1 1“Salmo de Davi. Para o fim. Entre os hinos sobre o oitavo”. “Oitavo”, expressão obscura; as outras palavras do título são mais claras. Opinam alguns tratar-se do dia do juízo, do tempo da vinda de nosso Senhor, para julgar os vivos e os mortos. Acredita-se que tal vinda, contando os anos desde Adão, se dará após sete mil anos, de sorte que os sete mil anos passarão como sete dias. Em seguida, virá outra época, que constituirá o oitavo dia. A palavra do Senhor: “Não vos compete conhecer os tempos e os momentos que o Pai reservou a seu poder” (At 1,7), e: “Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, mas só o Pai” (Mt 24,36), e o que está escrito: “O dia do Senhor virá como ladrão” (1Ts 5,2), mostra que ninguém há de arrogar-se o conhecimento da data, calculando os anos. Se for dentro de sete mil anos que há de vir aquele dia, qualquer pode saber a ocasião da vinda, computando os anos. Como, então, nem o Filho o sabe? Assim foi afirmado, não porque o Filho mesmo não o saiba, e sim porque os homens não obterão esse conhecimento por meio do Filho, segundo a locução: “O Senhor vosso Deus vos experimenta para saber” (Dt 13,3), isto é, para que saibas. “Ergue-te, Senhor” (Sl 3,7), quer dizer, levanta-nos. Se, pois, assevera-se que o Filho desconhece o dia, não porque o ignore, mas porque faz com que o desconheçam aqueles aos quais não convém saber, isto é, não o mostra, não sei que presunção é esta de marcar, com toda a certeza, o dia do Senhor, após sete mil anos!
2 Ignoremos de boa mente aquilo que Deus não quis que soubéssemos e procuremos o significado deste título: “Sobre o oitavo”. É possível, sem nenhum cálculo temerário de anos, entender-se o dia do juízo como sendo o oitavo, porque depois do fim deste mundo, as almas dos justos, havendo recebido a vida eterna, já não estarão sujeitas ao tempo. Como o tempo decorre com a repetição desses sete dias, talvez se denomine oitavo aquele que não depende de tal sucessão. Existe outra possibilidade de se aceitar que aqui razoavelmente oitavo seja o juízo, a sobrevir após duas gerações: uma relativa ao corpo, outra atinente à alma. Pois, de Adão a Moisés o gênero humano viveu conforme o corpo, quer dizer, segundo os ditames da carne, também chamada homem exterior e homem velho (Ef 4,22), e ao qual foi dado o Antigo Testamento, a fim de que por meio de ações ainda carnais, embora religiosas, prefigurasse as futuras, espirituais. Por todo o tempo em que se vivia segundo o corpo, “reinou a morte”, como assegura o Apóstolo, “também sobre aqueles que não pecaram”. Ela reinou, porém, “à imitação da transgressão de Adão”, conforme diz o mesmo Apóstolo; porque “até Moisés” (Rm 5,14), entenda-se, até as obras da lei, aqueles sacramentos, observados carnalmente, mantinham obrigados, por causa de certo mistério, mesmo os homens submissos a um só Deus. Desde a vinda do Senhor, quando se passou da circuncisão da carne à do coração, realizou-se o chamado à vida segundo a alma, conforme o homem interior, também denominado homem novo, devido à regeneração e à renovação de costumes espirituais. É evidente que o número quaternário pertence ao corpo, por causa dos quatro elementos bem conhecidos de que consta e de suas quatro qualidades: secura, umidade, calor e frio. Igualmente é beneficiado por quatro estações: primavera, verão, outono, inverno. São coisas bem conhecidas. Em outro lugar tratamos de maneira mais sutil, embora obscura, a relação do número quatro ao corpo. Neste sermão o evitamos, querendo adaptá-lo aos menos eruditos. Entende-se que o número ternário é atinente à alma, porque o mandamento de amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo entendimento (Dt 6,5; Mt 22,31) é tríplice. Não convém tratar de cada um desses pontos a propósito do saltério, e sim em torno do evangelho. No momento parece suficiente o supramencionado para atestar que o número ternário se relaciona à alma. Depois do número referente ao corpo, pertencente ao homem velho e ao Antigo Testamento, após também o da alma atinente ao homem novo e ao Novo Testamento, bem como decorrido o número setenário, pois eles todos são temporários, e tendo sido distribuído o quaternário para o corpo e o ternário para a alma, virá o oitavo dia, o do juízo, que repartirá segundo o mérito, e já não levará os justos às obras temporais, e sim à vida eterna, enquanto condenará eternamente os ímpios.
