses. E o que aconteceu depois na ressurreição? Os discípulos se admiraram, e primeiro não acreditaram, até que o tocassem e apalpassem. A carne ressuscitara, porque ela havia morrido; a divindade que não podia morrer, ainda mesmo na carne do ressuscitado se escondia. Foi possível ver-se sua figura, segurar os membros, tocar as chagas. Quem vê o Verbo, pelo qual foram feitas todas as coisas? Quem o segura? Quem o toca? E, no entanto, “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). E Tomé entendia na medida que podia ser Deus aquele homem que ele segurava. Tendo tocado as chagas, exclamou: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28). O Senhor, no entanto, mostrava aquele aspecto, a mesma carne que se via na cruz, que fora depositada no sepulcro. Esteve com eles quarenta dias. Não apareceu aos ímpios judeus; mostrou-se aos que nele haviam acreditado antes que fosse crucificado, a fim de tornar fortes após a ressurreição aqueles que, crucificado, deixara titubeantes. Em seguida, no quadragésimo dia, recomendando sua Igreja, isto é, a que convocara da terra inteira, do oriente ao ocidente, para que não tivessem escusas os que querem perecer no cisma, subiu ao céu, ordenando-lhes: “Sereis, então, minhas testemunhas em Jerusalém” (de onde vem a “imagem de sua beleza), em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra”. Tendo dito isso, uma nuvem o ocultou a seus olhos. Os discípulos olhavam aquele que haviam conhecido; todavia, o conheceram na humildade, ainda não na glória. E enquanto ele se afastava para o céu, um anjo os admoestou: “Homens da Galileia, que estais aí a contemplar o céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado, virá do mesmo modo que para o céu o vistes partir” (At 1,3-12). Subiu, portanto; os discípulos voltaram cheios de alegria, permaneceram na cidade, segundo o preceito do Senhor, até que ficassem cheios do Espírito Santo. O que fora dito a Tomé, que tocava o Senhor? “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram” (Jo 20,29). Refere-se a nós esta predição. Aquela terra convocada do oriente ao ocaso não vê, mas crê. Está oculto, por conseguinte, o Deus dos deuses para aqueles entre os quais andou, para os que o crucificaram, para aqueles que o viram ressuscitado, e para nós que acreditamos estar sentado no céu aquele que não vimos a andar na terra. E se o tivéssemos visto, não veríamos como viram os judeus que o crucificaram? É melhor não ver a Cristo e acreditar que é Deus do que vê-lo e pensar que é apenas homem. Os judeus, finalmente, opinando erroneamente o mataram, e nós acreditando, com razão, somos vivificados.

6 3Como será, então, irmãos? Aquele Deus dos deuses, outrora oculto e agora oculto, será sempre escondido? Certamente não; ouve a continuação do salmo: “Deus virá manifestamente”. Veio de maneira oculta, e virá manifestamente; veio escondido para ser julgado, virá manifestamente para julgar; veio oculto para comparecer diante do juiz, virá manifestamente a julgar também os juízes: “Virá manifestamente e não se calará”. Como? Agora se cala? E de onde vêm as palavras que proferimos? Donde os preceitos? Donde os avisos? Donde esta trombeta terrível? Não se cala e cala-se. Não silencia os avisos, cala a vingança; não omite o mandamento, mas abstém-se do juízo. Pois, suporta os pecadores que praticam o mal cotidianamente, descuidando-se de Deus, em sua consciência, no céu, na terra. A Deus nada disso escapa, e admoesta a todos universalmente. Se castiga a alguns na terra trata-se de um aviso, mas não ainda de uma condenação. Abstém-se de julgar, oculto no céu, onde ainda intercede por nós. É longânime para com os pecadores; não exerce a ira, mas espera a penitência. Em outra passagem, ele assim se exprime: “Guardei silêncio, mas sempre me calarei?” (Is 42,14). Quando não se calar mais, “Deus virá manifestamente”. Qual? “Nosso Deus”. O próprio Deus, que é nosso Deus. Não há outro Deus além de nosso Deus. Os deuses das nações são demônios. O Deus dos cristãos é o verdadeiro Deus. Ele virá, mas manifestamente, não mais para ser escarnecido, esbofeteado e flagelado; virá, mas manifestamente, não mais para que lhe batam os soldados com a cana na cabeça, seja crucificado, seja morto e sepultado. Essas coisas quis sofrer o Deus escondido. “Virá manifestamente e não se calará”.

7 Os versículos seguintes ensinam que ele virá a julgar. “Um fogo o precederá”. Vamos ter medo? Transformemo-nos e não teremos o que recear. A palha tem medo do fogo; mas, ao ouro que pode fazer? Agora, está em teu poder o que deves fazer, a fim de não experimentares a correção daquele que há de vir, mesmo contra tua vontade. Se pudéssemos impedir, irmãos, a chegada do dia do juízo, acho que nem assim devíamos viver mal. Se não houvesse o fogo do dia do juízo, se aos pecadores ameaçasse somente a separação da face de Deus, mesmo que estivessem numa afluência de delícias, o fato de não contemplarem o criador e de longe da suavidade inefável da visão de seu rosto, ainda que numa eternidade onde o pecado ficasse impune, seria lamentável. Mas, o que digo? E a quem? Isto é castigo para os que amam, não para os que desprezam. Aqueles que começaram a perceber um pouquinho a suavidade da sabedoria e da verdade, conhecem o que digo, quão grande pena consiste só em estar separado da face de Deus. Os que não provaram aquela suavidade, se ainda não desejam a face de Deus, ao menos temam o fogo; atemorizem os suplícios aqueles a quem os prêmios não estimulam. Se fazes pouco do que Deus te promete, treme diante de suas ameaças. Sentes a doçura de sua presença, e não mudas, não te animas, não suspiras, não desejas. Abraças teus pecados, os deleites carnais, ajuntas matéria para o fogo que virá. “Um fogo arderá a sua frente” (Sl 96,3). Este fogo não será como o de teu fogo. No entanto, se fores forçado a pôr a mão lá dentro, farás tudo o que quiser quem te ameaça disso. Se alguém te disser: Escreve contra teu pai, escreve contra teus filhos, pois se não o fizeres meto tua mão em teu fogão, tu o farás para não queimar a tua mão, para não arder por algum tempo teu membro, embora não seja dor que perdure. O inimigo te ameaça com mal tão leve, e praticas o mal; Deus te ameaça com um mal eterno, e não fazes o bem! Nem as ameaças deviam te obrigar a fazer o mal; nem as ameaças deviam te impedir de praticar o bem. Pois, as ameaças de Deus, as ameaças com o fogo eterno te proíbem fazer o mal, e te convidam ao bem. De onde vem que não te animas, senão porque não acreditas? Examine, portanto, cada um o seu coração, e verifique o grau de sua fé. Se cremos no juízo futuro, irmãos, vivamos bem. Agora é o tempo da misericórdia; depois, será o do juízo. Ninguém poderá dizer então: Transfere-me para os anos passados. Então, se arrependerá, mas inutilmente; arrependa-se agora, enquanto a penitência é frutuosa. Coloque-se agora à raiz da árvore um cesto de esterco, o luto do coração e das lágrimas, a fim de que não venha o agricultor e a arranque. Uma vez arrancada, o fogo a espera. Agora, embora os ramos estejam quebrados, podem de novo ser enxertados; então, toda árvore que não der bons frutos será arrancada, e lançada ao fogo (cf Lc 13,8; Mt 3,10). “Um fogo abrasador o precederá”.

