SERMÃO I
1 Todas as palavras divinas são salutares para os que as entendem corretamente, mas perigosas para os que tentam torcê-las segundo a perversidade de seu coração, ao invés de corrigir o próprio coração de acordo com a retidão dessas palavras. Tal perversidade é grande e muito comum entre os homens. Deviam eles viver segundo a vontade de Deus, mas ao contrário querem que Deus viva segundo sua vontade. E como não querem se corrigir, pensam que podem depravá-lo, julgando que não é reto o que ele quer, e sim o que eles desejam. Costumamos ouvir os homens a murmurar contra Deus, porque os maus estão bem nesta vida e os bons vivem a pelejar. Parece-lhes que Deus não está certo e não sabe o que faz, ou então absolutamente desvia os olhos das coisas humanas. Ou então não quer perturbar sua tranquilidade, de forma que Deus não dá atenção a estas coisas, para não ter o trabalho de vê-las e corrigi-las. Murmuram, portanto, os homens. Não querem adorar a Deus para que tudo lhes corra bem, porque verificam que aqueles que não cultuam a Deus vão para a frente e gozam de felicidade terrena, enquanto eles, que adoram a Deus passam por angústias, necessidades, tribulações e outras dificuldades inerentes à mortalidade humana. Contra estas palavras e estas blasfêmias dos que murmuram, a palavra de Deus sempre age como encantador que cura da mordida da serpente. Este ferimento provém de um coração envenenado, de onde sai contra Deus o pus da blasfêmia, e o que é pior, o ferido repele a mão do médico, mas não se protege da mordida da serpente. Quero dizer, repele do coração a austeridade da palavra divina e admite os atrativos da serpente a sugerir o mal. Contra estes canta a palavra de Deus; e até se dirige a nós neste salmo. Desejaria tornar atenta V. Santidade a este salmo, se ele mesmo não nos tornasse a todos bem atentos; mas não só a nós, e sim a toda a terra. Ouvi, portanto, como começa.
2 2“Escutai isto, povos todos”. Por conseguinte, não apenas vós que estais presentes. Pois, que força é esta que teria nossa voz para clamarmos de sorte que ouçam todos os povos? Nosso Senhor Jesus Cristo clamou através dos apóstolos, e isto em tantas línguas quantas foram as dos enviados; e vejamos relativamente a este salmo, que anteriormente era recitado só por um povo, na sinagoga dos judeus, e agora é recitado em todo o orbe, em todas as igrejas, como se cumpre o que diz este versículo: “Escutai isto, povos todos”. Apenas para este ponto chama a vossa atenção, a fim de que não a desvieis por medo do cansaço e assustados com o tamanho do salmo. Se for possível, terminaremos hoje; se não, fica o restante para amanhã; no entanto, prestai sempre atenção. Ouvireis, se Deus quiser, numa medida que não vos pese; ao invés, vos alivie. “Escutai isto, povos todos”. Sois um deles. “Prestai ouvidos, habitantes todos do orbe”. Parece que quis repetir, como se fosse pouco dizer: “Ouvi”. Insiste o salmista: “Ouvi, prestai ouvidos”, a saber, não deveis escutar só de passagem o que estou dizendo. Qual o sentido de: “Prestai ouvidos”? É o mesmo das palavras do Senhor: “Quem tem ouvidos, ouça!” (Mt 11,15). Visto que todos os seus ouvintes tinham ouvidos, quais os ouvidos que procurava senão os do coração, ao declarar: “Quem tem ouvidos, ouça”? São estes os ouvidos que o salmo atinge. “Prestai ouvidos, habitantes todos do orbe”. Talvez haja aqui alguma distinção a fazer. Nós, contudo, não devemos insistir demais; mas não há mal em explicar também esta opinião. É possível que haja alguma diferença entre: “todos os povos e habitantes todos do orbe”. Talvez tenha mais sentido a expressão: “habitantes”. Entenderíamos, então, por povos, todos os iníquos, enquanto habitantes representariam todos os justos. É habitante aquele que não está preso; pois quem está preso é habitado, não habita. De igual modo, possui quem tem alguma coisa, quem é senhor de seus bens; é senhor porque não está enredado na cupidez; mas, quem está cativo da cupidez torna-se posse dela, não possuidor. Temos na Escritura divina uma palavra referente à habitação: “Prefiro estar no limiar da casa do Senhor a habitar nas tendas dos pecadores” (Sl 83,11). Mas, se ficas no limiar da casa do Senhor, não habitas nela? O salmista atribui a habitação apenas aos que a dirigem, retém, dominam, governam; os que nela são menosprezados, de certa maneira não a habitam, mas são sujeitos. Por isso disse: Quero ser súdito na casa de Deus; prefiro-o a reinar nas tendas dos pecados. Por conseguinte se existe distinção entre “povos todos e habitantes todos do orbe”, do mesmo modo como há entre “escutai e prestai ouvidos”, parece, no entanto, repetição; todavia o salmista quis tratar de coisa diferente, porque estas palavras seriam ouvidas não só por pecadores e ímpios, mas também por justos. Agora ouvem todos sem distinção; mas ao chegar a prestação de contas, serão separados os que ouviram sem resultado dos que ouviram atentamente. Ouçam, portanto, igualmente os pecadores: “Escutai isto, povos todos”. E escutem os justos, que ouvem com atenção, e governam a terra mais do que são dominados por ela: “Prestai ouvidos, habitantes todos do orbe”.
3 3Prossegue: “Filhos do povo e filhos dos homens. Filhos do povo”, os pecadores. “Filhos dos homens”, os fiéis e justos. Cuidai, pois, de guardar esta distinção. Quem são os filhos do povo? Os filhos da terra. Quais os filhos da terra? Os que procuram obter heranças terrenas. Quais os filhos dos homens? Os pertencentes ao filho do homem. De outra vez, já fizemos esta distinção diante de vós1 , e vimos que Adão era homem, mas não filho do homem. Cristo, porém, era filho do homem, e era Deus. Os que pertencem a Adão, são “filhos da terra”; os que pertencem a Cristo, “filhos do homem”. Entretanto, ouçam todos. Minha palavra não se furta a nenhum deles. Se é filho da terra, ouça por causa do juízo; se é filho do homem, ouça por causa do reino. “Todos igualmente ricos e pobres”. Novas repetições. “Ricos”, referem-se a filhos do povo; “pobres”, a filhos dos homens. Entende por ricos os soberbos e por pobres os humildes. Tenha alguém muitas riquezas em dinheiro; se não se orgulha por causa disso é pobre. Não tenha outro coisa alguma, mas ambiciona e se orgulha, Deus o coloca entre os ricos e os réprobos. Deus interroga o coração de ricos e dos pobres, e não seu tesouro e sua casa. Não seriam pobres os que aceitam bem o preceito do Apóstolo a Timóteo: “Aos ricos deste mundo, exorta-os a que não sejam orgulhosos”? Como transformou em pobres os que eram ricos? Tirou-lhes o motivo por que as riquezas são ambicionadas. Ninguém procura ser rico, a não ser que se orgulhe no meio em que vive, e queira parecer superior aos outros. Ao dizer o Apóstolo: “não sejam orgulhosos”, igualou-os aos que não possuem bens. Pode acontecer que um mendigo, com algumas moedinhas, mais se exalte do que o rico que atende ao preceito do Apóstolo: “Aos ricos deste mundo, exorta-os a que não sejam orgulhosos”. Como não serão orgulhosos? Se fizerem como se segue: “Nem ponha sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus vivo, que nos provê de tudo com abundância, para que nos alegremos” (1Tm 6,17). Não disse: os prôve; mas: “nos provê”. Então, o próprio Paulo não tinha riquezas? Sim; tinha. Quais? As mencionadas pela Escritura em outro lugar: “Ao fiel, um mundo todo de riquezas” (Pr 17,6, sg. LXX). Ouve também sua declaração: “Como nada tendo, embora tudo possuamos” (2Cor 6,10). Quem quiser, portanto ser rico, não adira a uma parte, e possuirá tudo. Una-se àquele que tudo criou. “Todos igualmente, ricos, e pobres”. Afirma outro salmo: “Os pobres hão de comer e saciar-se”. Como recomendou os pobres? “Os pobres hão de comer e saciar-se”. O que hão de comer? Aquilo que os fiéis conhecem. Como serão saciados? Imitando a paixão de seu Senhor, e não recebendo em vão o preço pago por eles. “Os pobres hão de comer e saciar-se. Louvarão o Senhor aqueles que o procuram” (Sl 21,27- 30). E os ricos? Também eles comem. Mas como? “Comeram e adoraram todos os poderosos da terra”. O salmista não disse: Comeram e ficaram saciados, mas: “Comeram e adoraram” (Sl 21,30). Efetivamente, adoram a Deus, mas não querem mostrar-se fraternos. Comem, adoram eles; os outros comem, e se saciam; todos comem. Exige-se daquele que come aquilo que ele come. Não se proíbe que coma o dispensador, mas se exorta que ele tema o cobrador. Ouçam, portanto, os pecadores e os justos, os povos e os habitantes da terra, “filhos do povo e filhos dos homens. Todos igualmente, ricos e pobres”, não, porém, divididos, não separados. Assim sucederá no tempo da messe, a mão do que ventila pode fazê-lo. Agora todos igualmente ouçam, ricos e pobres; simultaneamente se apascentem bodes e carneiros, até que venha o Senhor e separe, uns à direita e outros à esquerda. Juntamente ouçam o mestre, para não ouvirem separados uns dos outros o juiz.
