Comentário ao Salmo 8 – Santo Agostinho

1 1“Para o fim. Por causa dos lagares. Salmo de Davi”. Nada no texto do presente salmo parece tratar de lagares, que constam do título. Daí se conclui que frequentemente na Escritura uma só e mesma coisa vem sugerida por muitas e várias comparações. Lagares assim podem representar as igrejas, do mesmo modo que eira significa igreja. Na eira, ou nos lagares, de outra coisa não se cuida senão de limpar os frutos, tirando os invólucros, que haviam sido necessários para brotarem, crescerem, e chegarem à maturidade da messe ou à vindima. Esses invólucros ou cascas são retirados, a saber: do trigo as palhas na eira, e das uvas no lagar as grainhas. Assim nas igrejas se separam, por amor espiritual e servindo de intermediários, os ministros de Deus, os bons da multidão dos mundanos, congregados com aqueles que precisavam dessa multidão para nascerem e se tornarem capazes de receber a palavra divina. Trata-se, pois, de se separar os bons dos maus, não pelo lugar, mas pelo afeto, embora vivam juntos nas igrejas pela presença corporal. Virá, porém, o tempo em que se recolherão os grãos de trigo nos celeiros e os vinhos nas adegas. “Recolherá o trigo em seu celeiro; a palha, porém, ele a queimará num fogo inextinguível” (Lc 3,17). Ainda é possível entender o mesmo, por meio da seguinte comparação: Recolherá o vinho nas adegas, e lançará as grainhas aos animais, de sorte que o ventre dos animais sirva de ponto de comparação para as penas da geena.

2 Há outro sentido para a expressão lagares, contanto que não nos afastemos do significado de igrejas. As uvas seriam o Verbo divino. O Senhor é chamado também cacho de uvas, colhido na terra da promissão pelos exploradores enviados pelo povo de Israel, que o trouxeram suspenso do madeiro, à guisa de um crucificado (Nm 13,24). Quando o Verbo divino, para uma enunciação, emprega o som da voz, querendo atingir os ouvintes, neste som, qual grainha, está encerrado o entendimento, o vinho. E assim, esta espécie de uva atinge os ouvidos, qual em dorna de lagar. Ali se faz a separação, de maneira que o som chega ao ouvido e seu sentido é percebido pela memória dos ouvintes, como se fosse uma cuba; de lá passa para a disciplina dos costumes e os hábitos mentais, como da cuba à adega onde, se o vinho não fermentar devido a alguma negligência, fica melhor com o tempo. Fermentou, de fato, nos judeus, e foi este vinagre (Jo 19,29) que deram ao Senhor para beber. Quanto ao vinho que o Senhor há de beber com os seus santos, no reino de seu Pai, produto das vinhas do Novo Testamento (Lc 22,18), tem de ser muito delicioso e forte.

5 3“Da boca das crianças e lactentes tiraste um louvor perfeito, por causa de teus inimigos”. Por crianças e lactentes tomo apenas as mencionadas pelo Apóstolo: “Dei-vos a beber leite, como a criancinhas em Cristo, e não alimento sólido” (1Cor 3,1.2). Eram representadas pelas que precediam o Senhor com louvores, a respeito das quais testemunhou o Senhor, quando, ao pedirem os judeus que as repreendesse, respondeu: “Nunca lestes que: Da boca das crianças e lactentes tirastes um louvor perfeito” (Mt 21,16)? Com justeza não disse: Tiraste um louvor, e sim: “Tiraste um louvor perfeito”. Nas igrejas existem os que já não bebem leite, mas tomam alimento sólido. Acerca destes declara o Apóstolo: “É realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos” (1Cor 2,6). Mas as igrejas não se perfazem apenas com esses tais, porque se fossem somente eles, não se cuidaria do bem do gênero humano. Vela-se por estes, porém, quando os ainda incapazes do conhecimento das coisas espirituais e eternas se nutrem da fé na história temporal, realizada em prol de nossa salvação, após a atuação dos patriarcas e dos profetas, pela excelsa Virtude e Sabedoria de Deus e também pelo mistério da natureza humana assumida. Nesta fé está a salvação de cada fiel. Este, aceitando tal autoridade, cumpra os preceitos e assim purificado, arraigado e baseado na caridade, possa com os santos (uma vez que não é mais criancinha nutrida com leite, mas jovem sustentado com alimento sólido) correr, compreender qual seja a largura, o comprimento, a altura e profundidade, e conhecer enfim a supereminente ciência da caridade de Cristo (Ef 3,18.19).

