1ª PARTE
1 O título é: “Para o fim. Pelos segredos do filho. Salmo de Davi”. É provável haver indagações a respeito de “segredos do Filho”. Como não declarou quem é o filho, entenda-se o próprio Filho unigênito de Deus. Ao se tratar do filho de Davi, o salmo se intitulava: “Quando fugia de seu filho Absalão” (Sl 13,1). Foi nomeado, e por conseguinte era claro de quem se tratava. No entanto, não declarou somente: “do filho Absalão”, mas acrescentou: “seu”. Aqui, porém, não usou o termo seu; e como se refere longamente aos gentios, não fica bem pensar em Absalão, nem na guerra que aquele filho perdido fez ao pai, em que apenas o povo de Israel estava dividido. Canta-se, pois, este salmo, pelos segredos do Filho unigênito de Deus. Até mesmo o próprio Senhor, ao falar de filho, sem acréscimo, quer indicar a si, o unigênito; diz, por exemplo: “Se, pois, o Filho vos libertar, sereis realmente, livres” (Jo 8,36). Não disse: Filho de Deus, mas proferindo apenas: “Filho”, dá a entender de quem é filho. Esta locução adapta-se à excelência daquele de quem falamos; embora não declaremos o nome, subentende-se. Assim, ao dizermos: chove, cai sereno, troveja, etc. Também não acrescentamos quem o faz, porque espontaneamente apresenta-se à mente de todos a excelência do autor, tornando-se desnecessárias as palavras. Quais são, então, os segredos do Filho? Diante de tal expressão, compreende-se em primeiro lugar haver pontos manifestos atinentes ao Filho, distintos dos ocultos. Por este motivo, acreditamos em duas vindas do Senhor, uma passada, que os judeus não compreenderam, e outra futura, que nós e eles aguardamos; e como, incompreendida dos judeus, a vinda foi proveitosa aos gentios, convém pensar que deste advento foi dito: “Pelos segredos do Filho”. Então, parte de Israel permaneceu na cegueira, a fim de entrar a plenitude dos gentios (Rm 11,25). Nota-se haver também dois juízos, insinuados nas Escrituras: um oculto, outro às claras. O oculto realiza-se no presente. Dele afirma o apóstolo Pedro: “Com efeito, é tempo de começar o juízo pela casa de Deus” (1Pd 4,17). O juízo oculto, por conseguinte, é o castigo que agora exercita cada qual para sua purificação, ou admoesta a se converter, ou se forem desprezados o chamado e o ensinamento de Deus, cega-o para sua condenação. O juízo manifesto, porém, realiza-se quando o Senhor vier a julgar os vivos e os mortos. Todos confessam ser ele quem atribuirá prêmios aos bons e suplícios aos maus. Mas então esse reconhecimento não servirá de remédio aos maus, e sim de completa condenação. A meu ver, o Senhor tratava desses dois juízos, um oculto outro manifesto, ao asseverar: “Quem crê em mim, passará da morte à vida e não virá a juízo” (Jo 5,24), a saber, o juízo manifesto; pois, passar da morte à vida, através de alguma aflição, com a qual o Senhor flagela aquele que recebe como filho, é juízo oculto. “Quem nele não crer já está condenado” (ib. 3,18), isto é, este juízo oculto está preparado para o juízo manifesto. Encontramos os dois juízos também no livro da Sabedoria, onde está escrito: “Assim, como a meninos sem razão lhes deste um castigo irrisório. Mas os que recusam a advertência de semelhante correção, sofrerão da parte de Deus um digno castigo” (Sb 12,25.26). Os incorrigíveis, portanto, através deste oculto juízo de Deus, com toda justiça serão punidos no juízo manifesto. Por tal motivo, neste salmo notem-se os segredos do Filho, isto é, sua vinda humilde proveitosa aos gentios e ofuscante aos judeus, e o atual castigo oculto, que não constitui ainda condenação dos pecadores, e sim exercício para os que se converterem, ou advertência para se converterem, ou ainda cegueira, de sorte que se preparem para a condenação os que recusarem se converter.
2 2“De todo o coração, te louvarei, Senhor”. Não louva a Deus de todo o coração quem duvida de sua providência em algum ponto, mas louva quem percebe os segredos da sabedoria de Deus, e quão grande é o prêmio invisível daquele que diz: “Nós nos gloriamos também nas tribulações” (Rm 5,3). Ele vê como os tormentos corporais exercitam os convertidos a Deus, ou servem de exortação a se converterem, ou preparam os endurecidos à justa condenação final. Assim todos os acontecimentos pertencem ao regime da divina providência. Os estultos julgam que eles advêm por acaso, às cegas, fora das divinas disposições. “Narrarei todas as tuas maravilhas”. Narra as maravilhas de Deus quem sabe que elas se realizam não só visivelmente nos corpos, mas ainda invisivelmente nas almas, de modo, porém, muito mais sublime e excelente. Pois, os homens terrenos e dados às coisas ocultas, mais se admiram de ter o defunto Lázaro ressuscitado corporalmente do que de ter Paulo, o perseguidor, ressuscitado espiritualmente. Mas, como o milagre visível convida a alma a um esclarecimento, enquanto o invisível ilumina aquela que atendeu ao chamado, narra as maravilhas de Deus a alma que, acreditando nas coisas visíveis, passa a entender as invisíveis.