4 4O que hão de ouvir agora? “Meus lábios hão de proferir palavras de sabedoria e as cogitações de meu coração ditam-me a prudência”. Parece que usou de repetição a fim de que tendo dito “meus lábios”, compreendesses que te fala quem não tem só nos lábios a sabedoria. Muitos a possuem nos lábios e não a têm no coração. Deles assevera a Escritura: “Este povo me glorifica com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13). O que quer aquele que te fala? Tendo declarado: “Meus lábios hão de proferir palavras de sabedoria”, a fim de saberes que emana do fundo do coração o que a boca profere, acrescenta: “E as cogitações de meu coração ditam-me a prudência”.
5 5“Inclinarei meus ouvidos a uma parábola, e explicarei, ao som do saltério, a minha proposição”. Quem é este cujas cogitações do coração lhe ditam prudência, de sorte que a possua o íntimo do homem e não esteja somente na superfície dos lábios? Pois, muitos não falam o que não ouvem? Quais são os que falam o que não ouvem? Os que não fazem o que dizem, como os fariseus que o Senhor declara sentarem-se na cátedra de Moisés. O Senhor deixa que te falem da cátedra de Moisés, os que dizem e não fazem; mas deu-te uma garantia. Não temais, disse ele, “fazei tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem mas não fazem” (Mt 23,2.3). Não ouvem o que eles mesmos dizem. Aqueles que praticam o que dizem, ouvem o que dizem, e portanto dizem de maneira útil, porque ouvem. Quem só fala e não ouve, é útil aos outros, não a si. O salmista, por conseguinte, que queria ser ouvinte e locutor, ao se dirigir a ti, antes de dizer: “Explicarei, ao som do saltério, a minha proposição”, isto é, falar por meio do corpo (pois a alma emprega o corpo como o salmista usa o saltério), disse: “Inclinarei meus ouvidos a uma parábola”. Antes de te falar, por meio do corpo, antes que soe o saltério, “inclinarei meus ouvidos a uma parábola”, isto é, ouvirei o que vou te dizer. Mas por que razão: “uma parábola”? Porque, segundo explica o Apóstolo, “agora vemos em espelho e de maneira confusa” (1Cor 13,12). “Enquanto estamos nesse corpo, estamos longe do Senhor” (2Cor 5,6). Ainda não temos a visão face a face; então não haverá mais parábolas, nem enigmas e comparações. Agora só entendemos de modo obscuro. Enigma é uma parábola obscura, de difícil interpretação. Por mais que o homem cultive sua mente e entre no seu íntimo para entender, enquanto tiver a carne corruptível, verá parcialmente. Quando vier, porém, a incorrupção, por ocasião da ressurreição dos mortos, e o Filho do homem aparecer a julgar os vivos e os mortos, então se verá o Filho do homem, que anteriormente foi julgado, a julgar, a separar os maus dos bons, pondo os maus à esquerda e os bons à direita. Vê-lo-ão os bons e os maus; mas aos maus ele dirá: “Ide para o fogo eterno”; e aos bons: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino”. Irão os maus para o fogo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna (Mt 25,33.34. 41.46); estes terão a visão face a face, da qual os maus não são dignos. Atenção ao que vou falar. Os maus e os bons viram o Filho do homem quando estava na terra para ser julgado; pois, viram-no os apóstolos que o seguiram e viram-no os judeus que o crucificaram. Assim também, quando vier para julgar, vêlo-ão bons e maus; os bons para receberem a recompensa de o haverem seguido, e os maus para serem punidos de o terem crucificado. Mas, somente serão condenados os que o crucificaram? Ouso dizer que somente eles. Então nós, replicam os pecadores de hoje, estamos garantidos. Se Deus não examina a alma, estais seguros. O que quero dizer com isto? Entenda bem, V. Caridade, para não dizer no juízo de Deus que não entendeu. Os judeus viram a Cristo e o crucificaram; tu não o vês, e resistes a sua palavra. Se resistes à sua palavra, não crucificarias o corpo que visses? O judeu o desprezou suspenso na cruz, e tu o desprezas sentado no céu. Ambos, portanto, o viram aqui na terra; ambos o verão ao voltar. Pois, o Filho do homem virá para julgar, assim como veio para ser julgado. O Pai não se encarnou, nem padeceu, por isso julga por meio do Filho do homem, conforme ele próprio disse no evangelho: “O Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento”; e prossegue pouco adiante: “E lhe deu o poder de julgar, porque é Filho do homem” (Jo 5,22.27). Enquanto Filho de Deus o Verbo está sempre junto do Pai; e como está sempre com o Pai, sempre julga com ele. Como Filho do homem, foi julgado e há de julgar. Como foi visto pelos que acreditaram e por aqueles que o crucificaram, ao ser julgado, assim há de ser visto, ao começar a função de juiz, por aqueles que haverá de condenar ou coroar. Mas, os ímpios não terão aquela visão da divindade prometida aos que o amam: “Quem tem meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai. Eu o amarei e a ele me manifestarei” (Jo 14,21). Reserva para os seus essa aparição um tanto familiar; ao invés, não se mostra aos ímpios. Que visão é esta? Que Cristo? Igual ao Pai. Como é Cristo? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). Por esta visão agora suspiramos, e gememos enquanto somos peregrinos. Nós a receberemos no fim. Hoje a temos de modo obscuro, se vemos como enigma, se inclinamos os ouvidos a uma parábola, se explicamos, ao som do saltério, a nossa proposição. Ouçamos aquilo que proferimos e façamos o que ordenamos.
6 6E o que diz o salmista? “Por que hei de temer no infortúnio? A iniquidade de meu calcanhar me rodeará”. Começa um trecho obscuro: “Por que hei de temer no infortúnio? A iniquidade de meu calcanhar me rodeará”. O temor deve ser maior se a iniquidade de seu calcanhar o cercar. Não receie o homem aquilo que é impossível evitar. Por exemplo, quem tem medo da morte, o que pode fazer para evitá-la? Responda-me de que modo escapará ao que deve a Adão quem dele nasceu. Mas pondere o seguinte: nasceu de Adão e seguiu a Cristo; terá de pagar o que deve Adão e obter o que Cristo prometeu. Quem, portanto, teme a morte, não tem como dela escapar; mas, ao contrário, quem tem medo da condenação que atingirá os ímpios: “Ide para o fogo eterno”, encontrará como dela fugir. Então, não precisa ter medo? De que deve ter receio? A iniquidade de seu calcanhar o rodeará? Porquanto, se evitar a iniquidade de seu calcanhar, se seguir os caminhos de Deus, não chegará a dias de infortúnio; dias maus, que serão os derradeios, para ele não serão de infortúnio. De fato, o último dia será mau para alguns e bom para outros. Poderá ser mau para aqueles aos quais se dirá: “Vinde, benditos de meu Pai”? Mas será mau para os que ouvirem a sentença: “Ide para o fogo eterno” (Mt 25,34.41). Se a iniquidade de seu calcanhar o cercar, deve temer um dia de infortúnio? Todos os que ainda vivem aqui tenham precaução, tirem a iniquidade de seu calcanhar, andem no bom caminho, naquele a que se referiu o Senhor: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6); e não temam no infortúnio, porquanto lhes dá segurança aquele que se tornou o caminho. “Por que hei de temer no infortúnio? A iniquidade de meu calcanhar me rodeará”. Evitem, por conseguinte, a iniquidade de seu calcanhar. Pelo calcanhar pode-se escorregar. Atenção. Como falou Deus à serpente? “Ela espiará tua cabeça e tu lhe espiarás o calcanhar” (Gn 3,15). O diabo espia teu calcanhar, e se resvalas, para te derrubar. Ele espia teu calcanhar; e tu, observa-lhe a cabeça. Qual é a sua cabeça? O início da má sugestão. Repele o começo da má sugestão, antes que surja o deleite e siga-se o consentimento. Assim, evitarás a sua cabeça, e ele não morderá o teu calcanhar. Por que disse Deus isso a Eva? Porque o homem cai por meio da carne. Eva, em nosso interior, é nossa carne. “Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo” (Ef 5,28.29), diz o Apóstolo. Por que: “a si mesmo”? Ele continua: “Pois ninguém jamais quis mal à sua própria carne”. Como o diabo suplantou aquele homem, Adão, por meio de Eva (cf Gn 3,6), assim quer nos suplantar por meio da carne. Foi ordenado a Eva que observe a cabeça do diabo, porque o diabo espia-lhe o calcanhar. Se, pois, a iniquidade de nosso calcanhar nos rodear, por que haveremos de temer no infortúnio, uma vez que voltados para Cristo temos o poder de evitar o mal? E não haverá o que nos cerque; alegrar-nos-emos no último dia. Não choraremos. 1 Cf Comentário ao Sl 8, n. 10.
