Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 46

SERMÃO AO POVO

1 O Senhor nosso Deus espargiu os objetos da fé na qual vivemos e pela qual vivemos, de muitos e vários modos, pelos livros santos das Sagradas Escrituras; diversificou os mistérios por muitas palavras, mas recomendou uma só fé. Uma só e mesma realidade está expressa de muitas maneiras, de sorte que varia o próprio modo de dizer, para se evitar o fastio, mas ela é uma só, manifestada em termos concordantes. Por isso, sobre o salmo cujo canto acabamos de ouvir, e ao qual respondemos cantando, diremos coisas conhecidas. No entanto, é possível que, com o auxílio e a graça do Senhor, vos apresentemos algo de interessante, para meditardes, como que ruminando, o que já sabíeis de outras fontes. Pois é por meio da ruminação que Deus distingue os animais puros, insinuando desta maneira que o homem deve guardar no coração o que ouve, sem ter preguiça posteriormente de pensar na questão. Quando ouve, o homem assemelha-se ao animal que come; quando, porém, recorda o que ouviu, parece-se com o animal que rumina. Por conseguinte, as mesmas verdades são ditas de várias maneiras, e nos fazem pensar com gosto no que já sabemos e ouvi-lo de bom grado. O modo de explicar varia, e a velha verdade apresenta novos aspectos pelo modo de ser explanada.

2 1O salmo tem por título: “Para o fim, dos filhos de Coré. Salmo de Davi”. Alguns outros salmos têm no título esses filhos de Coré. Indicam eles um suave mistério, insinuam um grande sinal. De bom grado entendamos que se referem a nós; reconheçamos no título a nós que ouvimos e lemos, e contemplemo-nos, como em espelho. Quem são os filhos de Coré? Houve um homem chamado Coré. Assim se denominava certo homem. Todavia, quando se lê o que foi escrito e se vê que a palavra de Deus trata de alguns que não podem ser filhos deste único homem, chamado Coré, o espírito recorre ao mistério para inquirir o que significa Coré. Pois, é palavra hebraica, que se profere como tal e se traduz em grego e em latim. Assim acontece muitas vezes. Muitos nomes hebraicos foram traduzidos para nós. Entre eles, vemos e descobrimos que Coré significa calvo. Destes mais atenção. Era obscuro falar em filhos de Coré. Mais obscuro ainda se falarmos em filhos do calvo? Quem são estes filhos do calvo? Talvez os filhos do esposo? Pois, o esposo foi crucificado no Calvário (cf Mt 27,33). Relembrai-vos do evangelho. Cristo foi crucificado; verificareis que o lugar onde foi crucificado se chama Calvário. Em seguida, os que zombavam da cruz, foram devorados pelos demônios, essas feras. Determinada passagem da Escritura o figurou. Ao subir o profeta de Deus Eliseu, meninos clamavam atrás dele, por zombaria: “Sobe, careca! Sobe, careca!” Ele, porém, não por crueldade, mas enquanto figurava um mistério, fez com que ursos saíssem do bosque e devorassem aqueles meninos (cf 2Rs 2,23.24). Se aqueles meninos não tivessem sido devorados, acaso ainda viveriam? Ou mortais como eram, não podiam ter morrido de febre? No entanto, neste caso não apareceria neles o mistério, para atemorizar os pósteros. Ninguém, portanto, ridicularize a cruz do Senhor. Os demônios se apoderaram dos judeus e os devoraram. Pois, eles, crucificando a Cristo no Calvário, e erguendo a cruz, como que diziam com mentalidade pueril, sem saber o que diziam: “Sobe, careca!”. Como: “Sobe? Crucifica-o, crucifica-o” (Lc 23,21). Uma vez se propõe a infância como exemplo de humildade, e de outra, para nos precaver da insensatez. O Senhor propõe a infância como exemplo de humildade, ao chamar a si os pequeninos e dizer aos que queriam impedi-los: “Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reino dos céus” (Mt 18,2; 19,14). O Apóstolo é que propôs a infância como modelo de insensatez a evitar: “Irmãos, quanto ao modo de julgar, não sejais como crianças”. E ainda propõe o exemplo imitável: “Quanto à malícia, sim, sede crianças; mas, quanto ao modo de julgar, sede adultos” (1Cor 14,20). “Dos filhos de Coré”. É cantado o salmo; para os cristãos ele é cantado. Ouçamo-lo como filhos do esposo, que os meninos insensatos crucificaram no Calvário. Eles mereceram ser devorados pelas feras; nós, porém, merecemos ser coroados pelos anjos. Pois, reconhecemos a humildade de nosso Senhor, e não nos coramos dela. Não nos envergonhamos dele, chamado misticamente de calvo, devido ao Calvário. A própria cruz, na qual ele foi insultado, não permitiu que seja calva a nossa fronte, porque nela temos o seu sinal. Finalmente para compreenderdes que tudo isto se diz por nossa causa, vede como reza o salmo.