8 “Ao seu redor, furiosa tempestade”. Tempestade tão furiosa varrerá a extensa eira. Desta tempestade virá o vento que há de separar dos santos todos os impuros, dos fiéis todos os fingidos, dos piedosos e tementes a palavra de Deus todos os desprezadores e soberbos. No presente existe certa mistura, desde o oriente até o ocidente. Vejamos, pois, como agirá aquele que há de vir, o que fará daquela tempestade, uma vez que “ao seu redor sopra furiosa tempestade”. Indubitavelmente esta tempestade ocasionará certa separação. Separação que não quiseram esperar os que antes de chegarem à praia, romperam as redes. Naquela separação, de fato, haverá certa distinção entre maus e bons. Existem alguns que agora seguem a Cristo, com os ombros livres, sem o peso dos cuidados mundanos e que não ouviram em vão: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me”. A eles foi dito: “Sentar-vos-eis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19,21.28). Uns, pois, julgarão com o Senhor; outros, de fato, serão julgados, mas colocados à direita. Temos um testemunho muito claro de que alguns estarão julgando em companhia do Senhor, nas palavras que citei há pouco: “Sentar-vos-eis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”.

9 Mas, replica alguém: Ali estarão sentados doze apóstolos, não mais. Onde, então, ficará o apóstolo Paulo? Porventura estará separado deles? Longe de nós afirmar isto, nem de longe pensemos em tal coisa. E se ele ocupar o lugar de Judas? Mas a Escritura divina conta quem foi colocado em substituição a Judas. Matias foi expressamente nomeado nos Atos dos Apóstolos, para que não pudéssemos duvidar a este respeito. Judas caiu, mas o número duodenário foi preenchido (cf At 1,26). Tendo os doze ocupado os doze tronos, o apóstolo Paulo não julgará? Será que vai julgar de pé? Não será assim; o Senhor que retribui com justiça não fará tal coisa: não estará a julgar de pé aquele que trabalhou mais do que todos (cf 1Cor 15,10). Certamente, ao menos este apóstolo Paulo nos obriga a pensar e perscrutar com maior cuidado qual a razão de se falar em doze tronos. Encontramos nas Escrituras outros números que significam multidão. Cinco virgens são admitidas e cinco excluídas (cf Mt 25,10.12). Pensa nas virgens, onde quer que se encontrem: seja na castidade e integridade do coração, como deve ser virgem toda a Igreja, à qual se diz: “Desposei-vos a um esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura” (2Cor 11,2); seja nas mulheres consagradas a Deus também pela integridade corporal; por acaso, são somente cinco tantos milhares? Mas, pelo número cinco figura-se a continência dos cinco sentidos corporais. Efetivamente, para muitos a corrupção veio pelos olhos, a muitos pelos ouvidos, a muitos pelo olfato ilícito, a muitos pelo gosto perverso, a muitos pelo adultério. Qualquer que domine estas cinco janelas da corrupção, e se contenha de sorte que tenha em sua consciência a glória, sem esperar o louvor dos homens, pertence ao número das cinco virgens prudentes, que trazem o óleo consigo. O que significa: ter o óleo consigo? Nossa glória é esta, o testemunho de nossa consciência (cf 2Cor 1,12). Disse também aquele que era atormentado nos infernos: “Tenho cinco irmãos” (cf Lc 16,28). Isso refere-se ao povo judaico, sujeito à Lei, porque Moisés, o legislador, escreveu cinco livros. Ainda o Senhor, após a ressurreição, ordenou aos apóstolos lançarem as redes à direita e apanharam cento e cinquenta e três peixes. E sendo em tão grande número, diz o evangelista, as redes não se romperam (Jo 21,6.11). Igualmente antes da paixão mandou que eles lançassem as redes, sem determinar se à direita ou à esquerda, porque se falasse em direita, representaria apenas os bons; se à esquerda, somente os maus. Quando se calam direita e esquerda, apanham-se misturados bons e maus. Foram apanhados então, conforme atesta a verdade do evangelho, em tão grande quantidade que as redes se rompiam (cf Lc 5,6). Aquela pesca representava o tempo presente; as redes rompidas figuravam as cisões e rupturas dos hereges e cismáticos. Os feitos do Senhor após a ressurreição significavam o que acontecerá depois da nossa ressurreição, no número daqueles que pertencerão ao reino dos céus, onde não haverá mau algum. O fato de serem lançadas as redes à direita era uma figura dos que estarão à direita, os bons, depois de afastados os da esquerda. Porventura os justos seriam apenas aqueles cento e cinquenta e três peixes, apanhados do lado direito? A Escritura se refere a milhares de milhares (cf Dn 7,10). Lede o Apocalipse. Conforme lá se refere, só do povo judaico serão talvez cento e quarenta e quatro mil (cf Ap 7,4). Considerai o grande número de mártires. Somente mais perto de nós, os denominados Massa Cândida1 , abrangem mais do que cento e cinquenta e três mártires. Enfim, superam de longe este número de peixes, aqueles sete mil mencionados na resposta dada a Elias: “Pouparei sete mil homens, que não dobraram os joelhos diante de Baal” (1Rs 19,18). Aqueles cento e cinquenta e três peixes não significam exatamente o número dos santos; mas a Escritura, com este número, quer representar o total dos santos e justos, por certo motivo, a fim de que todos entendam que os cento e cinquenta e três abrangem todos os que terão a ressurreição para a vida eterna. Efetivamente a lei tem dez preceitos. Lê-se que o Espírito da graça, pelo qual somente se pode cumprir a Lei, é septiforme (cf Jo 11,2-3). Vamos explicar o que significam os números dez e sete: dez são os preceitos, sete a graça do Espírito Santo; por esta graça cumprem-se os preceitos. Possuem o dez e o sete os que pertencem à ressurreição, à direita, ao reino dos céus, à vida eterna, a saber, os que cumprem a lei pela graça do Espírito, e não por suas obras ou por seus méritos. Quanto ao dez e ao sete, se contares de um até dezessete, acrescentando todos os números gradualmente, de forma que ao um acrescentes o dois, ajuntes o três, acrescentes o quatro, a soma dá dez; somando mais cinco, têm-se quinze, mais seis a soma será vinte e um, acrescentando sete têm-se vinte e oito, somando oito chega-se a trinta e seis, acrescentando nove, ficam quarenta e cinco, mais dez são cinquenta e cinco, mais onze chega-se a sessenta e seis, somando mais doze têm-se setenta e oito, mais treze chega-se a noventa e um, mais catorze são cento e cinco, mais quinze têm-se cento e vinte, acrescentando-se dezesseis temos cento e trinta e seis, somando mais dezessete completam-se os cento e cinquenta e três. Descobrirás que o imenso número dos santos relaciona-se com este número de poucos peixes. Assim como nas cinco virgens temos as inumeráveis virgens, como nos cinco irmãos daquele que era atormanetado nos infernos vemos os milhares do povo dos judeus, como no número de cento e cinquenta e três peixes os milhares e milhares de santos, assim nos doze tronos não há referência apenas a doze homens, mas é grande o número dos perfeitos.

