Comentário ao Salmo 21 – Santo Agostinho

1 1“Para o fim. Pelo socorro matutino. Salmo de Davi”. Para o fim. Fala o próprio nosso Senhor Jesus Cristo, a respeito de sua ressurreição. Esta ressurreição se realizou na manhã do primeiro dia da semana. Por ela foi recebido na vida eterna Cristo, sobre o qual a morte não terá mais domínio (Rm 6,9). Essas expressões são atinentes à pessoa do crucificado, pois as palavras iniciais deste salmo são as que clamou pendente da cruz, representando o velho homem, cuja mortalidade carregava. Pois, nosso velho homem foi crucificado com ele (ib 6).


2 2“Deus, meu Deus, olha-me. Por que me desamparaste, longe de minha salvação?” Estou longe de minha salvação, porque a salvação está longe dos pecadores (Sl 118,155). “As vozes de meus delitos”, pois estas palavras não são da justiça, mas de meus delitos. Fala o velho homem crucificado, ignorando a causa por que Deus o abandonou. Ou certamente: “Longe de minha salvação estão as vozes de meus delitos”.


3 3“Meu Deus, clamarei durante o dia e não me escutarás”. Meu Deus, clamarei a ti na prosperidade desta vida, para que não mudem; mas não ouvirás, porque hei de clamar com as vozes de meus delitos. “E à noite, e não me será atribuída a loucura”. Efetivamente, clamarei também na adversidade, pedindo a volta da prosperidade, e igualmente não me atenderás. Não ages assim, para que fique na ignorância, antes a fim de que saiba o que queres que eu suplique; não com vozes de delitos, provenientes do desejo de vida transitória, mas com palavras de um convertido a ti, em vista da vida eterna.


4 4“No entanto, habitas no santuário, ó glória de Israel”. Habitas no santuário, e por isso não atendes às vozes impuras de delitos. És o louvor de quem te vê, e não de quem procurou a própria glória, provando do fruto proibido, de sorte que, depois de ter abertos os olhos corporais, tentou se esconder de tua presença (Gn 3).



5 5“Em ti confiaram os nossos pais”, os justos que não visaram ao próprio louvor, mas ao teu; “esperaram e os livraste”.


6 6“A ti clamaram e foram salvos”. A ti clamaram, todavia não com vozes de delitos, distantes da salvação; por isso foram salvos. “Em ti esperaram e não foram enganados”. Esperaram em ti e a esperança não os enganou, porque não depositaram em si mesmos a confiança.


7 7“Eu, porém, sou verme e não homem”. Falo, não mais representando Adão, mas eu próprio, Jesus Cristo, nascido segundo a carne sem intervenção do homem, para ser homem superior aos outros, a fim de que ao menos assim a soberba humana se dignasse imitar a minha humildade. “Opróbrio dos homens e abjeção da plebe”. Nesta condição, fiz-me o opróbrio dos homens, a tal ponto que foi dito como maldição e injúria: “Tu, sim, és seu discípulo” (Jo 9,28), e a plebe pôde me desprezar.


8 8“Todos os que me viam, riam-se de mim”. Todos os que me viam, zombavam de mim. “Falavam torcendo os lábios e meneavam a cabeça”. Não falavam no coração, e sim com os lábios.


9 9Pois com escárnio sacudiam a cabeça, dizendo: “confiou no Senhor. Ele o liberte. Salve-o se é verdade que o ama”. Eram estas as palavras murmuradas com os lábios.


10 10“Porque me tiraste das entranhas de minha mãe”. Tiraste-me, não só do ventre virginal (lei de todo nascimento humano é sair do ventre), mas também do seio da nação judaica. Ainda se acha envolto nas trevas, desta nação e não nasceu à luz de Cristo todo aquele que põe a salvação na observância carnal do sábado, da circuncisão, etc. “És a minha esperança desde o peito de minha mãe”. Deus, minha esperança, não apenas desde que comecei a ser aleitado pela virgem. Antes mesmo. Como disse que fui tirado do ventre da sinagoga, também me tiraste do peito da sinagoga, para que não sugasse o hábito carnal.


11 11“Desde que vim à luz, te fui entregue”. Desde o seio da sinagoga que não me susteve, mas me lançou fora; contudo não caí. Tu me seguraste. “Desde o ventre de minha mãe és o meu Deus”. Desde o ventre de minha mãe, que não fez com que eu, pequenino, me esquecesse de ti.


12 11.12“És o meu Deus. Não te afastes de mim, porque a tribulação está próxima”. És, portanto, o meu Deus, não te afastes de mim, porque a tribulação está perto, está em meu corpo. Não há quem me socorra. Quem me socorre, se não socorres?



13 13“Numerosos novilhos me cercaram”. Cercou-me a multidão da plebe arrebatada. “Rodearam-me touros cevados”. Seus príncipes me rodearam, alegrando-se com a minha opressão.