3 2“Nações todas, batei palmas”. Por acaso, o povo judaico constituía todas as nações? Mas a cegueira tomou parte de Israel, de sorte que os meninos insensatos gritavam: “Careca, careca!” O Senhor foi crucificado no Calvário, para remir os povos com seu sangue derramado, e assim se cumprisse o que disse o Apóstolo: “O endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios” (Rm 11,25). Insultem, portanto, os levianos, néscios e insensatos, dizendo: “Careca, careca!” Vós, porém, redimidos em seu sangue, derramado no Calvário, reconhecei que a graça de Deus vos atingiu e dizei: “Nações todas, batei palmas”. O que significa: “batei palmas”? Alegrai-vos. Mas por que batei “com as mãos”? Por se tratar das boas obras. Não vos alegreis só de boca, com as mãos inertes. Se vos alegrais, “batei palmas”. Veja se movimentarem as mãos dos povos aquele que se dignou dar-lhes a alegria. Quais são essas mãos? As ações boas. “Nações todas, batei palmas: aclamai a Deus com vozes de alegria”. Com a voz, com as mãos. Se somente com a voz, não fica bem, porque as mãos ficam inertes; se somente com as mãos, também não, pois a língua fica muda. Concordem as mãos e a língua; esta confesse, aquelas operem. “Aclamai a Deus com vozes de alegria”.

4 3“Porque o Senhor é excelso, terrível”. Deus que é excelso, ao descer à terra é escarnecido, mas tornou-se terrível ao subir. “Grande rei sobre toda a terra”. Não apenas sobre os judeus; pois também sobre eles é rei. Eram deste povo os apóstolos que acreditaram, dele igualmente os milhares de homens que venderam seus bens e depositaram seu preço aos pés dos apóstolos (cf At 4,34). Cumpriu-se para eles o título da cruz: “Rei dos judeus” (Mt 28,37). Pois, ele é rei dos judeus. Mas não basta. “Nações todas, batei palmas, porque Deus é o grande rei sobre toda a terra”. Não lhe é suficiente ter um só povo sob seu domínio. O sangue que lhe saiu do lado é tão grande preço que comprou toda a terra. “Grande rei sobre toda a terra”.

5 4“Submeteu os povos ao nosso jugo e pôs as nações sob nossos pés”. Quais as nações sujeitas e a quem? Quais são estes que falam? Acaso os judeus? Certamente são os apóstolos, certamente os santos. A eles Deus submeteu povos e nações, e assim hoje são honrados no meio dos gentios aqueles que foram mortos por seus concidadãos. Aconteceu o mesmo que ao Senhor que foi morto por seus conterrâneos, e é honrado pelas nações, foi crucificado pelos seus e é adorado pelos estrangeiros; mas tornou-os seus pelo preço que pagou. Comprou-nos a fim de que não lhe fôssemos estranhos. Pensas que os apóstolos tenham declarado: “Submeteu os povos ao nosso jugo e pôs as nações sob nossos pés”? Não sei. Seria de admirar que os apóstolos assim falassem, com soberba, alegrando-se de que os povos estivessem a seus pés, isto é, os cristãos sob seus pés. Efetivamente eles se regozijam por estarmos com eles aos pés daquele que morreu por nós. Pois, corriam para ficar aos pés de Paulo os que queriam ser dele. O Apóstolo os interrogava: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor?” (1Cor 1,13). O que significa então esta palavra? Como a tomaremos? “Submeteu os povos ao nosso jugo e pôs as nações sob nossos pés”. Os que têm parte na herança de Cristo pertencem a todas as nações, e os que não têm igualmente vêm de todas as nações. Vedes que de tal modo é exaltada a Igreja em nome de Cristo que todos os que ainda não acreditam em Cristo, estão sob os pés dos cristãos. Atualmente, quantos que ainda não são cristãos correm à Igreja e pedem-lhe auxílio; querem ser socorridos materialmente, embora ainda não desejem reinar conosco eternamente. Se todos buscam socorro na Igreja, mesmo os que ainda não lhe pertencem, não é por que ele “submeteu povos e gentes sob nossos pés”?