7 7Quais são aqueles cujo calcanhar os cerca? “Aqueles que confiam em sua força e se gloriam da abundância de suas riquezas”. Uma vez que evito isto, a iniquidade de meu calcanhar não me rodeará. Como posso evitá-lo? Não confiemos em nossa força, não nos gloriemos da abundância de nossas riquezas; mas gloriemo-nos naquele que nos prometeu a elevação que cabe aos humildes e ameaçou os orgulhosos de condenação. Desta forma, a iniquidade de nosso calcanhar não nos cercará. “Aqueles que confiam em sua força e se gloriam da abundância de suas riquezas”.
8 8Existem alguns que presumem de seus amigos; outros de seu poder, e outros ainda das riquezas. Tal é a presunção do gênero humano, que não põe sua confiança em Deus. Falavase de poder, riquezas, amigos: “O irmão não resgata, quem resgatará?” Esperas que alguém te livre da ira que há de vir? Se o irmão não te resgata, quem resgatará? Quem é este irmão que, se não resgatar, ninguém resgatará? Aquele que disse, depois da ressurreição: “Ide anunciar a meus irmãos” (Mt 28,10). Ele quis ser nosso irmão; e quando rezamos: Pai nosso, isso se manifesta. Quem diz a Deus: Pai nosso, denomina a Cristo Irmão. Por conseguinte, quem possui a Deus por pai e a Cristo por irmão, não deve recear no infortúnio. Não o cercará a iniquidade de seu calcanhar, visto que não presume de sua força, nem se gloria da abundância de suas riquezas, nem se gaba de seus poderosos amigos. Deposite confiança naquele que morreu por causa dele, a fim de que não morresse eternamente. Por ele humilhou-se, para exaltá-lo. Procurou o ímpio, a fim de que, depois de se tornar fiel, o procurasse. Se ele, portanto, não resgata, quem resgatará? Alguém pode resgatar, se o Filho do homem não resgata? Se Cristo não redime, Adão há de redimir? “O irmão não resgata, quem resgatará?”
9 8.9“Não dará a Deus expiação, nem o valor de seu resgate”. Confiou em sua força, e na abundância de suas riqueza se gloria quem “não dá a Deus expiação”, a saber, não o aplaca por causa de seus pecados; “nem paga o valor de seu resgate”, pois presume de sua força, de seus amigos, de suas riquezas. Quais são os que dão o valor de seu resgate? Aqueles aos quais o Senhor disse: “Fazei amigos com o dinheiro da iniquidade, a fim de que eles vos recebam nos tabernáculos eternos” (Lc 16,9). Pagam o preço de seu resgate os que não cessam de dar esmolas. Principalmente aqueles que foram admoestados pelo Apóstolo, através de Timóteo, a que não fossem soberbos, nem confiassem na abundância de suas riquezas; enfim, o Apóstolo não quis que estas se estragassem no poder deles, mas que eles as empregassem em algo que lhes servisse de valor de resgate por suas almas. Assim se exprime: “Aos ricos deste mundo, exorta-os a que não sejam orgulhosos, nem deponham sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus vivo que nos provê de tudo com abundância, para que nos alegremos”. Supõe-se a pergunta: Que faremos, então, de nossas riquezas? E o Apóstolo responde: “Enriqueçam-se com boas obras, sejam pródigos, capazes de partilhar”, e não perderão seus bens. Como podemos sabê-lo? Ouve a continuação: “Estarão assim acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro, a fim de obterem a verdeira vida” (1Tm 6,17-19). É desta maneira que pagarão o resgate de sua alma. E nosso Senhor assim admoesta: “Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro inesgotável nos céus, onde o ladrão não chega nem a traça rói” (Lc 12,33). Deus não quer que percas tuas riquezas, mas deu-te o conselho de as guardares em outro lugar. Compreendei bem. Se neste momento um amigo entrasse em tua casa, e te encontrasse colocando o trigo num lugar úmido (e ele fosse bom conhecedor da natureza corruptível do trigo, e tu não) dar-te-ia o seguinte conselho: Irmão, estragas o que colheste com tanto trabalho; tu o depositaste num lugar úmido e em poucos dias apodrecerá. Então, o que devo fazer, irmão? Coloca-o num lugar mais alto. Ouvirias a sugestão do amigo de carregares o trigo de baixo para cima, e não ouves a admoestação de Cristo de que carregues teu tesouro da terra ao céu, onde não te será devolvido o mesmo que guardas, mas pões em reserva terra e receberás o céu, guardas bens perecíveis e receberás eternos! Empresta a Cristo; ele aceita pouco na terra para te devolver muito no céu. Na verdade, porém, aqueles que estão cercados da iniquidade de seu calcanhar, como confiam em suas forças e gloriam-se da abundância de suas riquezas, presumindo também de amigos entre os homens, que nada podem prestar, não darão “a Deus expiação, nem o valor de seu resgate”.
10 9.10E o que diz o salmista de tal homem? “Labutará eternamente e viverá até o fim”. Sua labuta será sem fim, mas a vida terminará. Por que diz o salmo: “viverá até o fim”? A vida para eles está nos deleites cotidianos. Até mesmo nossos pobres e indigentes, pouco firmes, sem olhar para as promessas de Deus relativas a nossos trabalhos, se virem os ricos em seus banquetes diários, cercados do brilho do ouro e da prata, como se exprimem? Somente eles é que vivem, de fato. Diz-se assim, mas que não se diga mais, conforme exortamos. E se houver de se dizer, sejam bem menos os que o dizem do que se nós não falássemos. Pois, de fato, não presumimos que se deixará de falar assim, devido a nosso aviso, mas ao menos que diminua o número deles; porque efetivamente assim se falará até o fim dos séculos. Ainda é pouco quando se diz que só esses ricos vivem; acrescenta-se: ele grita. Julgas que só ele vive. Que viva. Sua vida terminará. Uma vez que não paga o valor de seu resgate, a vida acabará, mas a pena não. “Labutará eternamente e viverá até o fim”. De que modo “viverá até o fim”? Como vivia aquele rico que se vestia de linho fino e púrpura, e se banqueteava diariamente com requinte; e desprezava, soberbo, orgulhoso, o pobre que jazia à sua porta, coberto de úlceras. Até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do rico. Mas, que adiantaram as riquezas ao rico? Mudou-se a sorte de ambos. O pobre, da porta do rico, foi levado ao seio de Abraão; o rico, dos banquetes esplêndidos foi lançado ao fogo. O primeiro descansava, e o segundo ardia nas chamas; aquele era saciado, e este estava sedento; o pobre sofrera até o fim e vivia eternamente; o rico vivera até o fim e era eternamente castigado. Que serviu ao rico, no inferno, em meio aos tormentos, pedir que Lázaro molhasse a ponta do dedo para refrescar-lhe a língua, dizendo: “Pois estou torturado nesta chama” (Lc 16,19-26), e não obteve? Ele o desejou uma gota d’água na ponta do dedo, como o pobre desejava as migalhas da mesa do rico; mas o sofrimento do pobre terminou, como terminou a vida do rico; o sofrimento deste é eterno como eterna a vida do pobre. Nós que talvez padecemos na terra, não temos aqui a nossa vida, e não estaremos assim depois. Nossa vida será Cristo, eternamente. Os outros, porém, que optam por ter aqui a sua vida, sofrerão eternamente e viverão até o fim.