14 14“Contra mim abriram a boca”. Abriram a boca contra mim, não com palavras de tuas Escrituras, mas com as oriundas de suas paixões. “Como leão rapace a rugir”. Como sua rapina, levou-me preso e rugiu: “Crucifica-o, crucifica-o!” (Jo 19,6).

15 15“Sinto-me como água derramada, desconjuntaram-se-me todos os ossos”. Sou água derramada. Nela caíram os meus perseguidores. Pelo medo dispersaram-se ao longe os meus discípulos, sustentáculo de meu corpo, isto é, a Igreja. “Meu coração, como cera, derreteu-se em minhas entranhas”. A minha sabedoria, registrada nos Livros Sagrados e referente a mim mesmo, que eles julgavam endurecida e oculta, não era entendida. Mas, depois, com o fogo de minha paixão, se liquefez, revelou-se, foi recebida na memória de minha Igreja.


16 16“Minha força secou-se qual vaso de argila”. Minha força na paixão ressecou-se, não como feno, mas qual argila, que ao fogo se torna mais consistente. “Minha língua pegou-se ao paladar”. Conservaram em si meus preceitos aqueles por cujo intermédio eu haveria de falar. “Reduziste-me ao pó da morte”. Levaste-me para o meio dos ímpios destinados à morte, e que o vento carrega, como poeira, da superfície da terra.


17 17“Muitos cães me cercaram”. Rodearam-me muitos a ladrar, não em prol da verdade, mas conforme seus hábitos. “Um bando de malvados me assediou. Traspassaram-me as mãos e os pés”. Traspassaram-me com cravos as mãos e os pés.


18 18“Contaram todos os meus ossos”. Contaram, distendidos no lenho da cruz, todos os meus ossos. “Estiveram a olhar-me e me examinaram”. Eles mesmos, isto é, sem se modificarem, me observaram e me viram.


19 19“Dividiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes”.


20 20“Tu, porém, Senhor, não apartes de mim o teu auxílio”. Tu, porém, Senhor, ressuscita-me, não no fim dos séculos, como aos demais homens: mas imediatamente. “Atende a minha defesa”. Cuida de que em nada me prejudiquem.

21 21“Da espada livra a minha alma”. Livra a minha alma da língua que separa. “Das garras do cão a minha única”. Liberta a minha Igreja da violência do povo, que costuma ladrar.


22 22“Salva-me das fauces do leão”. Salva-me das fauces do reino deste mundo. “E dos chifres dos unicórnios a minha humildade”. Salva-me, em meu abatimento, das grandezas dos soberbos que se exaltam singularmente e não suportam seus pares.


23 23“Anunciarei o teu nome a meus irmãos”. Narrarei o teu nome aos humildes, que se amam mutuamente, como eu amei os meus irmãos. “No meio da Igreja te cantarei”. No meio da Igreja, eu te anunciarei, cheio de alegria.


24 24“Louvai o Senhor, vós que o temeis”. Vós que temeis o Senhor, não busqueis vosso próprio louvor, mas louvai-o. “Todos os da estirpe de Jacó exaltai-o”. Exalte-o a descendência daquele ao qual o mais velho servirá.


25 25“Temei-o descendência toda de Israel”. Temam-no todos os nascidos para uma vida nova e regenerados para obterem a visão de Deus. “Porque ele não rejeitou nem desdenhou a oração do pobre”. Não desprezou a prece do pobre, que não se ilude com pompas transitórias. Mas desprezou a prece do que clama com vozes de delitos, e nada visa além desta vida cheia de vaidades. “Nem de mim desviou o rosto”, como fez àquele que dizia: Clamarei a ti, e não me ouvirás. “Quando a ele clamei, ouviu-me”.


26 26“Diante de ti, o meu louvor”. Não capto louvores para mim, porque meu louvor és tu, que habitas no santuário e atendes, louvor de Israel, ao santo que te suplica. “Confessar-te-ei na grande Igreja, na Igreja espalhada pelo orbe, eu te confessarei. “Cumprirei os meus votos na presença dos que o temem”. Darei o sacramento de meu corpo e de meu sangue, na presença dos que o temem.


27 27“Os pobres hão de comer e saciar-se”. Comerão os humildes que desprezam o mundo e imitar-me-ão. Não haverão de desejar a abundância, nem de recear a indigência neste mundo. “Louvarão o Senhor aqueles que o procuram”. O louvor do Senhor é efeito de sua saciedade. “Seus corações viverão nos séculos dos séculos”, pois ele é o alimento do coração.

28 28“Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra”. Recordarse-ão, pois Deus se afastara dos povos que nasceram para morrer e tendem para as coisas exteriores. Então, hão de se voltar para o Senhor todos os confins da terra. “E adotarão em sua presença todas as famílias das nações”. Adorarão em sua consciência as famílias de todas as nações.