6 5“Escolheu-nos para sua herança, beleza de Jacó por ele amada”. Escolheu para nós a beleza de Jacó, a sua herança. Esaú e Jacó eram irmãos gêmeos. Eles lutavam no seio materno, que se ressentia deste conflito. E ali foi escolhido o menor e preferido ao mais velho, conforme está escrito: “Há duas nações em teu seio. O mais velho servirá ao menor” (Gn 25,23). Em todas as nações encontra-se o maior, e em todas elas o menor. Constituem o menor os bons cristãos, escolhidos, piedosos, fiéis. O maior é formado pelos soberbos, indignos, pecadores, contumazes, os que mais defendem os próprios pecados que os confessam, qual foi o próprio povo judaico que ignorou a justiça de Deus, querendo estabelecer a sua (cf Rm 10,3). Mas como foi dito: “O mais velho servirá ao menor”, torna-se manifesto que os ímpios se submeterão aos pios, e os soberbos estarão sujeitos aos humildes. Esaú nasceu primeiro e em seguida Jacó; mas o que nasceu em segundo lugar foi preferido ao primeiro, que perdeu o direito a sua primogenitura, por causa da gula. Assim está escrito: “Desejou a lentilha, e seu irmão lhe propôs: Se queres que te dê, vende-me o direito de primogenitura” (cf Gn 25,30-34). Esaú preferiu satisfazer seu desejo carnal a manter seu direito que tinha espiritualmente por nascimento. Desfez-se de sua primogenitura, para comer lentilha. Sabemos que a lentilha é uma comida egípcia, pois dá com abundância no Egito. É famosa a lentilha de Alexandria, e é exportada até para nossa terra, como se aqui não nascesse lentilha. Esaú, pois, cobiçando a comida egípcia, perdeu a precedência. De igual modo o povo judaico, do qual foi dito: “Voltaram de coração para o Egito” (At 7,39). De certa maneira cobiçou lentilhas e perdeu a primazia. “Escolheu-nos para sua herança, beleza de Jacó por ele amada”.

7 6“Deus subiu entre aclamações jubilosas”. Nosso Deus o Senhor Jesus Cristo “subiu entre aclamações jubilosas. O Senhor subiu ao som da trombeta. Subiu”. Para onde, a não ser para onde sabemos? Os judeus não o seguiram, nem com os olhos. Zombaram dele na cruz, e não o viram subir ao céu. “Subiu Deus entre aclamações jubilosas”. Que é júbilo senão alegre admiração, inex-plicável por palavras? Assim se admiraram os discípulos, cheios de alegria ao contemplarem subindo ao céu aquele que haviam chorado por ocasião de sua morte. De fato, as palavras não eram suficientes para manifestar tal alegria; restava o júbilo, que é inexplicável. Na ascensão houve também som de trombeta, isto é, a palavra dos anjos. Pois, foi dito: “Levanta a tua voz como uma trombeta” (cf At 1,9; Is 58,1). Os anjos anunciaram a ascensão do Senhor. Os discípulos assistiram à subida do Senhor, com íntima participação, cheios de admiração, espanto, calados, com corações jubilosos. E o som da trombeta foi a palavra bem clara dos anjos: “Homens da Galileia, porque estais aí? Esse é Jesus”. Como se eles não soubessem que ele era Jesus. Não o haviam visto pouco antes? Não o ouviram, dirigindo-se a eles? Verdadeiramente, não só o viram pessoalmente presente, mas até tocaram seus membros (cf Lc 24,39). Então, não sabiam que ele era Jesus? Mas, devido à própria admiração, por causa da alegria jubilosa, como que fora de si, falaram os anjos: “Ele é Jesus”. Seria: Se acreditais nele, é o mesmo que ao ser crucificado deixou-vos com os pés vacilantes, e ao ser morto e sepultado, ficastes pensando que toda esperança estava perdida. E no entanto, este é o próprio Jesus. Subiu antes de vós. “Virá do mesmo modo que para o céu o vistes partir” (At 1,11). Corporalmente é arrebatado de vossos olhos, mas enquanto Deus não se separa de vossos corações. Vede-o a subir, acreditai no ausente, esperai o que há de voltar; por sua misericórdia oculta, contudo, percebei sua presença. Aquele que subiu ao céu, furtando-se a vossos olhares, prometeu-vos: “Eis que estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). Foi com razão que o Apóstolo nos dizia: “O Senhor está próximo! Não vos inquieteis” (Fl 4,5.6). Cristo está sentado acima dos céus e estes estão longe: contudo aquele que está sentado lá, está próximo de nós. “Subiu o Senhor ao som de trombeta”. Vós, portanto, filhos de Coré, se entendestes o que sois, e aqui vos vistes, alegrai-vos por estar aqui.