3 2A Igreja, receosa de tal condenação, reza neste salmo: “Senhor, não me repreendas em tua ira”. O Apóstolo fala também em ira do juízo, ao declarar: “Estás acumulando ira para o dia da cólera e do justo juízo de Deus” (Rm 2,5). Quem deseja ser curado nesta vida, não quer ser arguído naquele dia. “Corrige-me, mas não em teu furor. Corrige-me” parece mais brando, uma vez que atende à emenda. Quanto àquele que é arguído, isto é, acusado, receia-se que por fim sofra condenação. Como, porém, o furor aparenta ser mais do que a ira, talvez cause estranheza estar o mais suave, a correção, ao lado do mais duro, o furor. Mas, penso que as duas palavras significam o mesmo, porque em grego thimós, que se acha no primeiro versículo, é idêntico a orgé, no segundo. Os latinos, querendo empregar as duas palavras, procuram um sinônimo de ira e usaram furor. Por conseguinte, os códices divergem. Uns trazem primeiro ira, em seguida furor; outros, primeiro furor, depois ira; outros, em vez de furor trazem indignação ou bílis. Seja como for, trata-se de emoção que provoca imposição de castigo. Não é atribuível tal emoção a Deus, como à alma. Dele se disse: “Tu, Senhor das virtudes, julgas com calma” (Sb 12,18). Se está calmo, não se acha perturbado. Em Deus, que é juiz, não há perturbação. Todavia, os atos de seus servos, efetuados por meio das leis que são suas, chamam-se sua ira. A alma suplicante não somente não quer ser arguída com tal ira, mas nem sofreu tal correção, isto é, aceitar esta emenda ou instrução. No grego encontra-se paideúses, sejas instruído. São arguídos no dia do juízo todos os que não têm Cristo por fundamento. São corrigidos, purificados, os que edificam sobre esse fundamento com madeira, feno, palha; sofrerão perda, mas serão salvos, de certa maneira através do fogo (cf. 1Cor 3,11). Qual, portanto, o pedido de quem não quer ser arguído, ou corrigido, no momento da ira do Senhor? Qual senão o de ser curado? Na saúde não se cogita, com receio da morte, nem da mão do médico que cauteriza e corta.
4 3.4Continua, dizendo: “Tem piedade de mim, Senhor, estou enfraquecido. Cura-me, Senhor, porque estão abalados os meus ossos”, o sustentáculo ou a força de minha alma: é isso o que quer dizer ossos. A alma afirma ter abalada a sua força, ao falar em ossos. Não se pense que tenha ossos, como vemos no corpo. É explanação o acréscimo: “Minha alma está muito perturbada”, a fim de não se interpretar como sendo referência ao corpo, porque disse ossos. “E tu, Senhor, até quando?” Quem não vê tratar-se da alma em luta com suas moléstias, muito tempo sem assistência do médico, a fim de se convencer dos males em que se precipitou ao pecar? Se a cura é fácil, não se tomam muitas precauções. A dificuldade da cura torna maiores os cuidados com a saúde recuperada. Não se julgue cruel Deus, a quem se diz: “E tu, Senhor, até quando?” Ao contrário, é bom conselheiro da alma a respeito do mal ocasionado por ela a si própria. Esta alma ainda não reza tão perfeitamente que se lhe possa declarar: “Estarás falando ainda, e direi: Eis-me aqui!” (Is 65,24; 52,6). Se os que se convertem suportam tamanha dificuldade, é para que simultaneamente se reconheça o grande castigo preparado para os ímpios, que recusam se converter a Deus, como se lê em outra passagem: “Se o justo com dificuldade consegue salvar-se, em que situação ficará o ímpio e pecador” (1Pd 4,18)?