10 Mas, vejo o que em consequência se nos pergunta: Como nos foi explicado: a razão de se falar em cinco virgens e de que as cinco se referem a muitas; porque aqueles cinco figuram muitos judeus; e ainda qual o motivo de cento e cinquenta e três representarem muitos perfeitos; mostra-nos por que e como os doze tronos não pertencem só a doze, mas a muitos. Qual o sentido dos doze tronos, que significariam todos os perfeitos vindos de todas as partes, comparáveis àqueles aos quais foi dito: “Sentar-vos-eis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”? E por que todos, de toda parte, pertencem ao número doze? Porque dizemos: de toda a parte, referindo-nos a todo o mundo. O orbe da terra contém quatro partes: oriente, poente, sul e norte. Os que foram chamados de todas essas partes em nome da Trindade, perfeitos através da fé e dos preceitos da Trindade (uma vez que três vezes quatro são doze), dão a conhecer que pertencem a toda a terra os santos, que se sentarão sobre doze tronos a julgar as doze tribos de Israel. Doze tribos de Israel, porque Israel todo consta de doze tribos. Assim como os que hão de julgar vêm de todo o mundo, também os julgados provêm de todo o mundo. O Apóstolo Paulo, ao censurar os fiéis leigos, que não levavam à Igreja suas causas, mas faziam comparecer diante do tribunal civil aqueles com os quais tinham rixas, disse: “Não sabeis que julgaremos os anjos?” (1Cor 6,3). Vede como se declara juiz; e não somente ele, mas todos os que julgam segundo o direito na Igreja.

11 4Sendo, portanto, evidente que muitos hão de julgar com o Senhor, e outros hão de ser julgados, não de modo igual, mas segundo os próprios méritos e que o Senhor virá com seus anjos (cf Mt 25,31.32), quando diante dele se reunirem todas as gentes, também serão computados entre os anjos aqueles que forem tão perfeitos que, sentados em doze tronos, julgarão as doze tribos de Israel. Efetivamente, alguns homens receberam a denominação de anjos. O Apóstolo diz de si mesmo: “Recebestes-me como um anjo de Deus” (Gl 4,14). A respeito de João Batista foi dito: “Eis que envio o meu anjo a tua frente; ele preparará o teu caminho diante de ti” (Ml 3,1; Mt 11,10). Por conseguinte, quando vier com todos os anjos, terá consigo também os santos. Claramente o declara Isaías: “O Senhor entra em julgamento com os anciãos do seu povo” (Is 3,14). Estes anciaõs do povo, portanto, estes já denominados anjos, estes milhares de muitos perfeitos, vindos de toda a terra, chamam-se também céu. Os outros chamam-se terra, mas fértil. Por quê? Porque há de ser colocada à direita; são aqueles aos quais se dirá: “Tive fome e me destes de comer” (Mt 25,35). Na verdade, terra fértil, com a qual se alegra o Apóstolo, aquela que lhe enviou com que acudir às suas necessidades: “Não que eu busque presentes; o que busco é o fruto que se credite em vossa conta” (Fl 4,17). E agradece, dizendo: “Finalmente, vi reflorescer o vosso interesse por mim” (ib 10). “Reflorescer” é um termo que se diz das árvores, que estavam estéreis, quase secas. O Senhor quando vier para julgar (ouçamos, irmãos, o salmo), que há de fazer? “Para o alto ele convocará o céu”. Céus, todos os santos perfeitos que hão de julgar. O Senhor do alto os convocará, para seus assessores no julgamento das doze tribos de Israel. Como os chamará para cima, se os céus estão sempre nas alturas? Os que aqui denomina céu, em outras passagens chama de céus. Quais? Os que narram a glória de Deus: “Narram os céus a glória de Deus”; deles afirma o salmista: “Seu som repercutiu por toda a terra e em todo o orbe as suas palavras” (Sl 18,2.5). Vede o Senhor a discernir no julgamento: “Para o alto convocará o céu e a terra para discernir o seu povo”. De quem? Senão dos maus? Deles no salmo não se faz menção em seguida, porque já foram julgados e condenados ao castigo. Vê estes bons, e distingue. “Para o alto convocará o céu e a terra, para discernir o seu povo”. Chama também a terra, no entanto, não para ser misturada, mas separada. Primeiro chamou a todos, sem distinção, quando “falou o Senhor, Deus dos deuses, e convocou a terra do oriente ao ocaso”. Ainda não houvera separação. Aqueles servos que foram enviados a convidar para as núpcias, reuniram bons e maus (cf Mt 22,10). Quando, porém o Deus dos deuses “vier manifestamente, e não se calar”, então “convocará o céu” para cima, a fim de julgar com ele. Céu e céus se identificam, como terra e terras, Igreja e Igrejas. “Para o alto ele convocará o céu e a terra, para discernir o seu povo”. Com o céu ele discerne a terra, isto é, o céu com ele julga a terra. Como julga a terra? Coloca uns à direita e outros à esquerda. À terra já julgada, o que diz? “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer”, etc. Então os justos responderão: “Quando foi que te vimos com fome?” Ao que lhes replicará: “Toda vez que o fizestes a um desses mais pequeninos, que são meus, a mim o fizestes” (Mt 25,34-40). O céu mostra à terra os seus pequeninos já chamados para o alto, e exaltados por causa de sua humildade: “Toda vez que o fizestes a um desses pequeninos, que são meus, a mim o fizestes. Para o alto convocará o céu e a terra, para discernir o seu povo”.

12 5“Reuni junto dele os seus justos”. Palavra divina e profética, que prêve o futuro como presente, e exorta os anjos a congregarem. Pois, o Senhor enviará os seus anjos, e diante dele se reunirão todas as gentes (cf Mt 25,52). “Reuni junto dele os seus justos”. Quais, senão os que vivem da fé, praticando obras de misercórdia? De fato, aquelas obras são obras de justiça, conforme o evangelho: “Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles” (Mt 6,1.2). Responde, como se alguém perguntasse: Que justiça? “Quando deres uma esmola”. Indicou, portanto, que as esmolas são obras de justiça. Reuni os seus próprios justos; reuni os compadecidos do indigente, que entenderam o necessitado e o pobre (cf Sl 40,2.3). Reuni-os. O Senhor os conservará e vivificará. “Reuni junto dele os seus justos, os que colocam a aliança acima dos sacrifícios”, quer dizer, que julgam suas promessas acima das obras que praticam. Pois, estas constituem sacrifícios, segundo a palavra de Deus: “É a misericórdia que eu quero mais que o sacrifício” (Os 6,6; Mt 9,13). “Os que colocam a aliança acima dos sacrifícios”.

13 6“E os céus proclamarão a sua justiça”. Verdadeiramente os céus nos anunciaram esta justiça de Deus e os evangelistas as predisseram. Ouvimos deles que o pai de família há de declarar aos da direita: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei”. O quê? “O reino”. Qual a razão disso? “Tive fome e me destes de comer”. Que há de mais banal, de terreno do que partir o pão com o faminto? É tanto que vale o reino dos céus. “Reparte o teu pão com o faminto e recolhe em tua casa os pobres desabrigados; veste aquele que vês nu” (Is 58,7). Se não tens possibilidade de repartir o pão, nem casa para abrigar, nem veste para revestir, dá um copo de água fria, lança duas moedinhas no tesouro (cf Mt 10,42; Mc 12,41). A viúva com duas moedinhas comprou tanto quanto Pedro, ao deixar as redes, quanto adquiriu Zaqueu dando metade de seus bens (cf Mt 4,20; Lc 19,8). O reino vale tanto quanto tiveres. “E os céus proclamarão a sua justiça, porque é o próprio Deus quem vai julgar”. Efetivamente, ele é juiz, que não mistura, mas distingue. O Senhor conhece os que são dele (cf 2Tm 2,19). São conhecidos pelo agricultor os grãos, mesmo se escondidos no meio da palha. Ninguém tenha receios de ser um grão no meio da palha; os olhos de nosso agricultor, ao limpar a eira, não se enganam. Não temas que a tempestade que o envolverá te confunda com a palha. Certamente, será furiosa a tempestade; no entanto, nenhum grão há de retirar com a palha, pois o juiz não é um camponês com o tridente, mas Deus, a Santíssima Trindade. “E os céus proclamarão sua justiça, porque é o próprio Deus quem vai julgar”. Partam os céus, anunciem, ressoe sua voz por toda a terra, e suas palavras até os confins do orbe (cf Sl 18,5), e diga o corpo de Cristo: “Dos confins da terra clamei a ti, quando o meu coração se angustiava” (Sl 60,13). Agora misturado geme, quando for separado há de se alegrar. Clame, portanto, e diga: “Não arruínes com os ímpios a minha alma. Nem a minha vida com os homens sanguinários” (Sl 25,9). Não arruína, porque Deus é juiz. Clame para ele, e peça: “Julga-me, ó Deus, e distingue da causa de uma gente ímpia a minha causa” (Sl 42,1). Peça que ele atenderá; reunirá junto de si os seus justos. Convocou a terra, para julgar o seu povo.