6 “Da boca das crianças e lactentes tiraste um louvor perfeito, por causa de teus inimigos”. Devemos tomar em geral por inimigos desta economia de Jesus Cristo, de Jesus Cristo crucificado, todos aqueles que impedem o homem de acreditar em coisas desconhecidas e prometem uma ciência certa, como fazem todos os hereges e os que a superstição dos pagãos denomina filósofos. Não digo que seja censurável a promessa de ciência, mas que eles julguem desprezíveis os degraus salutíferos e necessários da fé, pelos quais importa subir a uma segura meta, que só pode ser eterna. Evidencia-se com isto não terem nem mesmo a ciência que prometem, depreciando a fé, porque ignoram esses degraus tão úteis e necessários. “Da boca das crianças e lactentes nosso Senhor tirou um louvor perfeito”, mandando primeiro dizer pelo profeta: “Se não acreditardes, não entendereis” (Is 7,9, seg. os LXX) e ele mesmo, em pessoa, disse: “Felizes os que não viram e hão de crer” (Jo 20,29). “Por causa de teus inimigos”, contra os quais também se diz: “Eu te louvo, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Disse: aos sábios, não porque sejam sábios, mas porque julgam sê-lo. “Para abateres o inimigo e o defensor”. Quem senão o herege? Este é inimigo e defensor, porque ao atacar a fé cristã, parece defendê-la. Embora igualmente se possa bem aplicar a expressão inimigos e defensores aos filósofos deste mundo, visto que o Filho de Deus é a Virtude e a Sabedoria de Deus, que ilumina todo aquele que se faz sábio pela verdade. Declaram-se eles amantes da verdade e por isso são denominados filósofos. Igualmente por esta razão parecem defendê-la, apesar de serem seus inimigos, uma vez que não cessam de induzir a outros a superstições prejudiciais, que cultuam e veneram os elementos do mundo.

7 4“Quando contemplo os céus, lavor de teus dedos”. Lemos que pelo dedo de Deus foi gravada a Lei e dada por meio de Moisés, seu santo servo (Ex 31,18; Dt 9,10); muitos entendem por dedo de Deus o Espírito Santo. Por isso, se julgarmos com acerto serem os dedos de Deus os seus ministros, cheios do Espírito Santo, por causa do mesmo Espírito que nele opera, uma vez que compuseram para nós toda a divina Escritura, interpretaremos aqui de modo adequado como céus os livros de ambos os Testamentos. A respeito do próprio Moisés, os magos do faraó, tendo sido por ele vencidos, disseram: “Isto é o dedo de Deus” (Ex 8,15). Embora tenha sido escrito acerca do céu etéreo: “Os céus se enrolarão como um livro” (Is 34,4), todavia, de modo conveniente, por comparação alegórica os livros são denominados céus. “Quando contemplo os céus, lavor de teus dedos”, isto é, verei e entenderei as Escrituras, que escreveste por obra do Espírito Santo, através de teus ministros.

8 É cabível, portanto, considerar os céus supramen-cionados como sendo os próprios livros, ao se enunciar: “Porque se elevou a tua magnificência acima dos céus”, de modo que o sentido completo seja o seguinte: Porque a tua magnificência se elevou acima dos céus; tua magni-ficência, de fato, excede as palavras das Escrituras. “Da boca das crianças e lactentes tiraste um louvor perfeito”, de sorte que começassem pela fé nas Escrituras os que ambicionam chegar ao conhecimento de tua magnificência, mais elevada que as Escrituras, por ultrapassar e superar a mensagem de todas as palavras e línguas. Deus deixou as Escrituras ao nível das crianças e lactentes, conforme se canta em outro salmo: “Inclinou o céu e desceu” (Sl 17,10). E o fez por causa dos inimigos, que em sua loquacidade soberba são inimigos da cruz de Cristo, mesmo quando proferem alguma verdade; mas então não podem ser úteis às crianças e lactentes. Assim se arruína o inimigo e defensor, que aparenta defender a sabedoria ou ainda o nome de Cristo; contudo deste grau da fé, vem a atacar a verdade, que não lhe custa prometer. Fica provado, em consequência, que ele não a possui, porque ataca a escada da fé, ignorando como subi-la. Daí, portanto, eliminar-se o cego e temerário inimigo e defensor, que se apresenta como garantia da verdade, se mostrarmos os céus como obra das mãos de Deus, entendendo as Escrituras e levando-as até à lenta compreensão das crianças. Estas, através da humildade da fé na história, realizada no tempo, depois de bem nutridas e fortificadas por aquilo que as confirma, são elevadas pelas Escrituras à sublimidade do entendimento das coisas eternas. Estes céus, a saber, estes livros, são obra dos dedos de Deus. Foram compostos por inspiração do Espírito Santo aos santos. Aqueles outros, que cuidaram mais de sua própria glória do que da salvação dos homens, falaram sem possuírem o Espírito Santo, onde se acham as entranhas da misericórdia de Deus.