29 29“Porque do Senhor é o reino. E ele dominará os povos”. Ao Senhor pertence o reino, não aos soberbos. Ele é que dominará os povos”.

30 30“Comeram e adoraram todos os poderosos da terra”. Comeram o corpo de seu Senhor, em condição humilde, até os ricos da terra, apesar de não se saciarem a ponto de imitá-lo, como os pobres; todavia adoraram. “Em sua presença se prostarão todos os que descem à terra”. Ele somente vê como cairão os que, apartando-se da convivência celeste, preferiram parecer felizes na terra dos homens, que não são capazes de ver a ruína deles.


31 31“Para ele viverá a minha alma”. Minha alma, que desprezando o mundo parece morta aos homens, não viverá em si, mas para ele. “E minha descendência há de servi-lo”. Minhas obras ou os fiéis dele, por minha causa o servirão.


32 32“Proclamar-se-á em honra do Senhor a geração vindoura”. Será proclamada em honra do Senhor a geração do Novo Testamento. “E os céus anunciarão a sua justiça”. Os evangelistas anunciarão a sua justiça. “Ao povo que há de nascer e que o Senhor criou”. O povo que nascerá da fé, para o Senhor.


II. SERMÃO AO POVO


1 Não devemos calar e compete-vos ouvir aquilo que Deus não quis omitir nas Sagradas Escrituras. A paixão do Senhor, como sabemos, realizou-se uma só vez; uma só vez Cristo morreu, o justo pelos injustos (1Pd 3,18). Sabemos, temos certeza, sustentamos com fé inabalável que “Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele” (Rm 6,9). São palavras do Apóstolo. Não nos esqueçamos, contudo, de que a ação realizada uma só vez, renova-se anualmente em memorial. Acaso Cristo morre todas as vezes que se celebra a Páscoa? No entanto, a celebração anual de certo modo representa o que outrora se realizou, e assim nos comove, como se víssemos o Senhor pendente da cruz; não com zombarias, mas com fé. Ao pender do madeiro agora, e já não podemos irritar-nos contra os judeus que zombaram dele moribundo, mas não agora que reina? Quem é que ainda zomba de Cristo? Desejável seria que fosse um só, fossem dois, que se pudessem contar! Zomba dele toda a palha de sua eira, e geme o trigo, enquanto o Senhor é escarnecido. Por este motivo quero gemer convosco. É tempo de chorar. Celebre-se a paixão do Senhor. Tempo de gemer, de chorar, tempo de confessar, de suplicar. Quem de nós é capaz de derramar lágrimas condignas de tamanha dor? O que fala o profeta a respeito disso? “Quem fará de minha cabeça um manacial de água, e de meus olhos fonte de lágrimas” (Jr 8,23)? Se de fato houvesse uma fonte de lágrimas em nossos olhos, nem isto bastaria. Escarnecer de Cristo abertamente, numa questão sobre a qual ninguém pode dizer: “Não entendi! A Cristo, possuidor de todo o orbe, atribui-se apenas uma parte, e ao que está sentado à direita do Pai se declara: Aqui está o que possues. E ao invés de toda a terra, mostra-se-lhe somente a África! 1


2 Irmãos, o que faremos das palavras que acabamos de ouvir? Se pudessem ser escritas com lágrimas! Quem era a mulher que entrou na sala com unguento (Mt 26,7)? De quem era tipo? Não seria da Igreja? O que figurava aquele unguento? Talvez o bom odor mencionado pelo Apóstolo: “Somos o bom odor de Cristo em todo lugar” (2Cor 14,15)? Também o Apóstolo insinuava a própria Igreja, porque ao dizer: “somos”, refere-se aos fiéis. E o disse? Somos o bom odor de Cristo em todo lugar. Paulo afirma que o bom odor de Cristo em todo o lugar, são os fiéis, em geral, mas se lhe contradiz: Apenas a África exala o bom odor; o mundo inteiro é fétido. Somos o bom odor de Cristo em todo o lugar. Quem o assegura? A Igreja. O vaso de unguento derramado sobre o Senhor significava este bom odor. Vejamos se o próprio Senhor não atesta o mesmo que Paulo. Quando alguns avaros, ladrões, buscavam o próprio interesse, quer dizer, quando Judas falava daquele unguento: “Para que este desperdício? Poder-se-ia vender este perfume por um bom preço e dar dinheiro aos pobres”. Queria vender o bom odor de Cristo. Como respondeu o Senhor? “Porque molestais esta mulher? Ela, de fato, praticou uma boa ação para comigo”. E o que acrescentarei eu, se o próprio Senhor declarou: “Onde quer que venha a ser proclamado este evangelho, em todo o mundo, também o que ela fez será contado em sua memória?” (Mt 26,8-10.13). O que acrescentar? O que tirar? Por que dar ouvidos aos caluniadores? Acaso mentiu o Senhor, ou se enganou? Escolham o que dizer: ou a Verdade mentiu, ou a Verdade se enganou. “Onde quer que venha a ser proclamado este evangelho”. E se lhe perguntasses: Onde será proclamado? “Em todo o mundo”, responderia. Ouçamos o salmo e vejamos se é isto o que diz. Ouçamos o que é cantado com voz plangente. Na verdade é lastimável que seja cantado para surdos. Admiro-me, irmãos, se é que hoje este salmo é lido também no partido de Donato. Desculpai-me, irmãos. Confesso, a misericórdia de Cristo o sabe, fico admirado de que ali existam homens duros como pedras, que não queiram ouvir. O que dizer a surdos, com maior clareza? A paixão de Cristo é descrita de maneira tão evidente que parece o evangelho, e no entanto, foi anunciada não sei quantos anos antes que o Senhor nascesse da virgem Maria. Era um pregão a anunciar o futuro juiz. Vamos lê-lo quanto permitir o tempo. Não à medida de nossa dor, mas, como disse, quanto a brevidade do tempo o permitir.