3 3“Em ti exultarei de alegria”. Neste mundo ainda não. Não no prazer do contato corporal, nem nos sabores do paladar e da língua, nem na suavidade dos odores, nem na alegria dos sons passageiros, nem nas formas corporais variegadas, nem nas vaidades do louvor humano, nem no matrimônio e na prole que há de morrer, nem no das riquezas temporais supérfluas, nem nas pesquisas deste mundo, sejam relativas ao que ocupa espaço ou evolui na sucessão do tempo. Mas, “em ti exultarei de alegria”, nos segredos do Filho, onde foi assinalada em nós a luz de tua face, Senhor (Sl 4,7). Porque “tu os defendes sob a proteção de teu rosto” (Sl 30, 21). Exultará, portanto, de alegria em ti, quem narra todas as tuas maravilhas. Narrará todas as tuas maravilhas — de fato agora o dito é profético — aquele que não veio fazer a sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou (cf Jo 6,38).
4 4Começa agora a aparecer a pessoa do Senhor, a falar neste salmo. Pois, segue-se: “Salmodiarei a teu nome, ó Altíssimo, ao retroceder o meu inimigo”. Quando foi que o inimigo retrocedeu? Acaso ao lhe ser ordenado: “Para trás, Satanás” (Mt 4,10)? Então, efetivamente, o diabo que tentava, ambicionando prevalecer, retrocedeu, sem conseguir enganar ao tentado, sem nada poder contra ele. Para trás ficam os homens terrenos. O homem celeste precedeu, embora tenha vindo posteriormente. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu (1Cor 15,47). Mas vinha da mesma estirpe o Senhor do qual disse João: “O que veio depois de mim, existia antes de mim” (Jo 1,15). E o Apóstolo se esquece das coisas que ficam para trás e avança para o que está adiante (Fl 3,13). O inimigo, por conseguinte, retrocedeu, não tendo conseguido enganar o homem celeste que tentara, e voltou-se para os terrenos, sobre os quais pode dominar. Por isso, ninguém o precede e fá-lo retroceder, a não ser que, apagando a imagem do homem terreno, reproduza em si a imagem do celeste (1Cor 15,49). Mas, se preferimos tomar por “meu inimigo”, de modo geral, o pecador ou o pagão, não é absurdo. Nem constitui castigo o que foi dito: “Ao retroceder o meu inimigo”, mas benefício incomparável. Que há de mais feliz do que libertar-se da soberba e não querer preceder a Cristo, como se fosse homem sadio, não necessitado de médico, mas preferir ir atrás de Cristo, que chama o discípulo à perfeição, dizendo: “Segue-me” (Mt 19,21)? No entanto, percebe-se ser mais adequada a aplicação ao diabo da palavra: “Ao retroceder o meu inimigo”. O diabo, efetivamente, retrocedeu mesmo na perseguição dos justos e é mais útil enquanto perseguidor do que se fosse à frente, como chefe e príncipe. Salmodie-se, pois, ao nome do Altíssimo, ao retroceder o inimigo, uma vez que é preferível fugir de sua perseguição a segui-lo como guia. Servem-nos de abrigo e esconderijo os segredos do Filho, porque o Senhor se tornou o nosso refúgio.
5 4.5“Haverão de fraquejar e perecer perante a tua face”. Quais os que fraquejam e perecem senão os iníquos e os ímpios? “Haverão de fraquejar”, enquanto nada poderão fazer, e “perecer”, porque não serão mais ímpios; “perante a face” de Deus, isto é, o conhecimento de Deus, do mesmo modo que pereceu aquele que afirmou: “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Mas por que razão “haverão de fraquejar e perecer os ímpios perante a tua face?” Porque “defendeste o meu juízo e a minha causa”, diz o salmista, isto é, fizeste meu aquele juízo, onde eu parecia ser julgado, e tornaste minha a causa, que os homens condenaram, apesar de ser eu justo e inocente. Estes fatos cooperaram na luta em prol de nossa libertação. Os marinheiros também chamam de seu o vento que os faz navegar com felicidade.
6 “Sentaste no trono, como justo juiz”. Talvez assim o Filho se dirija ao Pai. Ele também disse: “Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto” (Jo 19,11), referindo-se à justiça do Pai e aos seus próprios segredos, porque o juiz dos homens, para o bem dos homens, foi julgado. Ou provavelmente ele, enquanto homem, diga a Deus: “Sentaste no trono, como justo juiz”, chamando de trono a sua alma, de sorte que corpo seria a terra, denominada escabelo de seus pés (Is 66,1); porque Deus em Cristo reconciliava consigo o mundo (2Cor 5,19). Seria ainda a Igreja que, já perfeita e sem mácula (Ef 5,27), digna portanto dos segredos do filho, porque o rei a introduziu nos seus aposentos (Ct 1,3), diria a seu esposo: “Sentaste no trono, como justo juiz”, porque ressuscitaste dos mortos e subiste ao céu, e estás sentado à direita do Pai. Se alguém escolher qualquer uma destas opiniões, quanto ao presente versículo, não exorbita da regra da fé.