14 7“Escuta, povo meu, que vou te falar”. Aquele que há de vir e não se calará, vede que também agora, se ouvis, não se calará. “Escuta, povo meu, que vou te falar”. Se não escutas, não te falarei. “Escuta e te falarei”. Pois se não ouves, mesmo que eu fale, não será para ti. Quando, portanto, vou falar-te? Se ouvires. Quando ouves? Se és meu povo. “Escuta, pois, povo meu”. Não ouves, se és um povo estrangeiro. “Escuta, povo meu, que vou te falar. Israel, vou testificar contra ti”. Israel, escuta; povo meu, escuta. Israel é o nome dado por ocasião de sua eleição a Jacó. Disse Deus: “Não te chamarás mais Jacó, mas Israel” (Gn 32,28). Escuta, portanto, enquanto Israel, como aquele que vê a Deus, apesar se ser somente na fé, não ainda na realidade. Este é o significado do nome Israel: Aquele que vê a Deus. Quem tem ouvidos, ouça (cf Mt 11,15), e quem tem olhos para ver, veja. “Escuta, Israel, vou testificar contra ti”. Acima disse: “povo meu”, e em seguida: “Israel”. E declarou supra: “vou te falar” enquanto afirma aqui: “vou testificar contra ti”. A seu povo o que há de falar o Senhor nosso Deus? O que vai testificar contra Israel, que é dele? Ouçamos: “Deus, o teu Deus sou eu”. Eu sou Deus, e sou o teu Deus. Como “sou eu o teu Deus”? Conforme foi assegurado a Moisés: “Eu sou aquele que é” (Êx 3,14). Como “sou eu o teu Deus”? Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó. Sou Deus e sou o teu Deus; e se não fosse teu Deus, sou Deus. Sou Deus para meu bem, para teu infortúnio não sou o teu Deus. De fato, “teu Deus” propriamente refere-se a quem Deus tem por familiar, a seu serviço, como propriedade sua. “Deus, o teu Deus sou eu”. Que desejas mais? Ambicionas receber de Deus um prêmio, que Deus te conceda alguma coisa, de forma que seja teu o que ele te der? Eis que é teu o próprio Deus, o doador. Que pode haver de mais rico do que ele? Querias seus dons e tens o próprio doador. “Deus, o teu Deus sou eu”.

15 8Vejamos o que ele quer do homem. Nosso Deus, nosso imperador, nosso rei que imposto exige, uma vez que quis ser nosso rei e que fôssemos seu domínio? Ouçamos suas exigências. Não hesite o pobre diante das exigências de Deus. Ele dá o que exige e dá primeiro o que indica. Basta que sejais dedicados. Deus não exige aquilo que ele não deu, e é a todos que dá. Que é que exige? Ouçamos: “Não te repreendo por teus sacrifícios”. Não direi: Por que não me mataste o touro cevado? Por que não escolheste de teu rebanho o melhor cabrito? Por que aquele carneiro entre as tuas ovelhas, que não pões sobre o meu altar? Não direi: Examina teus campos e teu curral, teus muros, à busca do que me oferecer. “Não te reprendo por teus sacrifícios”. Como, então? Não aceitas os meus sacrifícios? “Na minha presença estão sempre os teus holocaustos”. Outro salmo se refere a tais holocaustos: “Pois, se quisesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria. Não te comprazes em holocaustos”. E novamente volta-se para si: “Sacrifício a Deus é o espírito contrito, o coração arrependido e humilhado Deus não despreza”. Quais são os holocaustos que ele não despreza? Quais os que estão sempre em sua presença? “Senhor, em tua bondade, derrama sobre Sião teus benefícios; reedifica os muros de Jerusalém. Aceitarás então os sacrifícios de justiça, as oblações e os holocaustos” (Sl 50,18-21). Diz o salmista que Deus aceita determinados holocaustos. O que é, porém, um holocausto? Um sacrifício em que a vítima é toda consumida pelo fogo; katois é o ato de queimar, olav é: todo; holocausto, portanto, significa totalmente consumido pelo fogo. Existe o fogo da caridade muito ardente. Que a alma se inflame de caridade, e ela arrebatará os membros de seu uso ordinário e não permitirá que satisfaçam às concupiscências, de tal sorte que arda inteiramente no fogo do amor divino aquele que quer oferecer a Deus um holocausto. “Tais holocaustos teus estão sempre na minha presença”.

16 9Provavelmente este Israel ainda não entende quais holocaustos ele tem sempre em sua presença e cogita de bois, ovelhas, cabritos. Não penses nisso: “Não tomarei de tua casa novilhos”. Eu nomeara holocaustos; já corrias de ânimo e pensamento aos rebanhos terrenos, e do meio deles escolhias um animal cevado. “Não tomarei de tua casa novilhos”. Anuncia o Novo Testamento, onde cessaram todos aqueles antigos sacrifícios, que prenunciavam um sacrifício futuro, cujo sangue nos purificaria. “Não tomarei de tua casa novilhos, nem cabritos de teus rebanhos”.

17 10“A mim pertencem todas as feras da selva”. Por que hei de te pedir aquilo que eu mesmo criei? Os bens que te dei para possuíres, seriam mais teus do que meus, se os criei? “A mim pertencem todas as feras da selva”. É possível que replique Israel: As feras são de Deus, aqueles animais ferozes que não guardo no meu curral, que não prendo em minha estrebaria; quanto aos bois, ovelhas e cabritos, são meus. “Os animais dos montes e os bois”. São meus os animais que não possuis, são meus os que tens. Se és meu servo, todo o teu pecúlio é meu. Se é pecúlio do Senhor o que o escravo adquiriu para si, não o seria aquilo que o Senhor criou para o escravo? São, portanto, minhas as feras da floresta que tu não apanhaste; e são meus os animais nos montes que são teus, e os bois de tua manjedoura. Tudo é meu, porque fui eu quem o criou.