5 5“Volta-te para mim, Senhor, livra a minha alma”. Convertendo-se, a alma pede a Deus que também se volte para ela, conforme se diz: “Retornai a mim — oráculo do Senhor — e eu retornarei a vós” (Zc 1,3). A locução “volta-te, Senhor”, acaso deve ser entendida como: Faze com que me volte, porque sente dificuldade e luta na própria conversão? Pois, nossa perfeita conversão encontra a Deus sempre pronto, conforme diz o profeta: “Certa, como a aurora, é sua vinda” (Os 6,3ss). A causa de o perdermos não está na ausência daquele que se acha presente em todo lugar, e sim em nosso afastamento dele. “Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não o conheceu” (Jo 1,10). Se estava neste mundo e o mundo não o conheceu, foi porque nossa impureza não suporta a sua presença. Quando, porém, nos voltamos para ele, quando remodelamos nosso espírito, mudando de vida, percebemos ser duro e laborioso retornar das trevas das concupiscências terrenas à serenidade e tranquilidade da luz divina. E em tal dificuldade dizemos: “Volta-te, Senhor”, ajuda-nos a completar nossa conversão, que te encontras preparado e disposto a oferecer-te aos que te amam, para sua fruição. Por conseguinte, depois de haver dito: “Volta-te, Senhor”, acrescentou: “Livra minha alma”, como se ela, na própria conversão se sentisse presa das perplexidades deste século e sofresse uma espécie de picadas de espinhos, desejos dilacerantes. “Salva-me, Senhor, por tua misericórdia”. Percebe não ser curada por seus próprios méritos, visto ser justa a condenação do pecador que transgrediu o preceito dado. Cura-me, portanto, não devido a meus méritos, e sim por causa de tua misericórdia.
6 6“Porque após a morte não há quem se lembre de ti”. O salmista compreende igualmente que agora é tempo de conversão, uma vez que passada a vida só resta a retribuição pelos méritos. “No inferno quem te confessará?” Confessou no inferno aquele rico que, na parábola do Senhor, viu Lázaro no repouso, enquanto ele mesmo se doía no meio de tormentos. Confessou a tal ponto que desejava exortar os seus a se absterem de pecados, por causa dos castigos que não acreditavam haver no inferno (Lc 16,23-31). Confessou, mas inutilmente, serem justos os tormentos, mostrando desejo de que os seus fossem instruídos para neles não incidirem. O que significa, então: “No inferno quem te confessará?” Acaso inferno representa o lugar onde, após o juízo, serão precipitados os ímpios, e onde, por causa das trevas profundas, não verão luz alguma de Deus, ao qual confessem por determinado motivo? Pois, este rico, erguendo os olhos, apesar de separado de Lázaro por abismo horrível e profundo, pôde vê-lo no repouso. Comparando-o consigo, foi constrangido a confessar ter merecido seu castigo. Outra explicação existe ainda. Denomina-se morte o pecado cometido por desprezo da lei divina, de sorte que chamemos morte o aguilhão da morte, o qual a ela conduz, porque “o aguilhão da morte é o pecado” (1Cor 15,56). Nesse tipo de morte, esquecimento de Deus é desprezar a sua lei e os seus preceitos. Diria ser inferno a cegueira da alma que surpreende e envolve o pecador, isto é, o moribundo. “Como se recusaram a procurar uma noção exata de Deus, Deus entregou-os a um sentimento depravado” (Rm 1,28). A alma suplica livrar-se desta morte e deste inferno, quando se empenha em converter-se a Deus, mas sente dificuldades.
7 7Por esta razão, desculpa-se o salmista: “Estou esgotado de tanto gemer”. E como pouco tem adiantado, acrescenta: “Todas as noites lavarei com pranto meu leito”. Leito aqui é o lugar onde a alma doente e fraca descansa, isto é, o prazer corporal e mundano. Lava com lágrimas tal deleite aquele que se esforça por se furtar a ele. Verifica que condenou as concupiscências carnais e no entanto a fraqueza perdura, por causa do deleite, e nela jaz de bom grado, sem poder erguer-se, se não for curado. O salmista talvez tenha adotado a expressão “todas as noites” por causa de alguém cujo espírito está pronto e percebe algo da luz da verdade, todavia descansa às vezes por fraqueza da carne, no deleite deste século e sofre as vicissitudes do afeto, como se fossem dias e noites. Por exemplo, ao dizer: “Pela razão sirvo a lei de Deus”, trata-se do dia. De outro lado, quando diz: “Pela carne sirvo a lei do pecado” (Rm 7,25) refere-se mais à noite, até passarem todas as noites e chegar o dia único, do qual se diz: “De manhã estarei de pé diante de ti e verei” (Sl 5,4). Então, o salmista estará de pé; jaz agora no leito, que ele lavará todas as noites, a fim de impetrar através de tantas lágrimas da misericórdia de Deus o remédio eficaz. “Minha cama regarei com lágrimas”, é repetição. Com a expressão “lágrimas”, mostra como fará o que afirmou acima “lavarei”. Tomamos a palavra “cama” no mesmo sentido que o termo “leito”, supramencionado. Embora “regarei” tenha sentido mais lato do que “lavarei”, porque se pode lavar superficialmente alguma coisa, enquanto a irrigação penetra muito e significa o pranto até o íntimo do coração. A diversidade de tempos verbais: no pretérito — “Estou esgotado de tanto gemer”; no futuro — “Todas as noites lavarei com pranto meu leito,” e ainda no futuro — “Minha cama regarei com lágrimas”, manifestam o que concluir quem tiver debalde se cansado de gemer. Seria como declarar: Não me adiantou fazer isto, então vou fazer aquilo.