7 6“Repreendeste as nações e o ímpio pereceu”. É preferível considerar isso como dito de nosso Senhor Jesus Cristo, e não que o tenha ele próprio proferido. Quem foi que repreendeu as nações, e então pereceu o ímpio, senão Cristo que após ter subido ao céu, enviou o Espírito Santo? Dele repletos, os apóstolos pregaram corajosamente a palavra de Deus e livremente arguiram os pecados dos homens. Por esta repreensão pereceu o ímpio, sendo justificado e feito piedoso. “Apagaste o seu nome nos séculos e pelos séculos dos séculos”. Foi apagado o nome dos ímpios uma vez que não são ímpios os que acreditam no Deus verdadeiro. O nome deles foi apagado “nos séculos”, isto é, enquanto decorre o século, o tempo. “E pelos séculos dos séculos”. Qual o significado de “séculos dos séculos”, senão da eternidade de que é imagem, sombra o presente século? A vicissitude dos tempos, a lua que mingua e volta a ficar cheia, o sol anualmente a retornar a seu lugar, a primavera, o verão, o outono e o inverno que passam para volver, tudo isso é imitação da eternidade. Mas, século deste século é aquilo em que consiste a eternidade imutável. Como existe verso na alma e verso na voz, e enquanto o primeiro se entende, o segundo se ouve, e aquele modifica a este, aquele opera e permanece na arte, este soa e atravessa o ar, assim a medida do século mutável se determina pelo século imutável, chamado século dos séculos. Por isso, aquele permanece na arte de Deus, isto é, em sua sabedoria e virtude, este se realiza no governo da criação. Se, todavia, não há repetição, depois de “nos séculos” lê-se “pelos século dos séculos”, que não deve ser tomado por aquilo que passa. De fato, nos exemplares gregos encontra-se eis tón aiona, kaì eis tón aiona tou aionos muitos dos latinos não traduziram por “nos séculos”, e “pelos séculos dos séculos”, mas “eternamente”, e “pelos séculos dos séculos”, de sorte que “pelos séculos dos séculos” explica o termo “eternamente. Apagaste”, portanto, “o nome dos ímpios eternamente”, porque doravante jamais haverá ímpios. E se neste século não se propaga o nome deles, muito menos pelos séculos dos séculos.
8 7“As espadas do inimigo se embotaram para sempre”. “Inimici” aqui não está no plural, mas trata-se do genitivo singular (do inimigo). As espadas que se embotaram pertencem a qual inimigo, senão ao diabo? Por elas se entendem as diversas opiniões erradas, com as quais, à guisa de espadas, ele mata as almas. Empenha-se em vencer tais espadas e estragá-las, o gládio mencionado no salmo sétimo: “Se não vos converterdes, brandirá a espada” (Sl 7,13). Talvez seja no final que se embotarão as espadas do inimigo, porque até lá este consegue alguma coisa. Agora o Senhor age ocultamente; no último juízo, porém, vibrá-la-á às claras e as cidades serão destruídas, porque assim continua: “As espadas do inimigo se embotaram, destruíste as suas cidades”, as cidades onde reina o diabo e onde se realizam os planos dolosos e fraudulentos, como numa cúria. Os serviços de cada um dos membros, satélites ou ministros, assessoram-lhe o governo: os olhos para a curiosidade, os ouvidos para a lascívia ou coisa má ouvida de bom grado, as mãos para a rapina ou outro crime ou ignomínia; e os demais membros igualmente combatem em favor deste governo tirânico, de seus planos perversos. Povo desta cidade seriam as afeições delicadas e movimentos desordenados da alma, que suscitam sedições cotidianas no homem. Onde há rei, cúria, ministros, povo há cidade. Mas, tais coisas não existiriam nas más cidades, se primeiro não existissem em cada um dos homens, que são elementos e germes das cidades. O Senhor as destrói, quando, expulso o príncipe, do qual foi dito: “Agora o príncipe deste mundo será lançado fora” (Jo 12,31), esses reinos são devastados pela palavra da verdade, os planos malignos se entorpecem, domam-se as afeições torpes, subjulgam-se as funções dos membros e dos sentidos, sendo tudo transferido para a milícia da justiça e das boas obras, segundo a palavra do Apóstolo: “O pecado não impere mais em vosso corpo mortal” (Rm 6,12), etc. Então a alma se tranquiliza e o homem se orienta para o repouso e a felicidade. “Ruiu com estrépito a lembrança deles”, dos ímpios. “Com estrépito”, porque é com ruído que se derruba a impiedade, pois apenas alcança a paz suprema, onde reina silêncio absoluto, quem anteriormente combateu com grande estrépito contra os vícios; ou, “com estrépito” a fim de que a lembraça dos ímpios pereça, terminando até o próprio barulho da amotinação da impiedade.
9 8.9“Mas o Senhor permanece eternamente”. Por que as nações se agitaram, e os povos tramaram em vão contra o Senhor e seu Cristo (Sl 2,1)? “O Senhor permanece eternamente. Preparou o tribunal do julgamento. Julgará o mundo inteiro com equidade”. Preparou o seu tribunal ao ser julgado; por aquela paciência o homem adquiriu o céu, e o homem Deus cuidou dos que acreditarem; eis o juízo oculto do filho. Todavia, como há de vir também evidente e manifestamente a julgar os vivos e os mortos, preparou o seu tribunal no juízo oculto. E ele novamente às claras, “Julgará o mundo inteiro com equidade”, isto é, distribuirá a recompensa de acordo com os méritos, pondo os cordeiros à direita e os cabritos à esquerda (Mt 25,33). “Julgará as nações com justiça”. É idêntico ao enunciado supra: “Julgará o mundo inteiro com equidade”. Não como julgam os homens, que não veem os corações se na maioria dos casos absolvem os piores, em vez de condená-los. Mas o Senhor julgará com equidade e justiça, enquanto a consciência dá testemunho, e os pensamentos acusam ou defendem (Rm 2,15). 10 10 “O Senhor se fez o refúgio do pobre”. Por mais que persiga o inimigo que retrocedeu, como há de prejudicar aqueles de quem o Senhor se fez o refúgio? Assim acontecerá se neste século, que tem o inimigo por magistrado, eles preferirem ser pobres, e nada amarem do que na terra abandonar quem vive ou ama, ou seja, abandonado por quem morre. De tal pobre o Senhor se fez o refúgio, “socorro na ocasião oportuna, na aflição”. Fá-los assim pobres, porque o Senhor açoita todo aquele que reconhece por filho (Hb 12,6). O salmista explicou o que seja “socorro na ocasião oportuna” ao acrescentar: “na aflição”. A alma não se volta para Deus, a não ser que volte as costas ao mundo; nem se aparta deste mundo de melhor forma que nas ocasiões em que se misturam trabalhos e dores aos prazeres fúteis, maus e perniciosos.