3 2“Deus, meu Deus, olha-me. Por que me desamparaste?” Ouvimos este primeiro versículo, recitado pelo Senhor na cruz, ao dizer: “Eli, Eli”, que se traduz: “Meu Deus, meu Deus. Lama sabachthani?”, isto é, “Por que me desamparaste?” (Mt 27,46). O evangelista verteu e narrou que ele disse em hebraico: Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” O que queria dizer o Senhor? Deus não o abandonara, porque ele era Deus. Efetivamente, Deus, filho de Deus, na verdade Deus, Verbo de Deus. Ouve como inicia seu escrito o evangelista, exalando o que bebera do peito do Senhor (Jo 13,23) e vejamos se Cristo é Deus: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus”. O próprio Verbo que era Deus, “se fez carne e habitou entre nós” (ib 1,14). E quando o Verbo, Deus feito carne, pendia da cruz e dizia: “Meu Deus, meu Deus, olha-me, por que me desamparaste?” assim se exprime porque nós lá estávamos com ele, porque a Igreja é o corpo de Cristo. Por que razão rezou: “Meu Deus, meu Deus, olha-me. Por que me desamparaste?” a não ser para despertar nossa atenção e nos declarar: Este salmo foi escrito a meu respeito? “Longe de minha salvação estão as vozes de meus delitos”. De que delitos, se dele foi dito: “Ele não cometeu pecado, nem se achou falsidade em sua boca” (1Pd 2,22)? Como então fala: “meus delitos”. A não ser que reze por nossos delitos e fez seus os nossos pecados, para fazer nossa a sua justiça?


4 3“Meu Deus, clamarei durante o dia e não me escutarás, e à noite, e não me será atribuída a loucura”. Falou efetivamente de mim, de ti, dele. Pois, representava seu corpo, isto é, a Igreja. A não ser, irmãos, que penseis que o Senhor tinha medo de morrer, pois disse: “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice” (Mt 26,39). O soldado não é mais forte do que o general. Basta que o discípulo se torne como o mestre (Mt 10,25). Afirma Paulo, soldado de Cristo rei: “Sinto-me num dilema: o meu desejo é partir e ir estar com Cristo” (Fl 1,23). Ele prefere a morte para estar com Cristo, e o próprio Cristo temeria a morte? A não ser que ele carregasse nossa fraqueza e assim se expressasse em lugar dos membros de seu corpo que ainda temem a morte. Daí provém aquela voz. Era a voz dos membros, não da cabeça. Igualmente aqui: “Clamarei durante o dia e à noite, e não me escutarás”. Muitos, pois, clamam na tribulação e não são atendidos; mas isto acontece para sua salvação e não para ser atribuído a loucura. Paulo clamou ao Senhor, rogando-lhe fosse retirado o estímulo na carne e não foi atendido, quanto a livrar-se dele. Foi-lhe respondido: “Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a força” (2Cor 12,9). Por conseguinte, não foi ouvido. Mas, não o foi para loucura, e sim para sabedoria, a fim de que o homem compreenda que Deus é médico e a tribulação medicamento em prol da saúde, e não castigo para condenação. Submetido a tratamento, serás cauterizado, cortado e gritas. O médico não atende a tua vontade, mas considera a tua saúde.