9 “Quando contemplo os céus, lavor de teus dedos, a luz e as estrelas que criaste”. A lua e as estrelas foram colocadas nos céus, porque a Igreja universal, frequen-temente comparada à lua, e as Igrejas particulares, às quais, a meu ver, alude o nome de estrelas, acham-se colocadas nas próprias Escrituras, designadas pelo vocábulo céus. Oportunamente vamos considerar por que a lua significa exatamente a Igreja, em outro salmo, que traz: “Os pecadores armaram o arco, para alvejarem, sob uma lua obscura, os retos de coração” (Sl 10,3).

10 5“Que é o homem, para dele te lembrares? Ou o filho do homem para o visitares?” Pode-se perguntar qual a diferença entre homem e filho do homem. Se não houvesse diferença, não se colocaria “homem” ou “filho do homem”, com a disjuntiva. Se estivesse escrito: Que é o homem para dele te lembrares, e o filho do homem para o visitares? pareceria repetição da palavra “homem”. Aqui, porém, como se encontra: “homem” ou “filho do homem”, insinua-se evidentemente que há diferença. Guarde-se bem o seguinte: todo filho do homem é homem, embora nem todo homem possa ser entendido como filho do homem. Adão, em verdade, é homem, mas não filho de homem. Daí, pois, se observa e distingue qual a diferença nesta passagem entre homem e filho do homem. Os portadores da imagem do homem terreno, que não é filho de homem, são chamados homens; os portadores da imagem do homem celeste (1Cor 15,49) melhor se chamam filhos dos homens. Aquele é denominado homem velho; este, homem novo (Ef 4,22.24). Mas, o novo nasce do velho, porque a regeneração espiritual começa pela mudança da vida terrena e secular; por esta razão, este se denomina filho do homem. Nesta passagem, portanto, homem é o terreno e filho do homem, o celeste. Aquele está muito distanciado de Deus, este se acha presente diante de Deus, que por isso se lembra daquele, como quem está distante; a este, presente, visita, iluminando-o com o seu rosto: “A salvação está longe dos pecadores” (Sl 118,155) e: “Está assinalada em nós, Senhor, a luz de tua face” (Sl 4,7). Assim, em outro salmo, associa homens e jumentos, não por atual iluminação interior, mas por multiplicação da misericórdia de Deus, como sua bondade se estende até as coisas ínfimas, diz o Senhor que os homens se salvam com os jumentos, porque a salvação dos homens carnais é carnal, como a dos animais. Mas, separa os filhos dos homens dos homens que associou aos animais. De modo absolutamente mais sublime, por iluminação da própria verdade e certa inundação da água vital, declara que se tornarão bem-aventurados. O salmista diz o seguinte: “Salvaste os homens e os animais, Senhor, assim como se multiplicou a tua misericórdia, ó Deus. Os filhos dos homens se abrigam à sombra de tuas asas. Inebriar-se-ão na abundância de tua casa. Na torrente de tuas delícias lhes dás de beber. Pois em ti está a fonte da vida e em tua luz contemplamos a luz. Estende a tua misericórdia para os que te conhecem” (Sl 35,7-11). O Senhor, pois, multiplicando sua misericórdia, lembra-se do homem como dos animais. A multíplice misericórdia atinge até os que estão longe. Visita, porém, o filho do homem, abrigado à sombra de suas asas e a ele estende a misericórdia; em sua luz oferece-lhe a luz, desaltera-o em suas delícias e o inebria com a abundância de sua casa, a fim de que esqueça as tribulações e erros da vida passada. A penitência do homem velho gerou em dores e gemidos a este filho do homem, isto é, o homem novo. Este, apesar de novo, ainda se denomina carnal, porque se nutre de leite. Diz o Apóstolo: “Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais”; e mostrando que já foram regenerados, prossegue: “Como a crianças em Cristo, deivos a beber leite, não alimento sólido”. Se recai na vida antiga, o que acontece com frequência, ouve a censura de que é homem: “Não sois carnais e não vos comportais de maneira meramente humana” (1Cor 3,1-3)?