11 11“Em ti esperem os que conhecem o teu nome”, desistindo de confiar nas riquezas e outros afagos deste mundo. O conhecimento do nome de Deus oportunamente acolhe a alma à busca de onde fixar sua esperança, quando se retira deste mundo. Pois, o nome de Deus agora se divulgou por toda a parte; mas conhecimento do nome é conhecer quem o possui. O nome não é nome por si mesmo e sim devido àquilo que significa. Foi dito: “Senhor é seu nome” (Jr 33,2). Por isso, quem se submete ao serviço de Deus de bom grado, conhece esse nome, “Em ti esperem os que conhecem o teu nome”. O Senhor diz também a Moisés: “Eu sou aquele que é. Assim dirás aos filhos de Israel: Aquele que é enviou-me” (Ex 3,14). “Em ti”, portanto, “esperem os que conhecem o teu nome”, a fim de não esperarem nas coisas que passam com o correr do tempo, que têm apenas: “será” e “foi”. Nelas o futuro chega e logo se torna passado: espera-se com sofreguidão e perde-se com dor. Na natureza de Deus, porém, não haverá coisa que agora não há, nem houve e agora não há mais; mas é sempre o que é, e ela mesma é a eternidade. Desistam, por conseguinte, de esperar e amar as coisas temporais e deem-se à esperança eterna os que conhecem o nome de quem disse: “Eu sou aquele que é”, e do qual foi declarado: “Aquele que é enviou-me. Porque não desamparaste quem te procura, Senhor”. Os que o procuram, já não buscam as coisas transitórias e caducas, pois “ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6,24).
12 12“Cantai hinos ao Senhor que habita em Sião”, diz-se aos que o Senhor não abandona, e que o procuram. O Senhor mora em Sião, que se traduz por: “lugar de observação” e é imagem da Igreja no presente, como Jerusalém é imagem da Igreja futura, da cidade dos santos, já na fruição da vida dos anjos, porque Jerusalém se traduz por: “visão de paz”. A observação precede a visão, como esta Igreja precede aquela prometida, a cidade imortal e eterna. Mas precede no tempo, não em dignidade, porque é mais honroso o fim a que tendemos do que aquilo que fazemos, em vista de merecermos alcançar. Fazemos a observação a fim de obtermos a visão. A mais diligente observação incidiria em erro, se o Senhor não habitasse na Igreja agora existente. A esta Igreja foi dito: “O templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (1Cor 3,17) e: “No homem interior, que Cristo habite pela fé em vossos corações” (Ef 3,16). Recebemos, então, ordem de cantar ao Senhor que habita em Sião para louvarmos em concórdia o Senhor que habita na Igreja. “Anunciai entre as nações as suas maravilhas”. Foi feito e não cessará de se fazer.
13 13“Pois se lembrou, pedindo conta de seu sangue”. Constitui certa resposta dos enviados a evangelizar àquela ordem: “Anunciai entre as nações as suas maravilhas”, que diriam: “Senhor, quem creu naquilo que ouvimos” (Is 53,1)? e ainda: “Por tua causa somos entregues à morte todos os dias” (Sl 43,22). A continuação é bem adequada. Declara que os cristãos que hão de morrer na perseguição colherão muitos frutos na eternidade, “pois se lembrou, pedindo conta de seu sangue”. Mas qual a razão de preferir dizer: “seu sangue”? Supõe-se que alguém mais ignorante e com fé menor perguntasse: Como anunciarão, se a infidelidade dos gentios se enfurecerá contra eles? E obtivesse a resposta: “Pois se lembrou, pedindo conta de seu sangue”, isto é, virá o último juízo e então se manifestará a glória dos mortos e o castigo dos assassinos. “Lembrou-se”; ninguém pense ter sido usada tal expressão por haver esquecimento em Deus. Todavia, como somente após longo tempo se dará o juízo, foi empregada a palavra conforme o modo de pensar dos fracos, que julgam ter Deus se esquecido, uma vez que não atende tão depressa como eles querem. A eles também se dirige a frase seguinte: “E não se esqueceu do clamor dos pobres”, isto é, não se esqueceu, como pensais. Tendo ouvido dizer: “Lembrou-se”, replicariam: Portanto, ele se esquecera. Diz então o salmista: “Não se esqueceu do clamor dos pobres”.
14 14.15Pergunto, então: Qual o clamor dos pobres que Deus não esquece? Será este: “Tem compaixão de mim, Senhor; vê a minha humilhação, obra dos meus inimigos?” Por que motivo não disse: Tem compaixão de nós, Senhor, vê a nossa humilhação, obra de nossos inimigos, como se fossem muitos pobres a clamar, mas suplica como se fosse um apenas: “Tem compaixão de mim, Senhor?” Acaso não seria porque interpela em favor dos santos Cristo, o único que, antes era rico e se fez pobre por nós? (2Cor 8,9), o mesmo que diz: “Tu me retiras das portas da morte para que eu possa anunciar todos os teus louvores às portas da filha de Sião?” É exaltado o homem, não só aquele que é assumido, a Cabeça da Igreja, mas também qualquer um de nós, os demais membros. É exaltado, eliminando os maus desejos, que são as portas da morte, porque levam à morte. A morte, porém, já se encontra no próprio gozo, quando alguém obtém o objeto de seu desejo, para a própria perdição. A raiz de todos os males é a cobiça (1Tm 6,10); é, por conseguinte, a porta da morte, porque a viúva que vive nos prazeres está morta (ib. 5,6). Chega-se a esses prazeres pelos desejos, que são as portas da morte. São, ao invés, portas da filha de Sião os esforços louváveis pelos quais se alcança a visão da paz na santa Igreja. Nessas portas são bem anunciados os louvores de Deus, e não se lançam as coisas santas aos cães, nem se atiram pérolas aos porcos (Mt 7,6). Os cães preferem ladrar com pertinácia a procurar com empenho os porcos, mas preferem não ladrar, nem procurar revolver-se no lodo dos prazeres. Quando, porém, os louvores de Deus são anunciados através de boas obras, dá-se aos que pedem, manifesta-se aos que buscam e abre-se aos que batem. Ou talvez seriam portas da morte os sentidos corporais e os olhos, que se abriram para o homem no momento em que provou do fruto da árvore proibida (Gn 3,7); ao invés, elevam-se acima deles aqueles aos quais se diz que não atendam às coisas que se veem, mas às que não se veem, pois as coisas que se veem são temporais e as que não se veem são eternas (2Cor 4,18). Portas da filha de Sião são talvez os sacramentos e os elementos da fé, que se abrem aos que batem, querendo chegar aos segredos do Filho? Os olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou o que Deus tem preparado para aqueles que o amam (1Cor 2,9). Até aqui o clamor dos pobres, que o Senhor não esqueceu.