5 4“No entanto, habitas no santuário, ó glória de Israel”. Habitas naqueles que santificas, e fazes com que entendam o seguinte: Não atendes a alguns, visando ao bem deles, e a outros ouves para sua própria condenação. Paulo não foi atendido para seu bem; o diabo foi ouvido para sua condenação. Ele pediu permissão de tentar a Jó e foi-lhe concedida (Jó 1,11). Os demônios pediram licença para entrar nos porcos e foram ouvidos (Mt 8,31). Os demônios são atendidos; o Apóstolo, não! Mas eles são atendidos para sua condenação, o Apóstolo não é ouvido para sua salvação. “Não me será atribuído a loucura. No entanto, habitas no santuário, ó glória de Israel”. Por que razão não ouves também os teus? Por que estou dizendo isto? Lembrai-vos de repetir sempre: graças a Deus. Aqui está uma grande multidão, e vieram mesmo os que não costumam vir. A todos asseguro: na tribulação prova-se o cristão, a fim de se ver se não abandona o seu Deus. Pois, tudo vai bem para o homem, ele vai deixando de ser cristão. Ateia-se o fogo para o crisol. O crisol do ourives é um grande mistério. Ali está o ouro, ali está a palha, ali o fogo atua num recipiente pequeno. O fogo não é diferente, mas os resultados divergem. Transforma a palha em cinza, tira as impurezas do ouro. Efetivamente tornam-se melhores aqueles nos quais Deus habita, ao serem provados pela tribulação como o ouro. E se o diabo inimigo pedir para provar alguém e lhe for concedido, seja por meio de dor corporal, prejuízo, perda dos familiares, fixe ele seu coração em quem não se subtrai. Se parece subtrair o ouvido ao que chora, oferece a misericórdia ao suplicante. Sabe como agir o Senhor que nos fez, sabe igualmente como nos refazer. O arquiteto que edificou a casa é bom. Se uma parte dela ruir, ele sabe reparar.


6 5Vê o que diz o salmista: “Em ti confiaram os nossos pais. Esperaram e os livraste”. Sabemos e lemos a quantos de nossos pais, que nele esperaram, Deus livrou. Libertou o próprio povo de Israel da terra do Egito (Ex 12,51); livrou os três jovens da fornalha ardente (Dn 3), tirou Daniel da cova dos leões (ib 14), libertou Suzana da calúnia (ib 13). Todos invocaram e foram libertados. Acaso falhou em relação a seu Filho, não o atendendo quando crucificado? Por que então não foi libertado aquele que disse: “Em ti confiaram os nossos pais e os livraste?”


7 7“Eu, porém, sou verme, e não homem. Verme, e não homem”. Pois o homem é também verme; mas ele é “verme, e não homem”. Donde vem que não é homem? Porque é Deus. Por que, então, de tal modo se humilhou, dizendo: “verme”? Será porque o verme nasce de carne sem cópula, como Cristo de Maria virgem? É verme, mas não é homem. Por que verme? Porque mortal, nascido sem cópula. Por que não homem? Porque “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (Jo 1,1).


8 “Opróbrio dos homens e abjeção da plebe”. Vede quanto sofreu! No intuito de falarmos da paixão e tocarmos no assunto com maior pesar, vede quanto sofreu e em seguida, qual a razão deste sofrimento. Que frutos colheu? Eis que nossos pais confiaram e foram libertados da terra do Egito. Como disse acima, foram tantos que invocaram e logo, no tempo, não na vida futura, mas imediatamente foram libertados. O próprio Jó foi entregue ao diabo que o reclamava, ficou putrefacto e cheio de vermes, no entanto, nesta vida recuperou a saúde e recebeu o dobro de que perdera (Jó 42,10). O Senhor, ao invés, foi flagelado e niguém o sustentava, foi coberto de escarros e ninguém o socorria, recebeu bofetadas e ninguém acudia, foi suspendido no madeiro e niguém o livrou, clamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” e não foi atendido (Mt 27). Por que, meus irmãos? Qual a razão? Em castigo de que delito, tamanho sofrimento? Tudo o que sofre é preço. De que preço tanto padecimento? Narremos os fatos, vejamos como se explicam. Em primeiro lugar, perguntemos o que sofreu e em seguida por que motivo. Vejamos como são os próprios inimigos de Cristo os que confessam ter ele sofrido tanto, sem querer que se saiba o motivo. Por isso, ouçamos tudo neste salmo: o que sofreu, qual a razão. Guardai estes dois pontos: o que e por quê. Agora explicarei o quê. Não nos alonguemos e melhor recebereis as próprias palavras do salmo. Vede os padecimentos do Senhor. Cristãos, atenção. “Opróbrio dos homens, abjeção da plebe”.


9 8.9“Todos os que me viam riam-se de mim. Falavam torcendo os lábios e meneavam a cabeça. Confiou no Senhor, ele o liberte. Salve-o se é verdade que o ama”. Mas, qual o motivo por que falavam assim? Porque ele se fizera homem. Falavam como se combatessem um homem.