11 6.7O filho do homem, portanto, foi visitado; em primeiro lugar o próprio homem-Senhor, nascido da Virgem Maria. Dele se afirma por causa da fraqueza da carne, que a Sabedoria de Deus se dignou assumir, e da humilhação da paixão: “Pouco abaixo dos anjos o colocaste”. Mas acrescenta-se a glorificação da ressurreição e subida ao céu: “Coroando-o de glória e de honra. Deste-lhe poder sobre as obras de tuas mãos”. Apesar de serem os anjos obra das mãos de Deus, aceitamos a verdade de ter sido o Filho unigênito estabelecido até acima dos anjos, mas ouvimos e acreditamos ter sido colocado pouco abaixo dos anjos, pela humildade da geração carnal e da paixão.

12 8.9“Tudo lhe submeteste aos pés”. Nada excetua, dizendo: “Tudo”. E não é lícito entender de maneira diferente, pois ordena o Apóstolo que assim se acredite, dizendo: “Excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu” (1Cor 15,27), e emprega o mesmo testemunho do salmo da epístola aos Hebreus (Hb 2,8), onde procura dar a conhecer ter sido tudo submetido a nosso Senhor Jesus Cristo, sem exceção alguma. No entanto, não parece importante acrescentar: “Ovelhas e bois todos e ainda os animais do campo; as aves do céu e os peixes do mar. Tudo que transita pelos roteiros do mar”. Tem-se a impressão de que, omitindo as Virtudes e Potestades celestes e todos os exércitos dos anjos, e ainda os próprios homens, só lhe submeteu os animais. A não ser que ovelhas e bois sejam as almas santas, ou as que frutificam na inocência, ou ainda as que trabalham para que a terra frutifique, isto é, procurando que os homens terrenos se regenerem, em vista de grande fertilidade espiritual. Estas almas santas, portanto, sejam para nós não apenas os homens, mas ainda todos os anjos, se queremos deduzir daí que todas as coisas estão sujeitas a nosso Senhor Jesus Cristo. Nenhuma criatura deixará de estar sujeita àquele ao qual se submetem os primazes, por assim dizer, entre os espíritos. Mas, como provar que ovelhas podem ser também, de modo sublime, não só os homens bem-aventurados, mas ainda os espíritos angélicos criados? Seria talvez por ter o Senhor afirmado que deixou as noventa e nove ovelhas nos montes, isto é, nos lugares mais elevados e desceu por causa de uma só (Mt 18,2)? Se esta única ovelha é a alma humana, decaída em Adão (porque mesmo Eva foi tirada do lado dele) (Gn 2,22), faltanos agora tempo para explicar e considerar espiritualmente tudo isso. Resta-nos entender não serem as noventa e nove deixadas na montanha os espíritos humanos, e sim os espíritos angélicos. Quanto aos bois é fácil explanar a sentença, porque os homens são chamados bois na frase: “Não amordaçarás o boi que debulha o grão” (Dt 25,4), uma vez que os homens imitam os anjos, evangelizando a palavra de Deus. Com maior facilidade tomaremos por bois os próprios anjos, mensageiros da verdade, se considerarmos que os evangelistas, que participam do nome dos anjos, foram denominados bois (1Cor 9,9; 1Tm 5,18). “Tudo lhes puseste aos pés”, portanto, “ovelhas e bois todos”, isto é, todas as criaturas santas e espirituais, entre as quais incluem-se os santos varões da Igreja, a saber, os lagares acima aludidos, também insinuados em outra comparação da lua e das estrelas.