15 16E continua: “Exultarei pela tua salvação”, isto é, com felicidade serei cercado por tua salvação, nosso Senhor Jesus Cristo, virtude e sabedoria de Deus (ib. 1,24). Por conseguinte, a Igreja afirma ser na terra afligida, mas salva com a mesma esperança. Enquanto foi oculto o juízo do Filho, ela exclama com a mesma esperança: “Exultarei pela tua salvação”, porque agora é oprimida, cercada pelos gritos, a violência ou o erro dos gentios. “Afundaram-se as nações na corrupção que escavaram”. Note-se como ao pecador é reservado castigo proporcional às suas obras; e os que quiseram perseguir a Igreja se afundaram na corrupção que julgavam causar. Pois, visavam a matar os corpos, enquanto eles mesmos morriam espiritualmente. “Na armadilha que ocultaram, prenderam-se-lhes os pés”. Armadilha oculta é o pensamento fraudulento. Por pés da alma, com razão, se entende o amor, que no caso de ser mau chama-se cobiça ou luxúria, e se for reto, dileção ou caridade. Move-se a alma pelo amor, lugar para o qual tende. Lugar para a alma não é o espaço, ocupado pelas formas corporais, mas o prazer, onde ela se alegra de ter chegado pelo amor. O prazer pernicioso segue a cobiça, o deleite frutuoso segue a caridade. Daí ser a cobiça denominada raiz (1Tm 6,10). A raiz é certamente os pés da árvore. Também a caridade foi denominada raiz quando o Senhor falou das sementes que secam nos lugares pedregosos, com o calor do sol, porque não têm raízes profundas (Mt 13,5). Com isso, refere-se àqueles que se alegram por receber a palavra da verdade, mas cedem às perseguições, às quais se resiste somente pela caridade. E o Apóstolo declara: “A fim de que, arraigados e fundados na caridade, possais compreender” (Ef 3,17). Por isso, os pés dos pecadores, isto é, o amor é apanhado na armadilha que eles ocultam, porque ao se seguir o deleite à ação fraudulenta, e Deus os entregar à concupiscência de seu coração (Rm 1,24), já os aprisiona o prazer, de sorte que não têm coragem de romper com aquele amor e entregar-se a ocupações úteis. Se o tentarem, afligese-lhes a alma, como se quisessem tirar o pé de grilhões. Sucumbindo à dor, não querem abandonar os prazeres perniciosos. “Na armadilha que ocultara”, portanto, isto é, no desígnio fraudulento, “prenderam-se-lhes os pés”, a saber, o amor que através de fraudes chega a uma vã alegria, que leva à dor.
16 17“O Senhor dá-se a conhecer quando faz justiça”. Os juízos de Deus são os seguintes: da tranquilidade de sua bem-aventurança, ou dos segredos da sabedoria, onde são recebidas as almas dos bem-aventurados, ele não envia ferro, feras, ou coisa semelhante para atormentar os pecadores. Mas, como são torturados e como o Senhor faz justiça? “O pecador ficou enlaçado nas obras de suas mãos”.
17 18Aqui se intercala: “Cântico de pausa”. (Diapsalma). A meu ver, trata-se de alegria oculta, por causa da separação atual, não local, mas afetiva entre pecadores e justos, como os grãos se separam da palha, ainda na eira. Segue-se: “Voltem-se os pecadores para o inferno”, isto é, sejam entregues às suas próprias mãos, enquanto são poupados, e embaracem-se no deleite mortífero. “Todos esses povos que se esquecem de Deus”, porque como não tentaram conhecer a Deus, este os entregou a um sentimento depravado (Rm 1,28).
18 19“Mas o pobre não será para sempre esquecido”. Agora parece esquecido, refletindo-se que os pecadores estão repletos de felicidade neste mundo, e os justos estão mergulhados em trabalhos; mas “a paciência dos pobres não será frustrada eternamente”. Por este motivo, agora é preciso que os bons, já distintos pelos propósitos, tenham paciência de suportar os maus, até que sejam também separados no último juízo.
19 20.21“Senhor, ergue-te, não prevaleça o homem”. Implora-se pelo juízo futuro, mas antes que venha, diz-se: “Perante ti sejam julgadas as nações”, isto é, ocultamente, diante de Deus, conforme entenderam uns poucos, santos e justos. “Constitui, Senhor, um legislador sobre eles”. Parece alusão ao Anticristo, do qual diz o Apóstolo: “Quando se manifestar o homem de pecado” (2Ts 2,3). “E saibam todos que são apenas homens”. Os que não quiseram ser libertados pelo Filho de Deus e pertencer ao Filho do homem e ser filhos dos homens, isto é, novos homens, sirvam ao homem, isto é, ao velho homem, “porque são apenas homens”.