8 8.9“Tenho os olhos turvados de ira”. Ira do salmista ou de Deus, sem a qual pede seja arguído ou corrigido? Mas, se ela significa o dia do juízo, como entendê-la agora? Seria o início dela, uma vez que os homens sofrem aqui dores e tormentos, e principalmente falhas no entendimento da verdade, como a supramencionada palavra: “Deus os entregou a sua mente depravada” (Rm 1,28)? Eis o que é cegueira da mente. Quem a ela for entregue é excluído da luz interior de Deus; todavia não inteiramente nesta vida. Existem as trevas exteriores (Mt 25,30), pertencentes ao dia do juízo, de sorte que ficará completamente afastado de Deus quem não tiver querido corrigir-se enquanto for tempo. O que representa estar completamente longe de Deus senão total cegueira? Na verdade, Deus habita uma luz inacessível (1Tm 6,16), onde penetram aqueles que ouvirão: “Entra na alegria de teu Senhor” (Mt 25,21.23). Por conseguinte, o pecador suporta nesta vida o começo de tal ira. Temendo o dia do juízo, emprega esforços e suplica com lamentos não ser arrastado inteiramente ao castigo, cujo início tão pernicioso agora experimenta. Por essa razão não diz: Estão extintos, mas: “Tenho os olhos turvados de ira”. Não é de admirar que afirme ter os olhos turvados por sua própria ira. Talvez seja esta a razão de se dizer: “Não se ponha o sol sobre a vossa ira” (Ef 4,26). A mente julga sofrer o ocaso do sol interior, a sabedoria de Deus, cuja visão a sua perturbação impede.
9 “Envelheci em meio de todos os meus inimigos”. Falara apenas de ira, se é que tratava de sua própria ira. Considerando, porém, os outros vícios, percebeu estar cercado deles todos. Como estes vícios fazem parte da antiga vida e do velho homem, que havemos de despir para nos revestirmos do novo (Cl 3,9.10), com razão se afirmou: “Envelheci em meio de todos os meus inimigos”, os próprios vícios, ou os homens que recusam voltar-se para Deus. Estes, mesmo que procurem desconhecer, tolerar, viver em certa concórdia, em frequentes conversas, sem discussões, juntos nos banquetes, casas e cidades, no entanto, por divergência de propósitos, são inimigos dos que se convertem para Deus. Uns amam, ambicionam este mundo: os outros anseiam por se libertar dele. Quem não vê que os primeiros são inimigos dos segundos? Se o conseguirem, arrastam-nos consigo para os castigos. É grande dom ouvir diariamente essas conversas e não se extraviar dos preceitos de Deus. Muitas vezes o espírito, no esforço de caminhar para Deus, abalado, trepida no caminho. Amiúde, por causa disso, deixa de cumprir um bom propósito, para não ofender aqueles com os quais convive e que amam e seguem outros bens, perecíveis e passageiros. As pessoas sadias deles se separam, não pelo lugar, e sim pelo ânimo, pois os corpos estão circunscritos ao lugar, enquanto o lugar da alma é o seu afeto.
10 Após labuta, gemidos, lágrimas frequentes e copiosas, é impossível não surta efeito o pedido tão veemente dirigido àquele que é a fonte de todas as misericórdias. Por isso, com acerto se afirma: “O Senhor está perto do coração atribulado” (Sl 33,19). Após tantos obstáculos, acrescenta a alma piedosa, ou talvez também a Igreja, assinalando que foi atendida: “Apartai-vos de mim obreiros de iniquidade, porque o Senhor escutou a voz de meu pranto”. Ou se trata de profecia, porque os ímpios se afastarão, serão separados dos justos, no dia do juízo, ou agora na eira limpa, apesar de juntos nas mesmas reuniões, os grãos já estão separados das palhas, apesar de escondidos entre elas. Por conseguinte, podem estar juntos, mas juntos não serão arrebatados pelo vento.