18 11“Conheço todos os pássaros do céu”. De que modo os conhece? Pesou-os, contou-os. Quem de nós conhece todos os pássaros do céu? Mesmo que Deus desse a alguém o conhecimento de todas as aves do céu, não lhe daria a conhecer da mesma forma que ele as conhece. Uma coisa é o conhecimento que Deus tem, e outra o do homem. Igualmente, difere o modo de Deus possuir e o do homem; isto é, uma coisa é quando Deus possui, e outra quando se trata de um homem. Não tens totalmente em teu poder as tuas posses. Não está em teu poder quanto tempo há de viver o teu boi, ou que não morra, ou que não se apascente. Aquele que tem o poder supremo possui também sumo e secreto conhecimento. Atribuamo-lo a Deus, com louvores. Não ousemos dizer: Como é que Deus conhece? Não aconteça, meus irmãos, que estejais na expectativa de que vos explique como é que Deus conhece. Digo apenas isto: Ele não conhece como o homem, nem como o anjo; mas não ouso dizer como conhece, porque também não o posso saber. Sei apenas uma coisa: Antes que existissem as aves do céu, Deus já sabia o que haveria de criar. Como era este conhecimento? Ó homem, começaste a ver as aves depois que foste plasmado e recebeste o sentido da vista. As aves nasceram da água, pela palavra de Deus: “As águas produzam as aves” (cf Gn 1,20). Como conhecia Deus as aves que ele mandava as águas produzirem? Certamente já conhecia o que criara, e antes mesmo de criar. Tão grande é o conhecimento de Deus que no seu intelecto existiam as criaturas de modo inefável antes de serem criadas. Então haverá de receber de ti o que possuía antes de ser criado? “Conheço todos os pássaros do céu”, que não me podes dar. Conheci todos os seres que me haverias de imolar. Não os conheci por ter feito, mas por que haveria de fazer. “E a beleza dos campos está comigo”. A beleza dos campos, a fertilidade do que brota da terra, “está comigo”, diz o Senhor. Como está com ele? Porventura antes de ser feita? Com ele, de fato, estavam todas as coisas futuras, e com ele estão todas as passadas. As futuras estão, sem que lhe sejam tiradas as passadas. Com ele estão todas, por certo conhecimento da inefável sabedoria de Deus, estabelecida no Verbo, que é o própio Verbo. Ou estará com ele de outro modo a beleza do campo, porque Deus está em toda a parte, ele que disse: “Não sou eu que encho o céu e a terra?” (Jr 23,24). Pode alguma coisa não estar com aquele de quem se diz: “Se subir até o céu, lá estás, se descer aos abismos está presente” (Sl 138,8)? Todas as coisas se acham com ele. Mas, não se acham com ele, porque precisa do contacto de uma criatura, ou sofre necessidade dela. Pois, talvez estejas de pé junto de uma coluna e quando te sentes cansado, apoias-te nela. Precisas daquilo que está perto de ti, mas Deus não necessita do campo que está perto dele. O campo está com ele, a beleza da terra está com ele, a formosura do céu está com ele, todas as aves estão com ele, porque ele está em toda parte. E por que todas as coisas estão junto dele? Porque antes que fossem, que fossem criadas, todas elas lhe eram conhecidas.

19 12Quem pode explicar, expor a afirmação de outro salmo: “Não precisas de meus bens” (Sl 15,2)? Deus aqui declara que não necessita de nós. “Se eu tivesse fome, não iria dizer-te”. O guarda de Israel não passará fome, nem sede, nem trabalhos, nem dormirá (cf Sl 120,4). Mas falo segundo teu senso carnal; pois sentes fome quando não comes, e pensas talvez que Deus tem fome e come. Mesmo que tivesse fome, não iria dizer-te; tudo está diante dele, e tiraria de onde quisesse o que lhe fosse necessário. Isto, para que se convença quem tiver uma noção mesquinha, e não que Deus tenha confessado ter fome. Embora, por nossa causa, o Deus dos deuses se dignou ter fome. Veio à terra para ter fome e alimentar, veio ter sede e dar de beber, veio revestir-se de nossa mortalidade e revestir da imortalidade, veio pobre para enriquecer a muitos. Efetivamente não perdeu suas riquezas ao assumir nossa pobreza, porque nele se encontram escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência (cf Cl 2,3). “Se eu tivesse fome, não iria dizer-te, porque minha é a terra e quanto nela se encerra”. Não te empenhas por obter o que me hás de dar, porque sem trabalho consigo o que quero.

20 13Por que, então, ficas cogitando de teus rebanhos? “Irei comer, acaso, carnes de touros, ou beber sangue dos cabritos?” Ouvistes o que não nos pede aquele que reclama de nós não sei bem o quê. Se pensáveis em tais coisas, afastai vosso pensamento disso. Nada disso deveis pensar em oferecer a Deus. Se tens um touro cevado, mata-o para os pobres. Comam eles as carnes dos touros, mesmo se não beberem o sangue dos cabritos. Se o fizeres, levará em conta a teu favor aquele que disse: “Se eu tivesse fome, não iria dizer-te”, e haverá de te declarar: “Tive fome e me deste de comer” (Mt 25,35). “Irei comer, porventura, carnes de touros, ou beber sangue de cabritos?”

21 14Por conseguinte, formula esta pergunta: Senhor, nosso Deus, o que exiges de teu povo, de Israel que é teu? “Oferece a Deus um sacrifício de louvor”. Digamos-lhe também nós: “Em mim, ó Deus, estão os votos de louvor, que cumprirei” (Sl 55,12). Estava assustado por recear que reclamasses alguma coisa de exterior, que eu contasse haver no meu curral, mas talvez já tivesse sido roubado por um ladrão. Que exiges de mim? “Oferece a Deus um sacrifício de louvor”. Volto-me para mim mesmo, procurando encontrar matéria para o sacrifício; volto-me para mim mesmo para encontrar o sacrifício de louvor. Seja minha consciência o teu altar. “Oferece a Deus um sacrifício de louvor”. Estamos tranquilos. Não é preciso ir à Árabia buscar incenso, não examinamos os fardos de um comerciante avaro. Deus nos pede um sacrifício de louvor. Zaqueu tinha este sacrifício de louvor em seu patrimônio, a viúva em sua bolsinha, não sei qual pobre hospedeiro em sua almotolia; outro nada possuía nem em patrimônio, nem em bolsinha, nem em almotolia, mas guardava todas as suas posses em sua alma. Salvação para a casa de Zaqueu; e a viúva deu mais do que aqueles ricos. Alguém que dá um copo de água fria, não perde sua recompensa. Mas também paz na terra aos homens de boa vontade (cf Lc 19,8; Mc 12,42; Mt 10,42; Lc 2,14). “Oferece a Deus um sacrifício de louvor”. Oh sacrifício gratuito, dom da graça! De fato, não comprei o que oferecer; tu o deste, pois eu não tinha nem isso. “Oferece a Deus um sacrifício de louvor”. E esta é a imolação de um sacrifício de louvor: dar graças ao Senhor de quem recebes tudo o que tens de bom, e cuja misericórdia perdoa tudo o que há de mal em ti. “Oferece a Deus um sacrifício de louvor, e cumpre os teus votos ao Altíssimo”. O Senhor se compraz neste bom odor. “Cumpre os teus votos ao Altíssimo”. 1 Cf Serm. 306,2; serm. p. Maur. repert. Morin XIV, p. 644ss.