2ª PARTE
20 1.3Como se acredita que o Anticristo há de chegar a tal cúmulo de vanglória e tanto lhe será permitido fazer contra os homens e os santos de Deus que alguns fracos julgarão descuidar-se Deus dos acontecimentos humanos, o salmista após uma pausa apresenta vozes plangentes a perguntarem por que o juízo é adiado: “Ó Senhor, por que ficas assim tão longe?” Em seguida, quem assim perguntou, como se de repente entendesse, ou soubesse, mas tivesse interrogado para ensinar, prossegue: “E descuras na ocasião oportuna, na tribulação”, isto é, oportunamente desdenhas e mandas tribulações para acender nas almas o desejo de tua vinda. Aos muitos sedentos é mais agradável aquela fonte de vida; por isso o salmista insinua o desígnio de Deus de usar de delongas, dizendo: “Enquanto o ímpio se ensoberbece, abrasase o pobre”. É admirável e real nas crianças de futuro promissor com que empenho se inflama o desejo de viver bem quando elas se comparam aos pecadores. Este mistério também se realiza ao permitir Deus que haja hereges. Não que os próprios hereges o tenham em vista, e sim que a divina Providência assim dispõe relativamente a seus pecados. Ela cria a luz e a põe em ordem, mas somente coloca no devido lugar as trevas (Gn 3,4), para que, em contraste, a luz se torne mais agradável. Igualmente em confronto com os hereges é mais aprazível a descoberta da verdade. Por meio de tal confronto, manifestam-se aos homens os que agradam a Deus e só dele são conhecidos.
21 “São colhidos nos pensamentos que urdiram”, isto é, os maus pensamentos deles transformam-se em vínculos. Mas por que se tornam vínculos? “Porque o pecador se gloria nos desejos de sua alma”. A língua dos aduladores prende as almas nos pecados. É aprazível a ação que não receia encontrar repreensor, e até acha quem elogie. “E o iníquo se bendiz”. Daí serem colhidos nos pensamentos que urdiram.
22 4“O pecador irritou o Senhor”. Ninguém felicite o homem próspero em seu caminho, que não encontra quem castigue seus pecados e sim quem os elogie; nisto consiste a maior ira do Senhor. O pecador, pois, irritou o Senhor a ponto de suportar esse castigo, a saber, o de não sofrer os flagelos da correção. “O pecador irritou o Senhor; na intensidade de sua cólera nada exigirá”. Muito se encoleriza quando nada exige, parece esquecer e não dar atenção aos pecados, deixando que sejam obtidas riquezas e honras, por meio de fraudes e crimes. Sucederá assim principalmente ao Anticristo, que aparentará diante dos homens ser feliz, a ponto de ser considerado um deus. Mas as consequências demonstram como é grande tal ira de Deus.
23 5“Não há Deus diante dele. Seus caminhos são maculados em todo tempo”. Quem sabe em que consiste a alegria ou o regozijo da alma, avalia o grande mal que há em ser abandonado pela luz da verdade. Os homens consideram mal grave a cegueira dos olhos corporais, mediante a qual a luz material se apaga. Que castigo enorme, portanto, não é o daquele que gozando de prosperidade no meio de seus pecados, chega ao ponto de não ter mais Deus presente e maculam seus caminhos em todo o tempo, isto é, imundos são seus pensamentos e planos! “Teus juízos estão longe de sua face”. Consciente de sua maldade, parece-lhe não sofrer castigo algum e acredita que Deus não julga. Assim os juízos de Deus estão longe de sua face, sendo esta a maior condenação. “Dominará sobre todos os seus adversários”. Engana-se de que haverá de vencer todos os reis e obter sozinho o reino; então também o Apóstolo anuncia a seu respeito: “Tomará lugar no templo de Deus, levantando-se contra tudo o que leva o nome de Deus ou o que se adora” (2Ts 2,4).
24 6O pecador, entregue à concupiscência de seu coração e destinado à última condenação, chegará por meio de artifícios malignos ao ápice do domínio vão e inútil. Continua o salmista: “Diz no seu coração: Não serei abalado de geração em geração. Nada de mal me acontecerá”, isto é, minha fama e meu nome não passarão desta geração aos pósteros, a não ser que consiga por artifícios malignos principado tão excelso que os pósteros não se possam calar. O ânimo perdido, carente de qualidade e alheio à luz da justiça, por meio de artifícios malignos esforça-se por ter acesso a fama tão duradoura que seja celebrado até pelos pósteros. Assim, não podendo tornar-se conhecidos pelo bem que fariam, desejam que ao menos deles falem mal, contanto que seu nome seja largamente divulgado. A meu ver, é isto que significa: “Não serei abalado de geração em geração. Nada de mal me acontecerá”. Existe outra interpretação. Se o ânimo fútil e mergulhado no erro julga que não lhe é possível passar da geração mortal à eternidade, a não ser através de artifícios malignos, conforme, de fato, se narra sobre Simão (At 8,9-23), que pensou poder alcançar o céu com artes malignas e passar, por meio da magia, da geração humana à geração divina, não é de admirar que também aquele homem de pecado, que há de consumar toda maldade e impiedade, iniciada pelos pseudoprofetas, e fará tantos portentos que enganaria, se possível, até os eleitos, há de dizer no coração: “Não serei abalado de geração em geração. Nada de mal me acontecerá”.