10 10“Porque me tiraste das entranhas de minha mãe”. Acaso diriam isto contra o Verbo que era no princípio, e o Verbo estava com Deus? O Verbo, pelo qual tudo foi feito não foi tirado do ventre, a não ser porque o Verbo se fez carne, e habitou entre nós. “Tu me tiraste das entranhas de minha mãe. Desde o peito de minha mãe, és meu Deus”. Pois, antes dos séculos és meu Pai, desde o peito de minha mãe, és o meu Deus.


11 11“Desde que vim à luz, te fui entregue”, isto é, és a minha única esperança, enquanto homem, fraco, Verbo feito carne. “Desde o ventre de minha mãe, és o meu Deus”. Não por causa de ti, meu Deus; por tua causa és meu Pai; mas desde as entranhas de minha mãe, és meu Deus.


12 12“Não te afastes de mim, porque a tribulação está próxima. Não há quem me socorra”. Vede-o abandonado. E ai de nós, se ele nos abandonar, porque não haverá “quem nos socorra”.


13 13“Numerosos novilhos me cercaram. Rodearam-me touros cevados”, o povo e os príncipes. O povo, novilhos numerosos; os príncipes, touros cevados.

14 14“Contra mim abriram a boca, como leão rapace a rugir”. Ouçamos o rugido deles no Evangelho: “Crucifica-o, crucifica-o!” (Jo 19,6).


15 15“Sinto-me como água derramada, desconjuntaram-se-me todos os ossos”. Chama-se de ossos, o seu esqueleto, pois os ossos dão firmeza ao corpo. Quando foi que se lhe desconjuntaram os ossos? Quando disse: “Eu vos envio como ovelhas entre lobos” (Mt 10,16; Lc 10,3). Dispersou as partes firmes e ficou como água derramada. A água derramada lava ou irriga. Cristo se derramou como água. Foram lavados os imundos, irrigadas as mentes. “Meu coração, como cera, derreteu-se em minhas entranhas”. Chama de entranhas os fracos na Igreja. Como foi que seu coração se fez de cera? Seu coração, suas Escrituras, quer dizer, sua sabedoria contida nas Escrituras. Pois a Escritura estava selada. Ninguém a entendia. O Senhor foi crucificado e ela liquefez-se como cera, para que os fracos a entendessem. Daí também rasgar-se o véu do templo, porque se revelou o que estava velado.


16 16“Minha força secou-se qual vaso de argila”. Foi magnífica afirmação: Meu nome se fortificou com a tribulação. A argila é mole antes de passar pelo fogo, depois torna-se resistente; assim o nome do Senhor antes da paixão era desprezado e depois é honrado. “Minha língua pegou-se ao paladar”. Este membro apenas nos serve para falar; assim que seus pregadores, isto é, sua língua, aderiram ao paladar, para de seu íntimo apreenderem a sabedoria. “Reduziu-me ao pó da morte”.


17 17“Porque muitos cães me cercaram. Um bando de malvados me assediou”. Vede o evangelho. “Traspassaram-me as mãos e os pés”. Então abriram-se as chagas; e as suas cicatrizes foram tocadas pelo discípulo hesitante, que afirmara: “Se não puser meus dedos nas cicatrizes das chagas, não acreditarei”. Quando o Senhor lhe disse: “Vem, e mete a tua mão, incrédulo”, meteu a mão e exclamou: “Meu Senhor e meu Deus!” E ele: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!” (Jo 25,27.28) “Traspassaram-me as mãos e os pés”.


18 18“Contaram todos os meus ossos”, quando pendia, estendido no madeiro. Não descreveria melhor a distensão do corpo no madeiro do que falar: “contaram todos os meus ossos”.


19 19“Estiveram a olhar-me e me examinaram”. Olharam e não entenderam. Examinaram e não viram. Pousaram os olhos na carne, mas o coração não atingiu o Verbo. “Dividiram entre si as minhas vestes”. Suas vestes, seus sacramentos puderam ser divididos pelas heresias. Mas havia ali uma veste que niguém dividiu. “E sobre a minha túnica lançaram sortes”. A “túnica”, conta o evangelista, era “toda tecida de alto a baixo” (Jo 19,23). Portanto, do céu, do Pai, do Espírito Santo. Que túnica é esta, senão a caridade, que ninguém pode dividir? O que é esta túnica, a não ser a unidade? Sobre ela lançaram sortes; ninguém a dividiu. Os hereges puderam separar os sacramentos, mas não dividiram a caridade. Não podendo dividir, afastaram-se; ela, porém, permanece íntegra. Coube por sorte a alguns: quem a possui está seguro. Ninguém a tira da Igreja católica e se alguém de fora começa a possuí-la, é trazido para dentro, como a pomba trouxe para a arca o ramo de oliveira (Gn 8,11).