8 7“Salmodiai ao nosso Deus, salmodiai”. Cantai salmos a nosso Deus, de quem zombaram, como se fosse apenas homem, os que dele se afastaram. Pois, ele não é homem somente; é igualmente Deus. Homem da descendência de Davi (cf Rm 1,3), Deus Senhor de Davi, assumindo a carne proveniente dos povos dos judeus, “aos quais pertencem os patriarcas”, como diz o Apóstolo, “e dos quais descende o Cristo, segundo a carne” (Rm 9,5). Dos judeus, portanto, vem o Cristo, mas segundo a carne. Quem é, todavia, este Cristo, descendente dos judeus, segundo a carne? “Ele é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos”. Deus, anterior à carne, Deus na carne, Deus encarnado. Não existia apenas anteriormente à carne, mas Deus antes da terra, de onde foi tirada a carne. Não apenas Deus antes da terra, de onde foi feita a carne, mas igualmente Deus anterior ao céu, que foi feito antes da terra. Deus também antes de haver dia, que foi o primeiro a ser criado. Deus antes de todos os anjos, o próprio Cristo porque “no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito” (Jo 1,1-3). Ele por meio de quem tudo foi feito, existia antes de todas as coisas. “Salmodiai, portanto, ao nosso Deus, salmodiai”.

9 8“Porque Deus é o rei de toda a terra”. Como, então? E anteriormente, não era Deus de toda a terra? Por acaso não era Deus do céu e da terra, pois, de fato, por ele foram feitas todas as coisas? Quem poderia dizer que ele não é seu Deus? Não obstante, nem todos os homens reconheceram seu Deus; e quase se poderia dizer que era Deus onde era conhecido. Deus era conhecido na Judeia (cf Sl 75,2). Ainda não fora dito aos filhos de Coré: “Nações todas, batei palmas”. Aquele Deus, conhecido na Judeia, é o Deus, rei de toda a terra. Já é conhecido por todos, porque se cumpriu a palavra de Isaías: “O Santo de Israel é teu redentor. Ele se chama o Deus de toda a terra” (Is 54,5). “Porque Deus é o rei de toda a terra. Cantai com sabedoria”. Ensina-nos, admoesta-nos a cantar com sabedoria. Não procuremos sons agradáveis aos ouvidos e sim luz para o coração. “Cantai com sabedoria”. Os gentios, de entre os quais fostes chamados para vos tornardes cristãos, adoravam os ídolos, e cantavam para eles; mas não com sabedoria. Se cantassem com sabedoria, não adorariam pedras. Se um homem sensato canta diante de uma pedra insensível, por acaso canta com sabedoria? Agora, porém, irmãos, não vemos com nossos olhos aquele a quem adoramos, e no entanto adoramos de maneira correta. A consideração que temos para com Deus é tanto maior quanto não o vemos com nossos olhos. Se o víssemos com nossos olhos, talvez o desprezássemos. Pois, também a Cristo os judeus que o viram o desprezaram, e os gentios que não o viram o adoraram. A estes últimos foi dito: “Cantai com sabedoria”. “Não sejais como o cavalo e o mulo, sem inteligência” (Sl 31,9).