11 11“Não verá a morte, embora veja morrerem os próprios sábios”. Aquele que sofrerá eternamente e viverá sem fim, “não verá a morte, embora veja morrerem os próprios sábios”. O que significa isto? Não entenderá o que é a morte, embora veja morrerem os próprios sábios. Diz a si mesmo: Aquele homem que era sábio, versado na sabedoria, piedoso no culto a Deus, não morreu? Procurarei, portanto, o bem-estar, enquanto vivo; pois se adiantasse pensar de outro modo eles não morreriam. Constata a morte deles, mas não sabe qual é. “Não verá a morte, embora veja morrerem os próprios sábios”. Igualmente os judeus viram o Cristo crucificado, e desprezaram-no, dizendo: Se ele fosse Filho de Deus, descesse da cruz (cf Mt 27,42), não sabendo o que é a morte. Se soubessem o que é a morte, se soubessem! Cristo morria no tempo, para reviver eternamente, enquanto eles viviam por algum tempo, para morrerem eternamente. Mas como viam-no morrer, não viam a morte, isto é, não entendiam qual a verdadeira morte. O que dizem os insensatos como consta no livro da Sabedoria? “Condenemo-lo a uma morte vergonhosa, pois diz que há quem atenda a suas palavras. Se é verdadeiramente filho de Deus, ele o libertará das mãos de seus adversários” (Sb 2,20.18). Se é, de fato, seu Filho, não permitirá que morra. Mas, ao vê-lo na cruz, e que, apesar de insultarem-no, ele não desceu dela, disseram: Em verdade, era um homem. Assim foi dito. De fato, ele podia descer da cruz, uma vez que pôde ressuscitar do sepulcro; mas ensinou-nos a suportar os que nos injuriam, ter paciência diante das más línguas dos homens, beber agora o cálice da amargura, e depois receber a salvação eterna. Bebe, ó doente, o cálice amargo, para te curares, pois tuas vísceras não estão sadias. Não hesites, porque o médico bebeu primeiro a fim de não duvidares; isto é, o Senhor tomou primeiro a amargura da paixão. Bebeu aquele que não tinha pecado, que não precisava de tratamento. Bebe até que passe a amargura deste século, e venha o século futuro onde não haverá escândalo, ira, moléstia, amargura, febre, dolo, inimizade, velhice, morte, dissensão. Trabalha aqui na terra, e chegarás ao termo; trabalha, a fim de não acontecer que não querendo aqui labutar, chegues ao fim da vida e jamais alcances o fim dos trabalhos. “Não verá a morte, embora veja morrerem os próprios sábios”.
12 “O imprudente e o néscio simultaneamente perecerão”. Quem é “imprudente”? Quem não prevê o futuro. Quem é “néscio”? Quem não entende os males de que sofre. Tu, porém, reconhece os males entre os quais vives agora e prevê os bens futuros. Compreendendo os males presentes, não serás néscio e prevendo o futuro não serás imprudente. Quem foi previdente para seu próprio bem? Aquele servo, ao qual seu senhor confiara a administração de seus bens, e depois lhe disse: “Presta contas de tua administração, pois já não podes ser administrador”. E ele refletiu: “Que farei? Cavar? Não posso. Mendigar? Tenho vergonha”. Então, com os bens de seu Senhor adquiriu amigos, que o recebessem quando ele fosse, de fato, afastado. Defraudou seu senhor, para adquirir amigos que o recebessem; tu, porém, não tenhas medo de agir fraudulentamente; o próprio Senhor te exorta a agir, quando diz: “Fazei amigos com o dinheiro da iniquidade” (Lc 16,1-9). Talvez o que adquiriste, tu o obtiveste por meio da iniquidade; pode ser também que a iniquidade consista em que possuas e outro não, tenhas em abundância, enquanto outro passa necessidade. Deste dinheiro da iniquidade, destas riquezas, que são as únicas que os iníquos assim denominam, faze amigos e serás prudente; tu os adquires, sem sofreres alguma fraude. Agora, contudo, pareces perder. Por acaso é perdido o que guardas no tesouro? Os meninos, irmãos, quando querem comprar não sei bem o quê, ajuntam as moedas e as jogam no cofre, para abrir somente depois. Se não veem o que ajuntam, eles o perderam? Não tenhas medo. Os meninos guardam no cofre e ficam tranquilos; tu pões nas mãos de Cristo, e tens receio! Sê prudente, e guarda para o futuro, no céu. Por conseguinte, sê prudente, imita a formiga, como diz a Escritura; armazena no verão, para não passares fome no inverno (cf Pr 6,6; 30,25). Inverno é o último dia, o dia da tribulação. Inverno é o dia dos escândalos e da amargura. Guarda para teres no futuro; se não o fizeres, sendo a um só tempo imprudente e néscio, perecerás.
13 Mas, aquele rico morreu, e teve um grandioso funeral! Aí está o que preocupa os homens; não olham que vida péssima teve, e sim que pompa no enterro. Ó como é feliz quem é tão chorado! Outro viveu de tal maneira que poucos o lastimam. Mas, todos deviam lastimar quem viveu tão mal. No entanto, seu funeral é cercado de pompa, é enterrado num túmulo precioso, envolvido em vestes valiosas, sepultado com unguentos e aromas. Em seguida, que monumento! Todo de mármore! Talvez ele está vivo no monumento? Ali está morto. Os homens, considerando bens tais coisas, afastaram-se de Deus, não procuraram a verdade, e enganaram-se com falsidades; entretanto, vê a continuação do salmo. Quem não deu o valor de seu resgate, não entendeu o que é a morte e viu os sábios morrerem, tornou-se imprudente e néscio, para de modo igual morrer. E como hão de perecer os que “deixam suas riquezas aos estranhos? Simultaneamente perecerão o imprudente e o néscio”.
14 Atenção, irmãos. “E deixarão suas riquezas aos estranhos”. Constitui uma espécie de maldição possuírem os estranhos os seus bens, depois que eles morreram. Por conseguinte, felizes os que deixam os filhos de posse delas, como seus sucessores. Se teve filhos, não morreu. E como agem os filhos? Guardam a herança de seus pais. E não basta. Eles a aumentam. Mas, para quem a conservam? Para seus filhos, e estes para os netos, que a conservam para os bisnetos. O que dão ao Cristo? O que reservam para sua alma? Tudo para os filhos. Entre os filhos que têm na terra, incluam um irmão que possuem no céu, ao qual tudo deveriam dar, ou com ele dividir. Ao invés, pode dizer-me alguém: Eis que a Escritura chama de malditos os que morrem e deixam sua riquezas a estranhos, e felizes os que as legam aos seus. Discuto esta opinião, porque inclino meus ouvidos a uma parábola, e vejo que a Escritura não se exprime assim inutilmente. Constato que muitos iníquos morrem e deixam os filhos por sucessores. A Escritura não falaria assim, isentando da infelicidade aqueles cuja vida reprova. Sei, irmãos; o que podeis pensar? Todos eles deixam suas riquezas a estranhos? Como os filhos seriam estranhos? Os filhos dos maus são estranhos para eles. Podemos descobrir um ou outro estranho que se torne da família, porque lhe é útil. Se algum dos teus em nada te ajuda, é um estranho. Onde encontramos certo estrangeiro que se tornou próximo de outro, porque o acudiu? No evangelho. Jazia alguém, ferido por ladrões. O Senhor havia dito a um mestre da lei: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Ele, porém, respondera: E quem é o meu próximo? E o Senhor narrou o seguinte: “Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu no meio de assaltantes que, após havê-lo espancado, foram-se, deixando-o semimorto”. Passaram por ali conterrâneos seus. Ele era judeu, e descia de Jerusalém a Jericó. “Descia um sacerdote, e passou adiante; um levita atravessou o lugar e prosseguiu, igualmente; certo samaritano, porém”, samaritano desconhecido, estrangeiro, “chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão. Cuidou de suas chagas, colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria, e recomendou-o ao hospedeiro”. Parece-me que tudo isto, que foi dito como um mistério, é longo demais para ser explicado agora; no entanto, está de acordo com o nosso assunto a pergunta do Senhor: “Qual dos três foi o próximo do homem ferido? Ele respondeu: Creio que aquele que usou de misericórdia para com ele. Jesus então lhe disse: Vai, e também faze tu o mesmo” (Lc 10,27-37). Aquele de quem te compadeces, torna-se teu próximo. Se, portanto, o samaritano estrangeiro, praticando a misericórdia e socorrendo o ferido, foi seu próximo, aqueles que não podem te acudir na tribulação tornaram-se estranhos para ti. Agora, voltemos a atenção para os ricos que viveram mal, que agiram com orgulho; morreram e deixaram aos filhos, já não digo aos estranhos, as suas riquezas, e seus filhos seguem as pegadas dos pais. Pais soberbos e filhos soberbos; ladrões os primeiros, e também os segundos; avaros os pais, e igualmente os filhos, que se tornaram estranhos para eles. E para verificares que são estranhos, por acaso àquele rico que ardia nas chamas socorreram os sucessores de suas riquezas? Observamos no envagelho, que ele os tinha, porque declara: “Tenho cinco irmãos” (Lc 16,28). Os irmãos não puderam socorrê-lo quando ardia nas chamas. O que te diria o rico? Tenho cinco irmãos; de um único irmão não fiz meu amigo, aquele que jazia diante de minha porta. Os outros, que estão de posse de minhas riquezas não podem me socorrer; tornaram-se-me estranhos. Vedes aí que todos os que levam vida má, deixam a estranhos as suas riquezas.