11 10“Porque o Senhor escutou a voz do meu pranto; ouviu o Senhor os meus pedidos. O Senhor acolheu a minha prece”. A assídua repetição de uma sentença é desnecessária numa narração, mas demonstra o afeto de alguém que está radiante. Costumam assim falar os que se alegram, porque não lhes basta proferir uma só vez o motivo de sua alegria. Aqui, é fruto do gemido do aflito e das lágrimas, que lavam o leito e regam a cama, porque os “que semeiam entre lágrimas, ceifarão com alegria” (Sl 125,5), e “Bem-aventurados os que choram porque serão consolados” (Mt 5,5).
12 11“Envergonhem-se e apavorem-se todos os meus inimigos”. Afastai-vos de mim, todos, disse o salmista mais acima. Tal pode acontecer mesmo nesta vida, conforme foi exposto. Mas dizer: “Envergonhem-se e apavorem-se”, não vejo como possa suceder, senão no dia em que forem manifestos os prêmios dos justos e os suplícios dos pecadores. Agora, os ímpios não se coram, nem deixam de zombar de nós; e por vezes com suas irrisões conseguem que os fracos se envergonhem do nome de Cristo. Daí a palavra: “Se alguém se envergonhar de mim diante dos homens, também eu me envergonharei dele diante de meu Pai” (Lc 9,26). Todo aquele, portanto, que decidir cumprir os sublimes preceitos de repartir com os pobres os seus bens, para sua justiça permenecer para sempre (Sl 111,9), e tendo vendido todas as suas posses terrenas e distribuído o resultado aos necessitados, quiser seguir a Cristo, dizendo: “Nós nada trouxemos para o mundo, nem coisa alguma dele podemos levar. Se, pois, temos alimento e vestuário, contentemo-nos com isso” (1Tm 6,7.8), incide na mordacidade sacrílega dos ímpios e os que não querem ser curados chamam-no de louco. Com frequência, para não receber tal denominação da parte de homens já desesperançados, hesita e adia a realização do preceito do mais fiel e poderoso dos médicos. Agora, pois, os ímpios não se podem envergonhar. Seria desejável que também nós, por causa deles, não nos envergonhássemos, para não sermos dissuadidos, impedidos ou retardados no caminho encetado. Mas, virá tempo em que eles se envergonharão, dizendo, conforme está escrito: “Este é aquele de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de ultraje, nós insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura e seu fim infame. Como agora o contam entre os filhos de Deus e partilha a sorte dos santos? Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol. Cansamo-nos nas veredas da iniquidade e da perdição, percorremos desertos intransitáveis, mas não conhecemos o caminho do Senhor! Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviram riqueza e arrogância? Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,3-9).
13 Quanto à palavra: “Convertam-se e sejam confundidos”, quem não acha muito justo o castigo de se voltarem para sua própria confusão, os que não quiseram converter-se em vista da salvação? Em seguida, acrescentou o salmista: “Bem depressa”. Quando se for desistindo de esperar o dia do juízo e se disser: Paz! Então, lhes sobrevirá repentina destruição (1Ts 5,3). Seja quando for, virá muito rapidamente o que não era mais esperado. Só a esperança de viver faz com que se considere longa a vida, pois nada parece mais rápido do que tudo aquilo que já passou. Quando vier o dia do juízo, então os pecadores perceberão não ser longa a vida que passa. De modo algum há de parecer-lhe tardio o que vier para os que não o desejam, ou antes, para os incrédulos. Aqui é possível ainda a seguinte interpretação: Deus ouviu a alma que gemia e assiduamente chorava, por isso livrou-se dos pecados e dominou todos os perversos movimentos do desejo carnal, conforme ela mesma diz: “Apartai-vos de mim, obreiros de iniquidade, porque o Senhor escutou a voz de meu pranto”. Ao lhe suceder tal coisa, não é de admirar que se torne tão perfeita que ore pelos próprios inimigos. A frase: “Envergonhem-se e apavorem-se todos os meus inimigos” pode referir-se à penitência dos pecados, impossível de realizar-se sem confusão e comoção. Nada, por conseguinte, impede interpretar-se: “Convertam-se e envergonhem-se” no sentido de: convertam-se para Deus e se envergonhem os que se gloriaram algumas vezes enquanto estavam nas anteriores trevas dos pecados, como pergunta o Apóstolo: “E que fruto colhestes então daquelas coisas de que agora vos envergonhais” (Rm 6,21)? O acréscimo: “Bem depressa” ou deve relacionar-se ao afeto de quem o deseja ou ao poder de Cristo, o qual converte, com grande rapidez, à fé do Evangelho, os povos que, por causa de seus ídolos, perseguiam a Igreja.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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