20 20“Tu, porém, Senhor, não apartes de mim o teu auxílio”. E assim se fez. No terceiro dia ressuscitou. “Atende a minha defesa”.


21 21“Da espada livra a minha alma”, isto é, da morte. Espada é gládio, e por gládio deu a entender a morte. “Das garras do cão a minha única. Minha alma, minha única”, cabeça e corpo. Única, a Igreja; “das garras”, do poder do cão. Quais são os cães? Os que latem como eles, sem saber contra quê. Nada se lhes fez e ladram. O que fez o transeunte ao cão? No entanto, ele late. Os que ladram cegamente, sem discernir contra ou a favor de quem, são cães.


22 22“Salva-me das fauces do leão”. Sabeis quem é o leão rugidor, que anda ao redor, procurando a quem devorar (1Pd 5,8). “E dos chifres dos unicórnios a minha humildade”. Chama de unicórnios os soberbos; por isso acrescentou: “A minha humildade”.


23 23“Ouvistes o que Cristo sofreu e sua súplica para se livrar de tais sofrimentos. Vejamos agora por que razão padeceu. Já vedes, irmãos. Como pode ser cristão quem não se encontra na porção pela qual Cristo sofreu? Já compreendemos o que ele sofreu: seus ossos foram contados, ele foi escarnecido, suas veste foram divididas, ainda mais, lançaram sortes sobre a sua túnica, cercaram-no homens furiosos e violentos, desconjuntaram-se todos os seus ossos. Ouvimos aqui e lemos no evangelho. Vejamos qual a razão de tudo isso. Ó Cristo, filho de Deus, se não quisesses não terias padecido. Mostra-nos o fruto de tua paixão. Ouve, diz ele, qual foi o fruto. Eu não me calo, mas os homens são surdos. Escuta qual foi o fruto de ter sofrido tanto. “Anunciarei o teu nome a meus irmãos”. Vejamos se anuncia o nome de Deus a seus irmãos só em uma parte da terra. “Anunciarei o teu nome a meus irmãos. No meio da Igreja te cantarei”. É o que acontece agora. Mas, vejamos qual é esta Igreja, uma vez que disse: “No meio da Igreja te cantarei”. Vejamos que Igreja é esta, pela qual padeceu. 1 Trata-se dos donatistas.


24 24“Louvai o Senhor, vós que o temeis”. Em toda a parte onde se teme e se louva a Deus, aí está a Igreja de Cristo. Vede, irmãos, se é em vão que nestes dias se repete em todo o orbe: Amém e Aleluia. Não se teme a Deus ali? Não se louva? Aparece Donato, e diz: De forma nenhuma. Não se teme. O mundo inteiro está perdido. Não tens razão de dizer: O mundo inteiro está perdido. Restou, então, só uma pequenina parte da África? Cristo nada responde para tapar essas bocas? Não vejo coisa alguma que arranque a língua dos que assim falam? Vejamos. Talvez encontremos. Ainda nos é dito: “no meio da Igreja”. De nossa Igreja, afirma ele. “Louvai o Senhor, vós que o temeis”. Vejamos se eles louvam o Senhor, se é deles que fala o salmo, se o Senhor é louvado na Igreja deles. Como podem louvar a Cristo os que asseguram: Ele perdeu a terra inteira, o diabo lhe tomou tudo, e ele ficou só com uma parte? Examinemos aindo o salmo. Diga mais abertamente, fale com maior clareza. Nada que precise de explicação, nada de suspeitoso. “Todos os da estirpe de Jacó, exaltai-o”. Talvez nos repliquem: Nós é que somos a raça de Jacó. Será verdade?


25 26“Temei-o descendência toda de Israel”. Ainda retrucam: Nós é que somos a descendência de Israel. Deixemo-los dizer. “Porque ele não rejeitou nem desdenhou a oração dos pobres”. De quais? Dos que não contam consigo mesmos. Verifiquemos se são pobres os que afirmam: Nós somos justos. Cristo clama: “Longe de minha salvação, as vozes de meus delitos”. Mas, digam ainda o que quiserem. “Nem desviou de mim o rosto. Quando a ele clamei, ouviu-me”. Em que ouviu? Para quê?