10 9“Deus reinará sobre todas as nações”. Ele reinava sobre uma nação, e agora “reinará sobre todas as nações”. Deus reinava sobre uma só nação, quando isto era dito; era profecia, ainda não a realidade presente. Graças a Deus por vermos cumprir-se a anterior profecia. Deus nos deu um quirógrafo escrito, para pagar-nos uma vez chegada a época do vencimento. “Deus reinará sobre todas as nações” — é a promessa “Deus está sentado em seu trono santo”. Foi então prometido para o futuro; agora vemos cumprido e o temos. “Deus está sentado em seu trono santo”. Qual? Talvez os céus; é uma boa explicação. Cristo subiu, conforme sabemos, com o mesmo corpo com que foi crucificado, e está sentado à direita do Pai; de lá há de vir, como esperamos, a julgar os vivos e os mortos (cf At 1,2; 1 Tm 4,1). “Está sentado em seu trono santo”. Os céus são o seu trono santo? Queres também tu ser o trono de Deus? Não julgues que não o podes. Prepara para ele um lugar em teu coração; ele virá, e com gosto aí se sentará. Ele certamente é a virtude de Deus e a sabedoria de Deus (cf 1Cor 1,14; Sb 7). E o que diz a Escritura da sabedoria? A alma do justo é a sede da sabedoria. Se, portanto, a alma do justo é a sede da sabedoria, seja justa a tua alma, e serás o trono real da sabedoria. E, de fato, irmãos, em todos os homens que vivem honestamente, que agem bem, vivem segundo a caridade e a piedade, acaso Deus não tem neles seu trono e de lá dá ordens? A alma que tem Deus estabelecido em si obedece-lhe, e dá ordens a seus membros. Tua alma ordena a teus membros: como se deve mover o pé, a mão, o olho, o ouvido e manda em seus membros, como se fossem seus servos; mas ela mesma interiormente serve a seu Senhor, nela sediado. Não pode bem ordenar a seus inferiores, se não se dignar servir a seu superior. “Deus está sentado em seu trono santo”.

11 10“Os princípes dos povos uniram-se ao Deus de Abraão”. Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó. É verdade que Deus afirmou isto. E os judeus se ensoberbeceram, dizendo: “Somos a posteridade de Abraão” (cf Ex 3,6; Jo 8,33). Soberbos por causa do nome paterno, sendo de sua carne, mas não mantendo a sua fé; eram de sua descendência, mas de costumes degenerados. Finalmente, o que disse o Senhor àqueles orgulhosos? “Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão” (Jo 8,39). E ainda como interpelou João a alguns deles que o procuraram tremendo, desejosos de se corrigirem pela penitência? “Raça de víboras”. Eram iníquos, eram perdidos, eram pecadores, eram ímpios e vieram procurar o batismo de João; e este, o que lhes diz? “Raça de víboras”. Eles afirmavam que eram filhos de Abraão e João os denominava: raça de víboras. Por acaso Abraão era víbora? Não; mas eles, com uma vida má, imitavam os demônios, e se tornaram filhos daqueles que imitavam, vivendo pessimamente. “Raça de víboras”, disse João, “quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi, então, fruto que prove a vossa conversão e não penseis que basta dizer: Temos por pai a Abraão”, orgulhando-vos de ser da raça de Abraão, “pois eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mt 3,7-9). Abraão não ficará privado de filhos, se Deus vos condenar; ele pode condenar os que odeia, e restituir-lhe os que prometeu. E de onde tirará os filhos para restituir, se condena os hebreus, provenientes de sua carne? “Destas pedras”. João mostrava-lhes as pedras no deserto. Que eram essas pedras senão os gentios, que adoravam pedras? Porque pedras? Adorando os ídolos de pedra, foram denominados pedras também eles, pois predissera o salmo: “Semelhantes a eles sejam os que os fazem, e todos os que neles confiam” (Sl 113,8). Todavia, destas pedras tirou Deus os filhos para restituir a Abraão. Agora, todos nós que adorávamos as pedras, convertidos ao Senhor, tornamo-nos de Abraão, não segundo a carne, mas por imitação de sua fé. “Os príncipes dos povos”, os príncipes das nações, não os príncipes de um só povo, mas de todos os povos, “uniram-se ao Deus de Abraão”.