22 15“E invoca-me nos dias de tribulação. Eu te livrarei e tu me glorificarás”. Não presumas de tuas forças. Todos os teus auxílios são enganosos. “E invoca-me nos dias de tribulação. Eu te livrarei e tu me glorificarás”. Foi para isso que permiti viessem os dias de tribulação. Talvez não me invocasses se não estivesses aflito. Mas, ao te afligires, tu me invocas. Ao invocares, eu te livrarei. Libertado, tu me glorificarás e não te apartarás mais de mim. Certo homem entibiara-se e esfriara o fervor de sua oração; disse então: “Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor” (Sl 114,3.4). Encontrou a tribulação como sendo algo de útil. Estava infeccionado devido a seus pecados, perdera os sentidos. Veio a tribulação, qual cauterização e amputação. Diz o salmista: “Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor”. Em verdade, irmãos, existem tribulações que todos experimentam. São superabundantes no gênero humano: alguém se queixa de um prejuízo; outro chora devido a um luto; outro entristece-se no exílio e suspira pela volta à pátria, considerando intolerável viver como peregrino; outro teve a vinha atingida por granizo, considera seus esforços e como se inutilizou todo o seu trabalho. Quando pode o homem evitar a tristeza? Vem a sofrer de um amigo transformado em inimigo. Que miséria maior existe no gênero humano? Todos se lamentam, se queixam. São tribulações todas elas, e nelas envolvidos os homens invocam o Senhor, com razão. Invoquem a Deus. Ele pode ensinar a suportar, ou remediar o mal tolerado. Ele sabe não nos deixar tentação acima de nossas forças (cf 1Cor 10,13). Invoquemos a Deus também nestas tribulações. Mas estas tribulações vêm ao nosso encontro, conforme está escrito em outro salmo: Deus é nosso “auxílio nas tribulações que nos cercaram em demasia” (Sl 45,2). Mas, existe outra que nós devemos encontrar. Encontrem-nos aquelas tribulações; mas existe uma que devemos procurar e encontrar. Qual é? A felicidade neste mundo, a afluência dos bens temporais. Em si não são tribulações; são alívios em nossa tribulação. De qual? A da nossa peregrinação. Pelo fato mesmo de ainda não estarmos com Deus, de vivermos no meio de tentações e incomodidades, de não estarmos isentos de temor, sofremos tribulação. Não temos a segurança que nos foi prometida. Quem não descobrir esta tribulação inerente a sua peregrinação, não cogita de voltar à pátria. Isto é tribulação, irmãos. Certamente agora praticamos boas obras, ao partirmos o pão com o faminto, abrigarmos em casa o peregrino, etc.; isto igualmente é tribulação. Encontramos infelizes e exercemos a misericórdia para com eles; a miséria destes infelizes nos faz compadecidos. Como não estarias em melhores condições lá onde não encontrarás faminto a alimentar, peregrino a acolher, nu a vestir, doente a visitar, adversário a apaziguar! Ali tudo é excelente, verdadeiro, santo, eterno. Ali nosso pão é a justiça, nossa bebida a sabedoria, nossa veste a imortalidade, nossa eterna morada os céus, nossa firmeza a imortalidade. Por acaso ali se introduz a doença? O cansaço conduz ao sono? Não há absolutamente morte, nem contendas. Ali há paz, repouso, alegria, justiça. Não penetra inimigo algum, nenhum amigo abandona. Que repouso! Se ponderarmos, se notarmos onde nos encontramos e onde aquele que não mente prometeu que haveríamos de estar, só o fato da promessa nos mostra a tribulação em que nos achamos. Só encontra esta tribulação quem a procura. Estás são. Vê se és infeliz, porque é mais fácil a quem adoecer perceber que é infeliz. Quando estás com saúde, examina se és infeliz, porque ainda não estás junto de Deus. “Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor” (Sl 114,3). “Oferece a Deus um sacrifício de louvor”. Louva o Senhor que promete, louva o que chama, que exorta, que ajuda; e entende em que tribulação te encontras. Invoca e serás libertado, glorificarás, permanecerá

23 16Ve a continuação, meus irmãos. Como Deus havia dito: “Oferece a Deus um sacrifício de louvor”, e o ordenara qual tributo, alguém refletiu e declarou: Cada dia vou levantar-me, dirigirme à igreja, cantar um hino matutino, outro vespertino, um terceiro e um quarto em minha casa. Assim diariamente ofereço um sacrifício de louvor, e imolo uma vítima a meu Deus. Fazes bem, na verdade, se assim ages; mas examina se já te sentes seguro por agir assim; talvez tua língua bendiz a Deus, e tua vida o maldiz. Ó meu povo, o Deus dos deuses que falou, convocando a terra do oriente ao ocaso, dirige-se a ti, apesar de ainda estares no meio do joio, com as palavras: “Oferece um sacrifício de louvor” a teu Deus, e “cumpre os teus votos”; cuidado, porém, de não viveres mal, enquanto cantas bem. E por que isto? “Ao pecador”, porém, “Deus diz: Por que enumeras as minhas justiças e tens na boca a minha aliança?” Vede, irmãos, com que tremor proferimos estas palavras. Temos na boca a aliança de Deus, e vos pregamos a doutrina e as justiças de Deus. E o que diz Deus ao pecador? “Por que tu?” Proíbe, então, que os pecadores sejam pregadores? E o que fazer da palavra: “Fazei tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações” (Mt 23,3)? E a outra palavra: “Com segundas intenções ou sinceramente — Cristo é proclamado” (Fl 1,18)? Mas, se estas palavras foram proferidas, não tenham medo os ouvintes de quem quer que seja, de que se sintam seguros os que falam o que é bom e praticam o mal. Por conseguinte, irmãos, ficai tranquilos; se ouvis coisas boas, é a Deus que ouvis, seja de quem for que ouvis. Deus, porém, não quis deixar sem correção os pregadores, para que não se sintam seguros apenas pelo que dizem, e cochilem numa vida malvada, dizendo a si mesmos: Deus não há de condenar, ele que quis proferíssemos tantas palavras boas diante de seu povo. Muito ao contrário. Ouve o que estás dizendo, quem quer que sejas, e se queres ser ouvido, primeiro escuta. E repete o que diz alguém em outro salmo: “Ouvirei o que falar em mim o Senhor Deus, porque falará de paz a seu povo” (Sl 84,9). Quem sou eu que não ouço o que o Senhor me fala e quero que os outros escutem o que é proferido por meu intermédio? Que eu ouça primeiro, ouça, principalmente ouça o que falar em mim o Senhor Deus, porque falará de paz a seu povo. Ouça, e castigue o meu corpo e o reduza à servidão, a fim de que não aconteça que, tendo proclamado a mensagem aos outros, venha eu mesmo a ser reprovado (cf 1Cor 9,27). “Por que enumeras as minhas justiças?” Por que enumeras o que não te aproveita? O Senhor admoesta a ouvir, não para que pares de pregar, mas para que comeces a obedecer. Tu, porém, “tens na boca a minha aliança”. Para quê?

24 17“Pois, tu detestas a disciplina”. Detestas a disciplina. Quando eu poupo, cantas e louvas; quando castigo, murmuras. Parece que sou o teu Deus quando poupo, e não sou quando castigo. Arguo e castigo aqueles que amo (cf Ap 3,19). “Pois, tu detestas a disciplina e atiraste para trás as minhas palavras”. Atiras para trás o que dizes por tua boca. “Atiraste para trás as minhas palavras”, onde não vês, mas elas te oneram. “E atiraste para trás as minhas palavras”.

25 18“Se vias ladrão, corrias com ele e aos adúlteros te associavas”. Não digas: Não roubei, não cometi adultério. Mas, se te agrada quem o cometeu? Não colaboraste por tua aprovação? Não te associaste a ele, elogiando-o? Correr com um ladrão e associar-se aos adúlteros é isso, irmãos. Mesmo que não cometas, se louvas aquele que o comete, apoias o fato. Porque o pecador se gloria nos desejos de sua alma e o iníquo se bendiz (Sl 9,24). Não praticas o mal, mas louvas quem o faz. Seria isto um mal insignificante? “E aos adúlteros te associavas”.