25 7“Sua boca está repleta de maldição, de amargor e de dolo”. Grande maldição é desejar obter o céu por artifícios tão nefandos e adquirir tais méritos para alcançar a habitação eterna. Mas, desta maldição está repleta a sua boca. Tal ambição, porém, não produzirá efeito. Em sua boca, valerá apenas para perdê-lo, por ter ousado prometer a si mesmo tais coisas com amargor e dolo, isto é, com ira e ciladas, fazendo uma multidão aderir a seu partido. “Sob sua língua há trabalho e dor”. Nada mais laborioso do que a iniquidade e a impiedade. Trabalho acompanhado de dor, porque não se trabalha apenas inutilmente, mas ainda para a própria ruína. Trabalho e dor referente ao que o pecador disse em seu coração: “Não serei abalado de geração em geração. Nada de mal me acontecerá”. Por isso: “Sob sua língua”; não se lê: na língua, porque tudo isso é pensado em silêncio, enquanto o pecador falará aos homens de modo bem diverso, para ter a aparência de bom, justo e filho de Deus.
26 8“Põe-se de emboscada com os ricos”. Que ricos, senão aqueles que serão cumulados de bens neste mundo? Daí a palavra: Pôs-se de emboscada com eles, porque ostentará a falsa felicidade deles, para enganar os homens. Os possuidores de vontade depravada, que anseiam por tal felicidade e não buscam os bens eternos, caem nos seus laços. “Em esconderijos para matar o inocente” porque não se entende com facilidade o que é desejável e o que há de ser evitado. Matar o inocente, porém, é transformar o inocente em malfeitor.
27 9“Seus olhos espreitam o pobre”. Perseguirá princi-palmente os justos, dos quais se disse: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus” (Mt 5,3). “Põe-se de emboscada em esconderijos, como o leão em sua caverna”. Chama de leão na caverna aquele em quem atuam a força e o dolo. A primeira perseguição da Igreja foi violenta. Os cristãos eram coagidos a sacrificar, por meio de proscrições, tormentos, matanças. A segunda, agora praticada por quaisquer hereges e falsos irmãos é fraudulenta. Resta a terceira, futura, suscitada pelo Anticristo, a mais perigosa de todas, porque será violenta e fraudulenta. Empregará força no governo, dolo nos milagres. À força relaciona-se a palavra; “leão” ao dolo, “em sua caverna”. Novamente se repetem as mesmas coisas, em ordem inversa: “Arma ciladas para arrebatar o pobre”, relativamente ao dolo. A continuação: “Para arrebatar o pobre, atraindo-o” pertence à violência. “Atraindo-o” significa arrasta-o para si, afligindo-o com todos os tormentos possíveis.
28 10Também os dois versículos seguintes têm idêntico significado. “Ele o humilhará na sua rede”, é o dolo. “Curvar-se-á e cairá, quando se apossar do pobre” é a violência. A rede exprime bem as emboscadas; o domínio, porém, claramente insinua o terror. E diz com razão: “Ele o humilhará na sua rede”, pois ao começar aqueles prodígios, quanto mais admiráveis parecerem aos homens, tanto mais os santos de então serão desprezados e tidos por nada, porque aquele ao qual resistem com a justiça e a inocência parecerá superá-los por meio de feitos prodigiosos. Mas “curvar-se-á e cairá, quando se apossar do pobre”, isto é, ao infligir algum suplício aos servos de Deus, que lhe resistem.
29 11.12Donde se conclui que se inclinará e cairá? “Porque disse no coração: Deus se esqueceu, virou o rosto para não ver jamais”. Esta inclinação e queda são as mais infelizes, a saber, dão-se quando a alma humana de certo modo prospera em meio a suas iniquidades e julga estar sendo poupada, enquanto efetivamente está obcecada e reservada para o último e oportuno castigo, do qual já agora se fala: “Levanta-te, Senhor Deus, ergue a mão”, isto é, manifeste-se o teu poder. Mais acima dissera: “Senhor, ergue-te. Não prevaleça o homem. Perante ti sejam julgadas as nações”, a saber, nos esconderijos, visíveis somente a Deus. Assim aconteceu quando chegaram os ímpios a uma felicidade que, na opinião dos homens, é grande. Sobre ele é constituído um legislador, conforme merecem e do qual se declara: “Constitui, Senhor, um legislador sobre eles, e saibam todos que são apenas homens”. Agora, após o oculto castigo e a vingança, diz-se: “Levanta-te, Senhor Deus, ergue a mão”, não ocultamente, mas em glória bem evidente. “Não te esqueças do pobre para sempre”, isto é, como julgam os ímpios, que afirmam: “Deus se esqueceu, voltou o rosto para não ver jamais”. Dizem que Deus não vê jamais aqueles que asseguram não cuidar ele das coisas humanas e terrenas. De certa maneira, a terra é o fim das coisas, por constituir o último elemento, no qual os homens trabalham segundo uma ordem, sem saberem, contudo, o sentido de suas labutas, o que pertence especialmente aos segredos do Filho. A Igreja, portanto, lutando no tempo, qual nave no meio de vagalhões e procelas, desperta o Senhor que parece adormecido, a fim de que ordene aos ventos e volte a bonança. Diz, portanto: “Levanta-te, Senhor Deus, ergue a mão, não te esqueças do pobre para sempre”.
30 13.14Por isso, entendendo já ser manifesto o juízo, perguntam exultantes: “Por que razão o ímpio desafiou a Deus?”, isto é, que lhe adiantou cometer tantos crimes? “Disse no coração: Não há de exigir”. Prossegue: “Tu vês. Consideras o trabalho e a ira, para tomá-los em tuas mãos”. O sentido depende da inflexão da voz; se for errada, fica obscuro. O ímpio diz no coração o seguinte: Deus não há de punir, como se Deus levasse em conta o trabalho e a ira que terá, para tomá-los nas mãos; isto é, como que receia o trabalho e a irritação e por isso poupa-os, a fim de não lhe ser oneroso o castigo deles, ou para não se comover tomado pela raiva impetuosa, conforme fazem muitos que dissimulam a punição para não se incomodarem, nem se irritarem.