13 “Ainda os animais dos campos”. Não é ocioso o acréscimo de “ainda”. Primeiro, porque animais do campo podem ser também os bois e as ovelhas. Se as cabras são animais das rochas e lugares escarpados, é certo que as ovelhas são animais do campo. Por isso, apesar de se ler ovelhas e bois todos e animais do campo, com razão se pergunta qual o significado de animais do campo, uma vez que também designariam ovelhas e bois. Mas, o acréscimo de “ainda” obriga a se reconhecer não sei bem qual a diferença. A palavra “ainda” abrange não só os animais do campo, bem como as aves do céu e os peixes do mar, que transitam pelos roteiros do mar. Qual então a diferença? Lembremo-nos dos lagares, com grainhas e vinho; da eira, que contém palha e trigo (Mc 3,12); das redes que apanham peixes bons e maus (Mt 13,47); da arca de Noé, com animais puros e impuros (Gn 7,8). Verás então as igrejas neste interim, desde agora até o último dia do juízo, abrangerem não somente ovelhas e bois, isto é, leigos santos e santos ministros, mas “ainda os animais do campo, as aves do céu e os peixes do mar que transitam pelos roteiros do mar”. Animais do campo seriam precisamente os homens entregues ao prazer carnal, que não se elevam a nada de árduo ou penoso. O campo é o caminho espaçoso que conduz à perdição (Mt 7,3); no campo foi morto Abel (Gn 4,8). Assim é provável que alguém, descendo dos montes da justiça de Deus (“A tua justiça”, diz o salmo, “é como as montanhas de Deus”) (Sl 35,7), e escolhendo as larguezas e facilidades do prazer carnal, seja trucidado pelo diabo. Vê agora as aves do céu, os soberbos, dos quais foi escrito: “Investem com a boca contra o céu” (Sl 72,9). Olha a que altura são carregados pelo vento os que dizem: “Nossa língua é nossa força. Nossos lábios são por nós. Quem nos domina” (Sl 11,5)? Considera também peixes do mar, os curiosos que transitam pelos mares, isto é, procuram nas profundezas deste século as coisas temporais, sulcos no mar que logo se dissipam e apagam ao se juntarem novamente as águas, após terem cedido lugar aos que as atravessam ou aos navios, ou a qualquer espécie de transeuntes ou nadadores. Não disse apenas que andam, mas que “transitam”, mostrando o pertinaz empenho dos que anelam pelas coisas fúteis e efêmeras. Essas três espécies de vícios, a saber, o prazer carnal, a soberba e a curiosidade abrangem todos os pecados. A meu ver, é a isto que alude o apóstolo João, quando diz: “Não ameis o mundo, nem o que há no mundo — a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas” (1Jo 2,15.16). A curiosidade prevalece sobretudo por meio dos olhos; quanto às outras concupiscências é evidente a que pertencem. Igualmente a tentação do homem-Senhor foi tríplice: em relação a alimento, isto é, a concupiscência da carne, pois o diabo lhe sugere: “Manda que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4,3); no atinente à vanglória, quando no monte lhe mostra os reinos da terra, e lhos promete se o adorar; quanto à curiosidade, quando o aconselha a pular do pináculo do templo, para experimentar se os anjos viriam ampará-lo. Por isso, não tendo o inimigo conseguido vencê-lo em nenhuma destas tentações, diz o evangelista: “Depois de tê-lo o demônio assim tentado de todos os modos” (Lc 4,13). Conforme o significado dos lagares, foram submetidas a seus pés não só as uvas, mas também as grainhas, a saber, não só ovelhas e bois, isto é, as almas santas dos fiéis, do povo ou dos ministros; e ainda os animais do prazer, as aves da soberba e os peixes da curiosidade. Vemos agora todas essas espécies de pecadores misturados aos bons e aos santos nas igrejas. Trabalhe o Senhor em suas igrejas e separe as uvas das grainhas. Quanto a nós, esforcemo-nos por ser vinho e ovelhas ou bois; não grainhas, ou animais do campo, ou aves do céu, ou peixes que transitam nos roteiros do mar. Não quero dizer que tais nomes só têm esta explicação, mas esta é conforme o contexto; em outra parte têm sentido diferente. Tal regra vale para toda alegoria: em determinada sentença considere-se qual o objeto da comparação. Foi o método do Senhor e dos apóstolos. Repitamos agora o último versículo, que se encontra também no princípio do salmo e louvemos a Deus, dizendo: “Senhor, Senhor nosso, como é admirável teu nome em toda a terra!” Convém após discurso voltar ao começo, ao qual todo ele se refere.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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