26 19“De tua boca transbordou a malícia e tua língua abraçou o dolo”. O salmista, irmãos, refere-se à malevolência e ao dolo de certos homens que por adulação, apesar de saberem que é mal o que escutam, a fim de não ofenderem os outros ouvintes consentem, não somente por não censurarem, mas também por calarem. Não basta não dizerem: Fizeste mal. Mas afirmam: Fizeste bem, embora saibam que é mal. De sua boca transborda a malícia e sua língua trama enganos. O dolo consiste em uma espécie de fraude nas palavras: dizer uma coisa e pensar outra. O salmista não diz: Tua língua admitiu o dolo, ou: perpetrou o dolo, mas para mostrar que houve certo deleite no próprio ato mau, disse: “abraçou”. Não foi bastante o ato, mas acrescentas o deleite: louvas no momento e ris por dentro. Precipitas no abismo aquele que incautamente manifesta seus vícios, sem saber que é um mal. Tu que sabes que é um vício, não dizes: Onde te jogas? Se o visses andando sem cuidados na escuridão, num lugar onde sabes que existe um poço e calasses, que espécie de gente tu serias? Não serias tido por seu inimigo? E no entanto se caísse no poço, morreria o corpo, não a alma. Ele se precipita em seus vícios, gaba-se junto de ti de seus malvados atos; tu sabes que são pecados, e elogias, rindo por dentro. Oh! Se um dia Deus converter aquele de quem zombas, e que não quiseste corrigir, e ele te disser: Corem de vergonha os que me dizem: Bem feito, bem feito! (cf Sl 39,16). “E tua língua abraçou o dolo”.

27 20“Tu te assentavas para falar contra teu irmão”. “Assentava” relaciona-se com o que foi dito acima: “abraçou”. Quem pratica de pé, ou de passagem, não o faz com prazer; quem, porém, se assenta, procura um lazer para praticar melhor! “Tu te assentavas para falar contra teu irmão”. Praticavas com cuidado a detração, estando sentado; querias ocupar-te com ela, abraçavas o mal, osculavas o dolo. “Tu te assentavas para falar contra teu irmão, e para pôr um tropeço ao filho de tua mãe”. Quem é “o filho de tua mãe”? Não é teu irmão? Quis, portanto, repetir o que dissera acima: “teu irmão”. Ou insinuou alguma distinção para procurarmos entender? Efetivamente, irmãos, acho que devemos distinguir. Um irmão fala contra outro irmão. Por exemplo: Alguém que parece seguro, de alguma projeção, instruído, douto, fala mal de um irmão, que talvez seja bom mestre e de vida honesta. Quem o ouve é fraco, e fica escandalizado com a detração. De fato, quando um homem que parece importante e douto fala mal dos bons, escandalizam-se os fracos, que não sabem julgar. Um desses fracos é denominado “filho de sua mãe”, não de seu pai, porque ainda necessita de leite, ainda mama. Ainda é carregado no colo da Igreja, sua mãe, pois não pode tomar alimento sólido à mesa de seu pai, mas se nutre do leite materno; é incapaz de julgar, por ser apenas animal e carnal. “O homem espiritual julga a respeito de tudo; o homem carnal, porém, não aceita o que vem do espírito de Deus. É loucura para ele”. A esses tais diz o Apóstolo: “Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais, como a crianças em Cristo. Deivos a beber leite, não alimento sólido, pois não o podíeis suportar. Mas nem mesmo agora podeis. Fui mãe para vós, conforme está dito em outra passagem: Fizemo-nos pequenos no meio de vós, como mãe que acaricia os seus filhinhos” (1Cor 2,15.14; 3,1.2; 1Ts 2,7). Não foi qual ama a alimentar filhos alheios, e sim mãe que nutre os próprios filhos. Existem mães que entregam a amas os filhos que deram à luz; as que os geraram não acariciam seus filhos, porque os entregam a amas que os nutram. As amas acariciam os filhos de outras mães, que não são seus. Paulo, porém, gerara e acariciava. Não entregava os filhos a nutrícios. Pois, havia dito: “Meus filhos, por quem sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4,19). Acariciava, portanto, e aleitava. Havia, contudo, alguns, que pareciam doutos e espirituais, que falavam contra Paulo: “Pois as cartas, dizem, são severas e enérgicas, mas, uma vez presente, é um homem fraco e a sua linguagem é desprezível” (2Cor 10,10). É ele mesmo que em sua carta conta terem dito isto alguns detratores, a seu respeito. Assentavam-se, e falavam contra seu irmão e punham tropeço diante do filho de sua mãe. Por conseguinte, eles fizeram com que sua mãe de novo tivesse de dar à luz. “Para pôr tropeço ao filho de tua mãe”.

28 21“Fizeste isto e calei”. Por isso, o Senhor nosso Deus virá e não calará. Agora, porém: “Fizeste isto e calei”. O que significa: “Calei”? Retive a vingança, adiei minha severidade, prolonguei em teu favor a minha paciência, esperei longamente por tua penitência1 . “Fizeste isto e calei”. Se eu esperei que te arrependesses, conforme diz o Apóstolo: “Ora, com tua obstinação e com teu coração impenitente, estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus” (Rm 2,5). “Suspeitaste, devido a tua iniquidade que sou semelhante a ti”. Não te basta agradarem-te os teus maus atos, e por cima ainda julgas que me aprazem. Não me suportas enquanto Deus vingador, e queres ter-me por partícipe, juiz corrupto e sócio dos teus despojos. “Suspeitaste, devido a tua iniquidade, que sou semelhante a ti”, e no entanto não queres ser semelhante a mim. “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. Ele faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus” (Mt 5,48.45). Não quiseste imitar aquele que dá bens até aos maus, de tal modo que, ao invés sentado falas mal até contra os bons. “Suspeitaste, devido a tua iniquidade, que sou semelhante a ti. Censurar-te-ei”. Quando vier “manifestamente Deus, nosso Deus, e não se calar, censurar-te-ei”. E o que te farei ao te censurar? O que hei de fazer? Agora não vês; farei com que vejas a ti mesmo. Se te vires, e o resultado te desagradar, haverás de me agradar. Mas, como, ao contrário, não te vias e te comprazias em ti mesmo, desagradarás a mim e a ti. A mim, ao julgar. A ti, ao arderes no fogo. O que te hei de fazer? “Manifestarei a ti mesmo diante de teus olhos”. Por que motivo queres esconder-te de ti mesmo? Puseste a ti mesmo nas costas, e não te vês. Farei com que vejas. Porei diante de teu olhos o que puseste às costas. Verás tua fealdade, não mais para te corrigires, mas para te envergonhares. Uma vez que Deus assim fala, irmãos, deve desesperar aquele ao qual ele se dirigiu? Porventura aquela cidade, da qual se disse: “Ainda três dias, e Nínive será destruída”, não foi capaz de converter-se, orar, chorar, merecer perdão do castigo iminente, em três dias? (Jo 2,4-10). Ouçam os que são tão culpados, enquanto é possível ouvir do Deus que se cala. Pois, ele virá, e não calará, e arguirá, quando não houver mais possibilidade de correção. “Manifestarei a ti mesmo diante de teus olhos”, diz o Senhor. Agora, pois, faze tu, que és dos tais, o que Deus ameaça te fazer. Tira-te das costas, onde não queres te ver, dissimulando tuas ações, e coloca-te diante de ti mesmo. Comparece ao tribunal de tua mente, sê teu próprio juiz, sente o tormento do temor, prorrompa a confissão e declara a teu Deus: “Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 50,5). Esteja diante de ti o que estava atrás, a fim de não suceder depois que venhas a tua frente, perante Deus, como juiz, e não encontras meios de fugir.