15 12Mas, certamente, os ajudam esses estranhos, que são chamados seus? Ouvi de que adiantam eles, observai como zombam deles: “O imprudente e o néscio simultaneamente perecerão, e deixarão suas riquezas aos estranhos”. Por que razão “estranhos”? Porque em nada lhes são de proveito. Entretanto, em alguma coisa parecem ser úteis: “E os seus sepulcros serão as suas casas eternamente”. Visto que se constroem os sepulcros, são uma espécie de casas. Pois, não raro ouvis um rico dizer: Tenho uma casa de mármore que deixarei, e não penso na casa eterna onde ficarei para sempre. Quando decide fazer um mausoléu de mármore ou esculpido, parece-lhes fazer uma casa eterna, como se aquele rico do evangelho permanecesse em seu sepulcro. Se nele ficasse, não arderia no inferno. Importa cogitar aonde irá a alma de quem age mal, e não cuidar onde depositar o corpo mortal. “Os seus sepulcros serão as suas casas para sempre. Suas tendas, de geração em geração”. “Tendas”, que habitaram transitoriamente; “casas”, onde permanecerão quase para sempre, isto é, os sepulcros. Deixam, portanto, suas tendas, onde ficavam enquanto viviam, e transferem-se para os sepulcros, como se fossem casas eternas. O que lhes aproveitam “suas tendas, de geração em geração”? Geração e geração, ou seja, filhos, netos e bisnetos. Para que servem, que aproveitam suas tendas? O quê? Escuta: “E invocarão o nome deles em suas terras”. Levarão pão e vinho aos sepulcros, e ali invocarão o nome dos mortos. Imagina quanto foi invocado depois da morte o nome daquele rico, quando os homens se embriagavam em memória dele, enquanto nem uma gota chegava à sua língua a arder de sede! Os homens cuidam de seu estômago, não das almas dos seus. Às almas dos mortos chega apenas o que eles obtiveram em vida; se em vida nada obtiveram, nada chega até eles, depois de mortos. Então, o que fazem os outros? Somente “invocarão o nome deles em suas terras”.
16 13“Mas o homem, entre honrarias, não entendeu. Foi comparado aos jumentos irracionais e se lhes fez semelhante”. Assim são insultados os homens, que não entenderam como agir relativamente a suas riquezas durante a vida, e tinham a opinião de que seriam felizes se tivessem um mausoléu de mármore, qual habitação eterna, e se os seus, aos quais deixariam suas posses, invocassem seus nomes em suas terras. Deviam, ao contrário, preparar para si uma casa eterna, por meio de boas obras, obter a vida imortal, depositar de antemão o seu custo e acompanhá-lo com as obras, prestar atenção ao companheiro de viagem necessitado, dar àquele com o qual caminhava, não desprezar o Cristo coberto de úlceras à sua porta, e que disse: “Cada vez que o fizestes a um desses mais pequeninos, que são meus, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Por conseguinte, o homem entre honrarias não entendeu. O que significa: entre honrarias? Feito à imagem e semelhança de Deus, (cf Gn 1,26), o homem está acima dos animais. Deus não fez o homem do mesmo modo como criou os animais, mas fez os animais para servirem o homem. Mas, para servirem às suas forças e não a sua inteligência? O homem, porém, “não entendeu”, e feito à imagem de Deus, “foi comparado aos jumentos irracionais e se lhes fez semelhante”. Por este motivo, se disse em outra parte: “Não sejais como o cavalo e o mulo, sem inteligência” (Sl 31,9).
17 14“Seu caminho lhes serve de tropeço”. A eles, não a ti. Quando será também a ti? Se pensares que eles são felizes. Se compreendes que não são felizes, a eles seu caminho serve de tropeço; não a Cristo, não a seu corpo, não a seus membros. “Depois, louvarão com sua boca”. O que significa: “Depois, louvarão com sua boca”? Quando se tornarem tais que só procuram bens temporais, fazem-se hipócritas; e se bendizem a Deus, fazem-no com os lábios, não com o coração. Esses, ao se tornarem cristãos, quando se louva diante deles a vida eterna, e se declara que devem desprezar as riquezas, em nome de Cristo, torcem os lábios interiormente. Se não ousam desprezar exteriormente, para não se envergonharem ou serem corrigidos pelos outros, fazem-no no coração; têm, então a bênção nos lábios, e a maldição no coração. “Depois, louvarão com sua boca”. Seria muito longo ainda se quiséssemos terminar o salmo. Baste para hoje o que ouvistes; amanhã ouvireis quanto Deus quiser.
SERMÃO II
1 14Ontem devíamos terminar o salmo que começamos a comentar, conforme se lembra V. Caridade. Havíamos chegado ao versículo onde o Espírito de Deus assinala homens que só cuidam das coisas seculares e terrenas, e de nada da vida futura, nem consideram haver outra felicidade senão as riquezas e honras deste mundo, e o poder transitório. Quanto ao que vem depois da morte, só atendem a garantir para si um funeral cheio de pompa, a serem sepultados em mausoléus construídos de maneira admirável, a serem invocados seus nomes em suas terras. Não procuram obter habitação para a alma após esta vida. São estultos, que não tremem diante da palavra de Cristo: “Insensato, nesta mesma noite ser-te-á reclamada a alma. E as coisas que acumulaste, de quem serão?” (Lc 12,20). Nem consideram que depois dos lautos banquetes cotidianos, da púrpura e do linho fino, o rico é condenado aos tormentos no inferno, enquanto o pobre, após os trabalhos, as úlceras e a fome, repousa no seio de Abraão (cf Lc 16,19). Disso não cuidam, mas atendem ao presente, descuidados do que vem depois da morte, a não ser de que seus nomes reprovados no céu, sejam lembrados na terra. O Espírito Santo os descreve da seguinte maneira: “Seu caminho lhes serve de tropeço. Depois, louvarão com sua boca”. Está de acordo com o que nosso Senhor Jesus Cristo declara de alguns, que primeiro têm acesso à fé, são purificados pela palavra de Deus e pelos exorcismos em nome de Cristo para receberem a graça de Deus e serem batizados, e depois retornam a males piores do que aqueles pecados que antes cometiam. Diz o Apóstolo Pedro: “O seu último estado se torna pior do que o primeiro” (2Pd 2,20). E o Senhor: “A condição final daquele homem torna-se pior do que antes” (Lc 11,26). Qual a razão disso? Porque antes, ao menos era abertamente pagão; agora, disfarça-se sob o nome de cristão, e é um malvado oculto debaixo do véu da religião. Será pior, porque oculto, segundo a palavra do salmo: “Depois, louvarão com sua boca”, isto é, ouvem-se o nome de Deus e o nome de Cristo em seus lábios, mas não se encontram em seus corações. Aplica-se a eles a expressão: “Este povo me glorifica com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13). Até aqui expliquei o salmo.
2 15Em seguida, assim começam os versículos que hoje devemos discutir e tratar: “São lançados no inferno, como ovelhas. A morte é seu pastor”. De quem? Daqueles cujo caminho lhes serve de tropeço. De quem? Dos que só dão atenção aos bens presentes, sem pensar nos futuros; dos que não consideram vida senão a que devia ser denominada morte. Não é, portanto, sem razão que, estando no inferno quais ovelhas, tenham a morte por pastor. Qual o sentido da frase: Têm a morte por pastor? A morte é efetivamente alguma coisa, um poder? De fato, a morte é separação entre alma e corpo; a que é temida pelos homens é a separação entre alma e corpo. Mas, a morte verdadeira, que os homens não receiam, é a da alma separada de Deus. Muitas vezes, os homens têm medo da morte que separa a alma do corpo, e por causa disso incorrem naquela que separa a alma de Deus. Isto é que é morte. Como, então, “a morte é seu pastor”? Se Cristo é a vida, o diabo é a morte. Temos em muitos lugares da Escritura a afirmação de que Cristo é a vida. A morte, porém, é o diabo; não que ele próprio seja a morte, mas porque a morte vem por meio dele. Quer se trate da morte em que incorreu Adão, pois foi pela persuasão do diabo que o homem a sorveu, quer seja a da separação entre alma e corpo, é seu autor aquele que primeiro caiu pela soberba e invejou o homem que estava de pé. Derrubou-o pela morte invisível de tal modo que também ficasse sujeito à morte visível. Têm a morte por pastor os que dele dependem; nós, porém, que consideramos a futura imortalidade, e com razão trazemos na fronte o sinal da cruz de Cristo, temos por pastor somente a vida. A morte é pastor dos infiéis, a vida pastoreia os fiéis. Se, portanto, acham-se no inferno as ovelhas que têm a morte por pastor, no céu estão aquelas cujo pastor é a vida. O que dizer, então? Já estamos no céu? No céu, segundo a fé. Se ainda não estamos no céu, para onde vamos quando ouvimos: Corações ao alto? Se não estamos no céu, onde, então, quando o Apóstolo declara: “Mas a nossa cidade está nos céus” (Fl 3,20)? Segundo o corpo, andamos na terra, mas de coração habitamos no céu. Lá está nossa habitação, se para lá enviamos algo que ali nos prenda. Pois, ninguém habita de coração senão no lugar em que pensa; onde está seu pensamento, está seu tesouro. Se entesoura na terra, o coração não se aparta da terra; se entesoura no céu, seu coração não desce do céu. O Senhor o afirma claramente: “Onde está o teu tesouro aí estará também teu coração” (Mt 6,21).