31 “A ti o pobre se entrega confiante”. Por isso é pobre, isto é, desprezou os bens temporais do mundo, de sorte que somente tu sejas a sua esperança. “És do órfão o protetor”, daquele cujo pai morreu, a saber, este mundo, pelo qual foi gerado carnalmente e já pode dizer: “O mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,14). Deus se faz o pai destes órfãos. O Senhor ensina aos discípulos a se tornarem órfãos, dizendo-lhes: “A ninguém na terra chameis Pai” (Mt 23,9). Ele mesmo foi o primeiro a dar exemplo, dizendo: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos” (Mt 12,48)? Daí procurarem alguns hereges perniciosos asseverar que ele não teve mãe”. Não veem que se eles se apegam à letra, em consequência nem os discípulos tiveram pais, porque do mesmo modo que disse: “Quem é minha mãe? ensinou aos discípulos: “A ninguém na terra chameis Pai” (Mt 23,9).
32 15.16“Quebra o braço do pecador e do malvado”, daquele de quem acima se dizia: “Dominará sobre todos os seus inimigos”. Chamou de braço, portanto, o seu poder, contrário ao poder de Cristo, a respeito do qual se declara: “Levanta-te, Senhor Deus, ergue a mão. Procurar-se-á o seu pecado e não se encontrará”, isto é, será julgado pelo seu pecado e perecerá por causa dele. De que nos admirarmos se continua: “O Senhor reinará eternamente e nos séculos dos séculos; desaparecereis, ó nações, de sua terra”? Nações, em lugar de pecadores e ímpios.
33 17“O Senhor atendeu ao desejo dos pobres”, desejo em que ardiam, nas angústias e tribulações deste mundo, aspirando pelo dia do Senhor. “Teus ouvidos captaram a preparação de seu coração”. Sobre tal preparação do coração canta-se em outro salmo: “Meu coração está preparado, ó Deus, está preparado o meu coração” (Sl 56,8). Afirma o Apóstolo a respeito dela: “E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,25). Normalmente não se entenda por ouvido de Deus um membro corporal, mas a potência pela qual atende. Assim, quaisquer que sejam os membros nomeados e que em vós são visíveis e corpóreos, havemos de entender o poder das operações. Não é preciso repeti-lo muitas vezes. Não é lícito pensar num órgão corpóreo. O Senhor Deus ouve a disposição do coração e não o som da voz.
34 18“Para julgar em favor do órfão e do oprimido”, não daquele que se adapta a este mundo, nem do soberbo. Uma coisa é julgar o órfão e outra julgar a seu favor. Julga o órfão mesmo quem o condena; julga em seu favor quem profere a sentença em benefício dele. “A fim de que o homem não pretenda se engrandecer demais sobre a terra”. São os homens aqui indicados: “Constitui, Senhor, um legislador sobre eles, e saibam os povos que são apenas homens”. Mas mesmo o homem que nessa passagem se entende estar colocado acima deles será aquele do qual se diz agora: “A fim de que o homem não pretenda se engrandecer demais sobre a terra”, quando o Filho do homem vier julgar em favor do órfão, que despiu o velho homem. Assim exalta de certo modo o Pai.
35 Depois, dos segredos do Filho, portanto, de quem muito se falou neste salmo, virão os feitos manifestos do Filho, mencionados ligeiramente no fim do mesmo salmo. O título trata do assunto da maior parte. O próprio dia da vinda do Senhor pode ser incluído nos segredos do Filho, embora a futura presença do Senhor haja de ser manifesta. Daquele dia foi declarado que ninguém o conhece, nem os anjos, nem as virtudes, nem o filho do homem (Mt 24,36). O que haverá de mais oculto do que o dia que se disse desconhecido do próprio juiz, não quanto ao seu conhecimento, mas por não dever transmiti-lo? Quanto aos segredos do Filho, se alguém não quiser subentender o Filho de Deus, mas julgue ser o próprio Davi (a cujo nome o saltério todo é atribuído, sendo os salmos efetivamente denominados davídicos), escute como as palavras são dirigidas ao Senhor: “Filho de Davi, tem compaixão de nós!” (Mt 20,30); e à maneira desta passagem, entenda ser também o próprio Cristo Senhor, cujos segredos servem de título ao presente salmo. É igualmente assim que anuncia o anjo: “Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai” (Lc 1,32). A interrogação do mesmo Senhor aos judeus concorda com este modo de entender: “Se Cristo é filho de Davi, como este sob inspiração do Espírito chama-o Senhor, dizendo: O Senhor disse a meu Senhor: Senta-te a minha direita, até que eu ponha teus inimigos por escabelo de teus pés” (Mt 22,44)? Cristo o disse a ignorantes, que embora esperassem o Cristo vindouro, só esperavam um homem e não a virtude e sabedoria de Deus. Ele, portanto, aqui ensina a fé verdadeira e genuína, isto é, que ele é o Senhor do rei Davi, enquanto Verbo que no princípio era Deus junto de Deus e tudo foi feito por ele (Jo 1,1); e filho, enquanto nasceu da raça de Davi segundo a carne (Rm 1,3). Não declarou: Cristo não é filho de Davi. Mas disse: Se já sabeis que é seu filho, aprendei como é seu Senhor. Se aceitais que Cristo é filho do homem, e portanto filho de Davi, não recuseis crer que é Filho de Deus e por isso seu Senhor.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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