12 Destes príncipes era também o centurião, mencionado na leitura do evangelho que acabais de ouvir. O centurião gozava de honras e de poder no meio dos homens, era príncipe entre os príncipes dos povos. Enviou seus amigos ao encontro de Cristo que se aproximava dele, ou antes, que ia passar por ali; e pediu que curasse seu servo, gravemente enfermo; e como o Senhor quisesse ir, ele próprio, mandou-lhe o seguinte recado: “Não sou digno de que entres em minha casa. Dize, porém uma palavra, para que o meu criado seja curado. Pois, também eu estou sob uma autoridade, e tenho soldados às minhas ordens”. Vede como mantém a ordem: lembra em primeiro lugar que ele é subordinado, e depois que há outros às suas ordens. Estou sob uma autoridade, e sou constituído em autoridade. Estou abaixo de alguns e sou superior de outros. “E a um digo: ‘Vai!’ e ele vai; e a outro: ‘Vem!’ e ele vem; e a meu servo: ‘Faze isto! e ele o faz’ ”. Parece declarar: Se eu, que estou sob uma autoridade, dou ordens aos meus subordinados, tu que não estás às ordens de ninguém, não podes dar ordens a tua criatura, se tudo foi feito por ti, e sem ti nada foi feito? “Dize, porém, uma palavra, para que o meu criado seja curado”. Mas, “não sou digno de que entres em minha casa”. Hesitou em receber a Cristo dentro de sua casa, e no entanto, Cristo já estava em seu coração. Sua alma já era trono de Cristo, que ali se sentava, pois procurava os humildes. Cristo, então, “ficou admirado e, voltando-se para a multidão que o seguia, disse: Eu vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé” (Lc 7,6-9). E conforme a narração de outro evangelista sobre o mesmo fato, o Senhor prossegue: “Mas eu vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no Reino dos céus, com Abraão, Isaac e Jacó” (Mt 8,11). Pois, este centurião não pertencia ao povo de israel. No povo de israel havia soberbos que repeliam a Deus; entre os príncipes dos gentios encontrou-se um humilde, que convidou a Deus a se aproximar. Jesus, admirando sua fé, reprova a infidelidade dos judeus. Consideravam-se sadios, enquanto estavam gravemente doentes, e mataram o médico que não quiseram reconhecer. Reprovando e repudiando sua soberba, como se exprime? “Mas eu vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente”, que não pertencem à progênie de Israel; virão muitos, aos quais disse o salmista: “Nações todas, batei palmas. E se assentarão à mesa no reino dos céus com Abraão”. Abraão não os gerou carnalmente; mas virão e se assentarão à mesa do reino dos céus com ele, e serão seus filhos. Por que razão serão seus filhos? Não nasceram de sua carne, mas seguiram sua fé. “Enquanto os filhos do reino”, a saber, os judeus, “serão postos para fora, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8,12). Serão condenados às trevas exteriores os descendentes de Abraão segundo a carne, e se assentarão à mesa com ele no reino dos céus os que imitaram a fé de Abraão. Com toda razão, portanto, também aqui os “príncipes dos povos uniram-se ao Deus de Abraão”.

13 O que acontecerá aos que pertenciam ao Deus de Abraão? “Porque os deuses poderosos da terra sobremaneira se exaltaram”. Quais eram esses deuses, o povo de Deus, a vinha de Deus, da qual está escrito: “Servi de juízes entre mim e a minha vinha” (Is 5,3)? Eles irão para as trevas exteriores e não estarão à mesa com Abraão, Isaac e Jacó; não se unirão ao Deus de Abraão. Por quê? Porque “são os deuses poderosos da terra”. Eram deuses poderosos da terra, e presumiam da terra. De qual? De si mesmos, pois todo homem é terra. Foi dito ao homem: “Tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19). O homem deve presumir de Deus, e dele esperar auxílio, não de si mesmo. A terra não faz chover para si, nem se ilumina a si mesma. Como a terra aguarda do céu a chuva e a luz, assim deve o homem esperar de Deus a misericórdia e a verdade. Eles, portanto, “os deuses poderosos da terra sobremaneira se exaltaram”. Não pensaram que precisavam de médico, e por isso permaneceram com a doença, que os levou à morte. Os ramos naturais foram cortados para ser enxertado o da humilde oliveira silvestre (cf Rm 11,17). “Porque os deuses poderosos da terra sobremaneira se exaltaram”. Mantenhamo-nos, portanto, irmãos, na humildade, caridade, piedade, porque fomos chamados, enquanto eles foram reprovados. Ao menos sirva-nos de exemplo sua sorte, que nos incuta medo do orgulho.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


Comments

Uma resposta para “Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 46”

  1. Avatar de Flávia Muniz
    Flávia Muniz

    Que tremenda alocução!!! Quanta sabedoria derramada nesses ensinamentos. Obrigada pela caridade em difundir. Parabéns pelo blog. Deus recompense 7x mais, em santificação a quem o alimenta e a quem de boa e reta intenção o consulta e dele extraí suas riquezas para enriquecer outros. Salve Maria. AMDG🙌🙌🙌

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