3 Aparentemente estão em franco progresso durante algum tempo aqueles cujo pastor é a morte, enquanto os justos estão em trabalhos. Por que isso? Porque ainda é noite. O que significa: é noite? Não aparecem os méritos dos justos, e a felicidade dos ímpios é afamada. No inverno a erva parece mais verde do que a árvore. A erva no inverno está verdejante, e a árvore parece seca. Ao sair o sol, com maior ardor no verão, a árvore que parecia seca no inverno, enche-se de folhas, produz frutos; ao contrário, a erva seca. Verás a árvore frondosa e a erva murcha. Assim também agora os justos pelejam, antes que venha o verão. A vida está na raiz e ainda não aparece nos ramos. Nossa raiz é a caridade. E o que diz o Apóstolo? Que tenhamos a raiz no alto, que a vida seja nosso pastor. Nossa habitação não deve estar fora do céu. Na terra vivamos como se estivéssemos mortos. Vivendo no alto, sejamos mortos aqui em baixo e não, ao invés, mortos em cima, vivos em baixo. Nossa vida e nosso coração não se afastem do alto. Como se exprime o Apóstolo? “Pois morrestes”; mas não tenhais medo: “A vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Eis onde se acha nossa raiz”. Quando a nossa honra aparecer, como se fossem folhas e frutos, conclui ele: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados em glória” (Cl 3,3.4). Será a manhã. Efetivamente, agora não é a manhã. Inchem-se agora os soberbos e ricos deste mundo, os ímpios injuriem, os bons, os infiéis aos fiéis, dizendo: Que proveito tirastes em acreditar? O que possuís a mais por possuírem a Cristo? Respondam os fiéis, se o são de fato: Agora é noite. Ainda não se vê o que possuímos. As mãos não se cansem de praticar boas obras. Por isso, diz outra passagem dos salmos: “No dia de minha tribulação procurei a Deus, com minhas mãos, de noite, diante dele, e não fiquei decepcionado” (Sl 76,3). De manhã, nosso labor aparecerá e frutificará. Os que agora trabalham, depois dominarão; ao invés, os que agora se gabam e se orgulham, depois estarão sujeitos. Pois, como continua o salmo? “São lançados no inferno como ovelhas. A morte é seu pastor. E ao amanhecer os retos dominarão”.
4 Penso que este versículo já está bem claro, porque antes o explicamos: “Ao amanhecer os retos os dominarão”. Tolera a noite. Deseja a manhã. Não penses que à noite há vida, e de manhã não. Por acaso vive quem está dormindo, e quem acorda não vive? Não é o que dorme que se assemelha mais ao morto? Quais são os que dormem? Aqueles que o apóstolo Paulo desperta, se é que querem estar despertos. Porquanto ele interpela a alguns: “Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará” (Ef 5,14). Quem é iluminado por Cristo fica vigilante, mas ainda não se manifesta o fruto de suas vigílias; ao amanhecer aparecerá, isto é, quando houverem passado as incertezas deste mundo. É noite. Não aparecem trevas? Alguém pratica o mal; vive, progride, causa terror, é honrado. Outro pratica o bem; é censurado, amaldiçoado, acusado, labuta, atemoriza-se. São trevas. Na raiz, contudo, acham-se vigor, frutos, opulência. A vida ainda não alcançou os ramos, mas a raiz não secou. Parece seca. Mas virá a época oportuna. Reveste-se de sua fronde, produz seus frutos. Como se exprime outro salmo a respeito daqueles aos quais não devemos invejar? “Bem cedo hão de secar como o feno e murchar qual erva do campo” (Sl 36,1.2). Cairão ao verem os santos à direita. Eles os insultavam. Mas falarão arrependidos, com inúteis e tardios remorsos. Recusam-se a fazer penitência proveitosa; então a farão em vão. Como se exprimirão, com seus remorsos? “São aqueles de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de ultraje”. Refiro termos do livro da Sabedoria. Conhecem-nos os que costumam ouvilos. Essas palavras serão proferidas pelos malvados quando virem o juiz e os fiéis à sua direita, e todos os santos a julgarem com ele. Deverão exprimir-se assim. A Escritura registra suas palavras: “São aqueles de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de ultraje, nós insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura” (Sb 5,3-4). Quando alguém começar a viver para Deus, a desprezar o mundo, a não vingar-se das injúrias recebidas, a não querer possuir riquezas na terra, nem procurar felicidade terrena, e desprezar tudo, a só pensar no Senhor, a não abandonar o caminho de Cristo, não são somente os pagãos que dizem: Está louco. Mais lamentável é que também dentro da Igreja muitos dormem e não querem despertar, de sorte que é dos seus, dos cristãos que aquele fiel escuta: Por que sofres? Meus irmãos quem é que pergunta ao homem que vive segundo o caminho de Cristo: Por que sofres? Quem é que pensamos que assim pergunta? Ficamos horrorizados porque os judeus disseram a nosso Senhor Jesus Cristo: “Tens um demônio” (Jo 8,48); e ao ouvirmos a leitura deste trecho do evangelho batemos no peito. Os judeus proferiram a respeito de Cristo detestável blasfêmia: “Tens um demônio”. E tu, cristão, se vires que um demônio foi expulso do coração de um homem, onde Cristo começa a habitar, e perguntas: Por que sofres? Não te parece que tem um demônio? Os judeus afirmavam que o próprio Senhor estava louco, quando proferia palavras que eles não entendiam. Disseram: “Ele tem um demônio! Está louco!” (Jo 10,20.21). Ao invés, outros despertavam do sono e afirmavam: “Não são de um possesso estas palavras”. De igual maneira, irmãos, ao ouvirem estas palavras as gentes, os habitantes da terra, os filhos do povo e os filhos dos homens, os ricos e os pobres, a saber, os que pertencem a Adão e os que pertencem a Cristo, uns declaram: “Tem um demônio”, e outros asseguram: “Não são de um possesso estas palavras”. Uns seguem os caminhos do mundo, e ouvem estas palavras por pouco tempo; outros não escutam em vão, mas atendem à palavra: “Prestai ouvidos, habitantes todos do orbe”. Enquanto assim agem, o fruto é incerto. Mas os que agem mal, e escolhem os caminhos do mundo, têm a morte por pastor; os que preferem o caminho de Deus, a vida é seu pastor. A própria Vida há de vir para julgar e condenar com seu pastor aqueles aos quais será dito: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos”. Os que foram injuriados e escarnecidos por sua fé, ouvirão da própria Vida, seu pastor: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,41.34). “Os retos”, portanto, “os dominarão”, não agora, mas “ao amanhecer”. Ninguém diga: Para que sou cristão? Não mando em ninguém. Se ao menos desse ordens aos iníquos! Não te apresses. Hás de dominar, mas ao amanhecer. “Os auxílios, de que se gloriam, no inferno perderão o viço”. Agora têm a glória; mas no inferno perderão o viço. Quais “os seus auxílios”? Auxílio proveniente do dinheiro, dos amigos, de seu poder. Mas, no dia em que morrer, perecerão todas as suas cogitações (cf Sl 145,4). Quanto maior for a glória que parecer possuir entre os homens, em vida, maior terá o envelhecimento e a corrupção inerentes aos suplícios, no inferno, quando morrer.