29 22“Compreendei isto, vós que esqueceis a Deus”. Vede que ele clama; não cala, não poupa. Havias te esquecido do Senhor e não pensavas em tua péssima vida. Entende que havias te esquecido do Senhor. “Não suceda que vos arrebate como um leão e não haja quem vos livre”. O que quer dizer: “como leão”? Como forte, poderoso, como alguém ao qual não é possível resistir. Refere-se a isto o termo “leão”. Pode servir de louvor, e pode ser injúria. O diabo recebeu o nome de leão: “O vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando quem devorar” (1Pd 5,8). Se ele é denominado leão por causa de sua cruel ferocidade, Cristo não é figurado pelo leão, por causa de sua imensa força? Donde provém a palavra: “Venceu o leão da tribo de Judá” (Ap 5,5)? V. Caridade preste atenção ainda um pouquinho. Falta muito pouco. Exorto-vos a sacudir o cansaço; estará junto de vós aquele que até agora vos deu forças. O salmista dissera pouco acima, como que nos impondo o tributo de louvor e ouvistes: “Oferece a Deus um sacrifício de louvor e cumpre os votos ao Altíssimo”. Mais abaixo, porém: “Ao pecador, porém, Deus diz: ‘Por que enumeras as minhas justiças e tens na boca a minha aliança’ ”? Parece dizer ao pecador: Nada te serve louvar-me. Impus o sacrifício de louvor aos que vivem retamente, àqueles, portanto, que ganham em louvor; tu, porém, se louvas, nada te adianta. Por que me louvas? “O louvor não é belo na boca do pecador” (Ecl 15,9). Em seguida, conclui de certo modo para ambos e arguindo os maus que se esquecem de Deus, diz: “Compreendei isso, vós que esqueceis a Deus. Não suceda vos arrebate como um leão e não haja quem vos livre”.

30 23“O sacrifício de louvor me glorificará”. Como é que “o sacrifício de louvor me glorificará”? Certamente nada aproveita aos maus o sacrifício de louvor, porque têm o teu Testamento em sua boca, e praticam atos condenáveis, odiosos a teus olhos. Todavia, diz o Senhor, também a estes eu digo: “O sacrifício de louvor me glorificará”. Já adotaras o parecer de que o louvor não te aproveitaria. Louva. Ser-te-à útil. Pois, se vives mal e proferes palavras boas, ainda não estás louvando. Mas, ainda se começares a viver bem, e o atribuíres a teus méritos ainda não estás louvando. Não quero que sejas como o ladrão que injuriava o Senhor na cruz; mas também não quero que sejas aquele que no templo se gabava de seus méritos, ocultando suas feridas (cf Lc 23,39; 15,11). Se fores iníquo e perseverares naquela iniquidade, não te direi: O louvor não te será proveitoso. Mas direi: Não me louvas. Não considero isso um louvor. Novamente, se fores quase justo (pois ninguém é justo se não for humilde e piedoso), e se estiveres orgulhoso de tua justiça, desprezares os outros comparando-os a ti e excessivamente te exaltares, gloriando-te de teus méritos, não me louvas. Também não me louva aquele que vive mal; nem me louva o que vive bem como se isto proviesse de si mesmo. Por acaso aquele fariseu era dos tais, que pensam que viver bem provém de si mesmo, quando dizia: “Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens”. Dava graças a Deus por possuir bens em si. Apesar de haver em ti algum bem, apesar de já entenderes que o bem que há em ti de ti não deriva, mas o recebeste de Deus, todavia porque te exaltas acima de outro que não o tem, és invejoso, e ainda não me estás louvando. Primeiro, portanto, corrige-te do teu péssimo caminho e começa a viver bem; entende que só te corrigirás por um dom de Deus. Pois, “o Senhor dirigirá os passos do homem” (Sl 36,23). Ao entenderes isso, sê favorável também aos outros, a fim de se tornarem aquilo que tu és; pois eras também tu o que eles são agora. Favorece quanto puderes e não percas a esperança; Deus não limita sua riqueza a ti. Por conseguinte não louva aquele que ofende o Senhor, vivendo mal. Não louva quem ao começar a viver bem, julga que tira de si mesmo a possibilidade de viver bem e não a recebe de Deus. Nem louva quem sabendo que recebeu de Deus o dom de viver bem, no entanto, quer limitar a si a riqueza do dom de Deus. Aquele, portanto, que dizia: “Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens, injustos, ladrões, adúlteros, e nem como este publicano”, não tinha motivos suficientes para dizer: Dá também a este publicano o que me deste, e completa o que ainda não me deste? Mas ele parecia arrotar, saciado. Não dizia: Eu sou necessitado e pobre (cf. 69,6), consoante o que declarava aquele publicano: “Senhor, tem piedade de mim, pecador!” Por isso o publicano desceu para casa justificado, mais do que o fariseu (Lc 18,11-14). Por esta razão, ouvi vós que viveis bem, ouvi vós que viveis mal: “O sacrifício de louvor me glorificará”. Ninguém me oferece este sacrifício de louvor, e continua malvado. Não digo: Que o mau não mo ofereça, mas: Ninguém oferece este sacrifício sendo mau. Quem louva é bom, porque se louva, também vive bem. Se louva, não louva apenas com a língua, mas vida e língua concordam entre si.

31 “O sacrifício de louvor me glorificará, e ali está o caminho em que lhe mostrarei a salvação de Deus”. No sacrifício de louvor acha-se “o caminho em que lhe mostrarei a salvação de Deus”. Qual é a “salvação de Deus”? É o Cristo Jesus. E como no sacrifício de louvor Cristo se nos manifesta! Porque Cristo vem a nós com sua graça. O Apóstolo afirma o seguinte: “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). Reconheçam, portanto, os pecadores, que não precisariam de médico se estivessem com saúde (cf Mt 9,12). Pois, Cristo morreu pelos ímpios (cf Rm 5,6). Quando, portanto, reconhecem suas impiedades, imitam primeiro aquele publicano que dizia: “Senhor, tem piedade de mim, pecador!” Mostram as feridas, imploram o médico. Como não se louvam a si mesmos, mas se acusam, de sorte que aquele que se gloria, não se glorie em si, mas no Senhor (1Cor 1,31), entendem o motivo da vinda de Cristo, porque ele veio salvar os pecadores: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro” (1Tm 1,15). Por isto, declara o Apóstolo aos judeus, que se gloriavam de suas obras, que eles não pertenciam ao regime da graça, pois pensavam que o prêmio era de seus méritos e de suas obras (Gl 5,4). Quem, portanto, reconhece depender do regime da graça, que é Cristo e que é de Cristo, sabe que necessita da graça. Se tem o nome de graça é porque é dada gratuitamente; se é concedida gratuitamente, não houve méritos precedentes. Pois, se teus méritos precederam, a recompensa não é imputada segundo a graça, mas é devida (cf Rm 4,4). Se, pois, afirmas que teus méritos precederam, queres que tu sejas louvado e não Deus. Por conseguinte, não reconheces a Cristo, que veio trazendo a graça de Deus. Volta-te então para teus méritos e vê que foram maus, de sorte que não merecias prêmio mas suplício. E ao verificares que não tinhas mérito, reconheces o que a graça te dá. E louvas a Deus, com um sacrifício de louvor. Este é o caminho, no qual hás de conhecer a Cristo, salvação de Deus.

1 Cf Cesario de Arles. S. 133, cc. 103, p. 545ss.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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