5 16“Entretanto Deus livrará a minha alma”. Palavra de esperança, para o futuro: “Entretanto Deus livrará a minha alma”. Pode ser também palavra de quem procura livrar-se das angústias. De um encarcerado que afirma: Deus há de livrar a minha alma; de um prisioneiro: Deus livrará a minha alma. Alguém em perigo no mar, sacudido pelas ondas e no furor da tempestade, o que diz? Deus há de livrar a minha alma. Querem salvar a vida. Diferente é o versículo do salmo. Ouve como prossegue: “Deus livrará a minha alma do poder do inferno, tomando-me consigo”: Refere-se à redenção que Cristo já demonstrou em si. Ele desceu aos infernos, e subiu ao céu. Descobrimos no corpo o que vimos na Cabeça. Testemunhas oculares nos anunciaram aquilo que acreditamos realizado na Cabeça; vimos através deles, porque somos um só corpo. (cf 1Cor 12,12; Rm 12,5). Mas, seriam melhores os que viram do que nós que recebemos a mensagem? Não é isso que assevera a própria Vida, nosso pastor. Pois, censura determinado discípulo com dúvidas, e desejoso de apalpar as suas cicatrizes; e após ter ele tocado as chagas e exclamado: “Meu Senhor e meu Deus!” o Senhor o viu, com suas dúvidas, e considerando toda a terra que haveria de crer, disse: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!” (Jo 20,28.29). “Entretanto Deus livrará a minha alma do poder do inferno, tomando-me consigo”. Aqui, na terra, com que contamos? Com trabalho, angústias, tribulação, tentação; não esperes outra coisa. Onde haverá alegria? Na esperança dos bens futuros, porquanto ordena o Apóstolo: “Sempre alegres”. Em meio a tantas tribulações, sempre alegres, sempre tristes; sempre alegres, porque ele mesmo declara: “Como tristes e, não obstante, sempre alegres”. Nossa tristeza vem acompanhada de um “quase”, como se; nossa alegria não tem um “quase”, porque na esperança ela é segura. Por que motivo nossa tristeza tem antes um “como se”? Porque há de passar como um sonho, e “ao amanhecer os retos dominarão”. Sabe V. Caridade que alguém, ao contar um sonho, acrescenta: “como que”. Como que estava sentado, como que falava, tomava uma refeição, montava o cavalo, discutia. Tudo isso: “como que”. Ao acordar, não encontra o que via. Um mendigo narra: Como que encontrei um tesouro. Não seria mais mendigo, se não fosse aquele “quase”, mas como foi “quase”, continua mendigo. De igual maneira, os que têm olhos abertos para as alegrias deste mundo e o coração fechado, passa o “como que” e vem a realidade. O “quase” é a felicidade neste século, e a realidade é o castigo. Para nós, porém, a tristeza é “como que”, mas a alegria não é “como que”. Pois, o Apóstolo não diz: como que alegres, mas sempre tristes; ou: Como tristes e como alegres; e sim: “Como tristes, e não obstante, sempre alegres; como indigentes” (e aqui disse: assim como, “sicut” em vez de quase “quasi”) “e, não obstante, enriquecendo a muitos”. Quando o Apóstolo assim se expressava, nada possuía; havia renunciado a tudo e nada tinha. E como prossegue? “Como nada tendo, embora tudo possuamos” (2Cor 6,10). Nada ter era o “quase” do Apóstolo; e o possuir não era “quase”. Como necessitado, enriquecia de fato a muitos, e não: quase. Como nada tendo; não obstante, tudo efetivamente possuía, e não quase. Por que em verdade possuía tudo? Porque se unia ao criador de tudo. “Entretanto, Deus livrará a minha alma do poder do inferno, tomando-me consigo”.
6 17O que sucede aos que querem prosperar na terra? Vês um homem malvado progredindo em tudo, e talvez teus pés vacilem, enquanto dizes a ti mesmo: Ó Deus, conheço bem as ações deste homem, os crimes que praticou, e no entanto progride, causa terror, domina, orgulha-se, não tem dor de cabeça, não sofre perdas em casa; e terás medo de ter acreditado e provavelmente sugere-te o coração: Ai de mim! Nada me adianta ter acreditado, pois Deus não cuida das coisas humanas. Deus, entretanto, nos desperta. Como? “Não temas quando um homem se enriquece”. Por que recear se um homem se enriquece? Tinhas medo de ter acreditado em vão, de perder o trabalho de tua fé e a esperança de tua conversão. Talvez te tenha apresentado oportunidade de um lucro fraudulento, e poderias, se o obtivesses com dolo, estar rico e não trabalhar; mas ponderando nas ameaças de Deus, tu evitaste a fraude e desprezaste o lucro. Vês que outro obteve lucro fraudulento, e nada sofreu; e tens medo de ser bom. “Não temas”, diz o Espírito de Deus, “quando um homem se enriquece”. Queres ter olhos só para as coisas presentes? O ressuscitado prometeu bens futuros; quanto à paz nesta terra e ao repouso nesta vida, não há promessa. Cada um procura ter repouso; é boa coisa o que deseja, mas não a procura onde se encontra. Não existe paz nesta vida. Foi-nos prometido alcançarmos no céu aquilo por que anelamos na terra. Há promessa de termos no século futuro o que queríamos ter aqui.
7 17.18“Não temas quando um homem se enriquece, e avulta o esplendor de sua casa”. Por que motivo: “Não temas? Pois ao morrer nada levará consigo”. Olhas um ser vivo; pensa que há de morrer. Presta atenção ao que tem aqui; observa o que leva consigo. Que bens leva consigo? Tem aqui muito ouro, muita prata, muitos prédios, escravos. Morre. Fica tudo isso e ele não sabe para quem. Pois, embora deixe para quem quiser, não conserva para quem quiser, porquanto muitos adquiriram aquilo que não lhes foi legado, e muitos perderam o que herdaram. Por conseguinte, fica tudo aqui, e o que leva consigo? Talvez responda alguém: Leva consigo as vestes com que está recoberto, e o que é gasto num sepulcro precioso e invertido de mármore, para manter sua memória; isto é o que leva consigo. Respondo: Nem isso. São empregados em favor de um insensível. Se colocas ornamentos em alguém que dorme, que não está desperto, ele os tem consigo no leito; talvez está bem vestido o corpo inerte, enquanto em sonhos ele se vê em farrapos. É mais importante para ele o que sente do que o que não sente. Embora não o seja quando acordar, no entanto, enquanto dormia, importava-lhe mais o que via em sonhos do que aquilo que não percebia. Então, irmãos (apesar de dizerem os homens: Façam-se despesas com a minha morte; porque hei de deixar ricos os meus herdeiros? Herdarão muito do que é meu. Receba eu também um pouco do que é meu, em meu corpo), o que receberá o cadáver? O que terá a carne em putrefação? O que receberá o corpo insensível? Se aquele rico (cf Lc 16,24), cuja língua estava ressequida, recebeu alguma coisa, então esses outros terão algo do que era seu. Irmãos, por acaso lemos no evangelho que aquele rico aparecia no meio do fogo com vestes inteiramente de seda e linho fino? Era tal no inferno qual se apresentava à mesa dos banquetes? Se tinha sede e desejava uma gota de água, não tinha ali todas essas coisas. Em consequência, o homem não leva consigo tudo, nem carrega consigo o morto aquilo que a sepultura recebe. O homem se acha onde está sua sensibilidade; se está insensível, já não é homem. Está prostrado o vaso que continha o homem, a casa que o abrigava. Digamos que o corpo é a casa e o espírito o seu habitante. O espírito estava atormentado no inferno; de que lhe servia ter o corpo a jazer entre cinamono e aromas, envolvido em preciosa mortalha? Assemelha-se ao seguinte: o dono da casa é exilado, e tu ornamentas as paredes da casa. Ele vive no exílio em necessidade, faminto, mal encontra uma cela para dormir, e dizes: Ele é feliz, pois sua casa está ornamentada. Quem não pensaria numa pilhéria, ou que estás louco? Enfeitas o corpo e o espírito é torturado. Dá alguma coisa à alma, e deste ao morto. Mas o que podes lhe dar, se desejou uma gota de água e não recebeu? Aqui na terra ele descuidou de enviar algo a sua frente. Por que desprezou fazê-lo? Porque o caminho do pecador serve de tropeço. Considerava como vida só a presente, e providenciou apenas ser sepultado com roupas preciosas. Sua alma lhe foi pedida, conforme diz o Senhor: “Insensato, nessa mesma noite serte-á reclamada a alma. E as coisas que acumulaste, de quem serão” (Lc 12,20)? E cumpriu-se a palavra deste salmo: “Não temas quando um homem se enriquece, e avulta o esplendor de sua casa. Pois, ao morrer nada levará consigo, nem descerá ao sepulcro com ele a sua glória”.
8 19“Porque durante a vida bendisse a si mesmo”. Prestai atenção. “Porque durante a vida bendisse a si mesmo”. Enquanto vivia, cuidou de seu bem-estar. Assim opinam todos, mas é falso. A bênção provém do ânimo de quem bendiz, e não da realidade em si. O que estás dizendo? Uma vez que ele comeu e bebeu, fez tudo o que quis, banqueteou-se fartamente, fez o bem a si mesmo? A meu ver ele praticou o mal para si. Pois, aquele rico quando diariamente se banqueteava com requinte, pensava que procurava o bem para si; ao começar a arder no inferno, então verificou que era um mal o que ele julgava um bem. Comera na terra e digeria nos infernos. Quero dizer, irmãos, a iniquidade com que se fartava. Ingeria alimentos caríssimos com a boca carnal, e a boca do coração alimentava-se de iniquidade. O que na terra, o coração ingeria, nos infernos digeria entre suplícios. Efetivamente, comera por algum tempo e eternamente digeria o mal. Então se come a iniquidade? Talvez pergunte alguém: O que é que dizes? Come-se a iniquidade? Não sou eu que digo. Escuta como se exprime a Escritura: “Vinagre nos dentes, fumaça nos olhos, tal é a iniquidade para quem a emprega” (Pr 10,26). Quem ingerir a iniquidade, isto é, quem a praticar voluntariamente, não poderá assimilar a justiça. Pois, a justiça é pão. Quem é pão? “Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6,51), diz o Senhor: Ele é o pão de nosso coração. Quem ingerir pela boca uvas ácidas fica com os dentes sem corte, embotados, e torna-se-lhe difícil até comer pão; resta-lhe elogiar o que vê, sem poder comer. Assim também, quem praticou a iniquidade e com o coração se alimentou de pecados, começa a ser incapaz de comer pão; louva a palavra de Deus e não a pratica. Por que não a pratica? Porque ao começar a praticá-la, sente dificuldade, como sentimos que é difícil para os dentes, depois das uvas azedas, comer pão. Mas o que fazem os que ficaram com os dentes embotados? Abstêm-se um pouco das uvas ácidas, e os dentes recuperam sua força e mastigam o pão. Igualmente nós louvamos a justiça; se queremos ingerir a justiça, abstenhamo-nos das iniquidades; e nascerá no coração não apenas o gosto de louvar a justiça, mas ainda a facilidade de a assimilar. Pois, se declara cristão: Deus sabe que me agrada, mas não posso praticá-la, ele tem os dentes quebrados, porque longamente se alimentou da iniquidade. Então, também se come a justiça? Se não se comesse, o Senhor não teria dito: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5,6). “Durante a vida bendisse a si mesmo”. Durante a vida bendisse, na morte será atormentado.
9 “Confessar-te-á quando lhe fizeres o bem”. Atendei. Alimentai-vos. Adira a vossos corações. Comei. Observai tais homens e não sejais de seu número. Precavei-vos de tais palavras. “Confessar-te-á quando lhe fizeres o bem”. Quantos, irmãos, são os cristãos que agradecem a Deus quando obtêm algum lucro! É o que significa: “Confessar-te-á quando lhe fizeres o bem”. Louvará e dirá: Em verdade, tu és o meu Deus. Livrou-me do cárcere, eu o confessarei. Veio um lucro, louva; veio uma herança, louva; sofre um revés, blasfema. Que espécie de filho és tu; se o pai te corrige, te desagrada? Corrigiria, se não lhe desagradasses? Ou se desagradasses a tal ponto que te odiasse, procurarias te emendar? Agradece àquele que te corrige a fim de receberes a herança da parte de Deus que te emenda. Estás sendo educado ao seres corrigido. Se corrige muito é por ser grande o que deves receber. Pois, se pesares a correção, tendo por contrapeso a recompensa, verás que nada é o castigo presente. O apóstolo Paulo o assegura: “Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam. Mas quando? Não olhamos para as coisas que se veem: pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno”. E ainda: “Os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós” (2Cor 4,17.18; Rm 8,18). Por conseguinte, que importância tem o que sofres? Mas, sofres continuamente. Concedo. Desde que nasceste, em todas as idades até a velhice, até a morte, imaginemos que sofreste o que padeceu Jó. O que ele sofreu em alguns dias, sofre alguém desde a infância. Todavia, passa o que sofres; o que hás de receber não terá fim. Não proponho que iguales a pena ao prêmio. Se puderes, iguala o tempo à eternidade.
10 “Confessar-te-á quando lhe fizeres o bem”. Não sejais destes homens, irmãos. O motivo de dizermos estas coisas, de as cantarmos, de explicarmos, de suarmos é este: Não procureis agir assim. Vossos negócios vos experimentam. Algumas vezes, em vosso negócio ouvis a verdade e blasfemais, blasfemais contra a Igreja. Por quê? Porque sois cristãos. Se assim é, dizes, passo para o partido de Donato; quero ser pagão. Qual a razão? Porque mordeste o pão e doem-te os dentes. Ao vires o pão, louvavas; começaste a comer e os dentes doem; isto é, ouvias a palavra de Deus e louvavas com os outros; mas se te é dito: Age desta maneira, blasfemas. Não faças isto. Dize: O pão é bom, mas eu não posso comê-lo. Pois, se o vês com os olhos, elogias; ao começares a mastigar, dizes: Este pão é ruim. Quem é que o fez? Acontece, então, que confessas a Deus, quando ele te faz o bem. E mentes, ao cantares: “Bendirei o Senhor em todo o tempo; seu louvor estará sempre em minha boca” (Sl 33,2). Exige-se que teu coração esteja de acordo com o cântico de teus lábios. Cantaste na Igreja: “Bendirei o Senhor em todo o tempo”; como “em todo o tempo”? Se obténs lucro em todo o tempo, em todo o tempo bendizes; se vem algum prejuízo, não bendizes, mas blasfemas. Certamente bendizes em todo o tempo, com certeza seu louvor estará sempre em tua boca? Ou serás tal como aqui é descrito: “Confessar-te-á quando lhe fizeres o bem”?
11 20.21“Entrará na linhagem de seus pais”, isto é, imitará os seus pais. Os iníquos de hoje têm irmãos e pais. Os iníquos de outrora são os pais dos iníquos atuais; e os do presente são pais dos iníquos do futuro, assim como pais dos justos são os antigos justos, que são os pais dos justos atuais como estes o serão dos futuros justos. O Espírito Santo quis mostrar que a justiça não é um mal, mesmo quando se murmura contra ela; mas estes murmuradores, desde a sua origem até à linhagem de seus pais, têm seu próprio pai. Adão gerou dois filhos. Num existia a iniquidade e em outro a jutiça: a iniquidade em Caim, a justiça em Abel (cf Gn 4,8). Na aparência, a iniquidade prevaleceu sobre a justiça, porque o injusto Caim matou o justo Abel, à noite. E de manhã? Ao contrário, “ao amanhecer os justos os dominarão”. Virá a manhã, e ver-se-á onde está Abel, e onde Caim. O mesmo acontece aos que vivem de acordo com Caim, e aos que vivem de acordo com Abel, até o fim do mundo. “Entrará na linhagem de seus pais e jamais verá a luz”. O injusto enquanto estava aqui, estava nas trevas, gozando de bens falsos e desprezando os verdadeiros e por este motivo daqui irá para o tártaro; saindo das trevas dos sonhos, recebem-no as trevas dos tormentos. Por conseguinte, “jamais verá a luz”. Mas, por que isto? O salmista repete no fim o que escreveu no meio do salmo: “O homem, entre honrarias, não entendeu. Foi comparado aos jumentos irracionais e se lhes fez semelhante”. Vós, porém, irmãos, considerai-vos como homens feitos à imagem e semelhança de Deus (cf Gn 1,26). A imagem de Deus acha-se no íntimo, não no corpo. Não se acha nos ouvidos que vês, nem nos olhos, no nariz, no paladar, nas mãos, nos pés. No entanto, foi feita. Onde se encontra o intelecto, a mente, a razão que investiga a verdade, a fé, a vossa esperança, a vossa caridade, lá tem Deus a sua imagem. Com estes meios, entendeis e vedes as coisas transitórias, conforme se exprime outro salmo: “Passa o homem como em imagem, e no entanto, é em vão que ele se atormenta: Acumula tesouros e não sabe para quem ajuntará” (Sl 38,7). Não vos perturbeis, porque esses bens, sejam quais forem, são passageiros; contanto que sejais homens entre honrarias, mas que entendeis. Pois, se sois homens, entre honrarias, que não entendeis, sereis comparados aos jumentos irracionais, e a eles vos assemelhareis.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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