26 25“Diante de ti, o meu louvor”. Diante de Deus, o seu louvor. Ensinou a não esperá-lo de um homem. Acrescentem o que quiserem. Já começaram a queimar, o fogo já está chegando. Não há quem possa se subtrair ao seu calor (Sl 18,7). Apesar disso, digam ainda: Também nós lhe apresentamos nosso louvor, e não presumimos de nós mesmos. Continuem: “Confessar-te-ei na grande Igreja”. Aqui, a meu ver, começa-se a aprofundar. Qual é, irmãos, a grande Igreja? A grande Igreja seria uma parte pequenina da terra? A grande Igreja é a terra inteira. Agora, se alguém replicar a Cristo: Tu disseste: “Na grande Igreja confessar-te-ei”. Dize-nos: Qual é a grande Igreja? Ficaste com o bocado da África e perdeste o mundo inteiro. Derramaste o sangue pelo todo, mas sofreste o ataque de um invasor. Assim nos dirigimos ao Senhor, como que interrogando. No entanto, sabemos o que há de responder. Suponhamos que não sabemos o que dirá. Ele não nos responderá? Ficai tranquilos. Prossigo para que ninguém duvide. Aguardemos o que ele vai dizer. Queria me pronunciar desde já, sem permitir que outros interpretem de modo diferente a palavra de Cristo: “na grande Igreja”. Tu afirmas que ele ficou com a ínfima parte. E ainda ousas afirmar: A nossa Igreja também é grande. Que te parece? Bagai e Tamugade? Se o salmo nada diz que os faça calar, continuem a afirmar que a grande Igreja abrange só a Numídia.

27 27.28Vejamos. Ouçamos outra vez o Senhor: “Cumprirei os meus votos na presença dos que o temem”. Quais são os seus votos? O sacrifício que ofereceu a Deus. Sabeis qual sacrifício? Os fiéis conhecem os votos que cumpriu na presença dos que o temem, pois continua o salmista: “Os pobres hão de comer e saciar-se”. Os pobres comem. Os ricos, porém, não se saciam, porque não têm fome. Comerão os pobres. Destes era Pedro, o pescador, destes eram outros pescadores, João e seu irmão Tiago, destes igualmente era o publicano Mateus. Pertenciam aos pobres que comeram e se saciaram. Sofreram o mesmo sacrifício que aquele do qual se alimentaram. Cristo ofereceu a ceia, entregou a sua paixão. Sacia-se quem o imita. Os pobres imitaram. Sofreram seguindo as pegadas de Cristo. Os pobres “hão de comer”. Mas, por que são pobres? “Louvarão o Senhor aqueles que o procuram”. Os ricos louvam a si mesmos, os pobres louvam o Senhor. Por que são pobres? Porque louvam, procuram o Senhor. O Senhor é a riqueza dos pobres. Têm a casa vazia e o coração cheio de riquezas. Procurem os ricos encher o cofre; os pobres buscam encher o coração. Com ele repleto, louvem o Senhor os que o procuram. E vede, irmãos, qual a riqueza dos verdadeiramente pobres. Não se encha no cofre, nem no celeiro, nem no depósito. “Seus corações viverão nos séculos dos séculos”.


28 Por isso, atenção! O Senhor sofreu. Sofreu tudo aquilo que ouvistes narrar. Perguntamos por que sofre, e ele começou a contar: “Anunciarei o teu nome a meus irmãos. No meio da Igreja te cantarei”. Mas, dizem eles (os donatistas), então: Esta Igreja é a nossa. “Temei-o, descendência toda de Israel”. Dizem eles: Nós é que somos a descendência de Israel. “Porque não rejeitou, nem desdenhou a oração do pobre”. Insistem: Nós somos os pobres. “Nem desviou de mim o rosto”. O próprio Cristo Senhor não desviou o rosto de si, de sua Igreja, seu corpo. “Diante de ti, o meu louvor”. Quereis louvar-vos a vós mesmos. Respondem: Também nós o louvamos, perfeitamente. “Cumprirei meus votos na presença dos que o temem”. Os fiéis conhecem o sacrifício da paz, o sacrifício da caridade, o sacrifício de seu corpo. Agora não é possível dissertar sobre o assunto. “Cumprirei meus votos na presença dos que o temem”. Comam os publicanos, comam os pescadores; comam, imitem o Senhor, sofram, sejam saturados. O próprio Senhor morreu; morrem também os pobres. Acrescentem-se à morte do mestre a morte dos discípulos. Por que razão? Mostra-me o proveito dessa morte. “Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra”. Vamos irmãos, por que nos perguntais o que responder ao partido de Donato? Eis o salmo lido hoje aqui, e lido hoje entre eles. Escrevamo-lo em nossas frontes. Com ele avancemos. Não descanse a nossa língua. Assim fale: eis que Cristo sofreu. O mercador mostrou seu lucro. Eis o preço que pagou: seu sangue foi derramado. Na bolsa levava o nosso preço. Foi traspassado pela lança, a bolsa se rompeu, e eluiu o preço do mundo. Que me dizes, herege? Não é o preço de toda a terra? Somente a África foi remida? Não tenhas a ousadia de dizer: Todo o orbe foi redimido, mas pereceu. Qual o invasor que atacou a Cristo, e ele perdeu o que era seu? Eis que “haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra”. Ainda te fartará, prosseguindo. Se o salmo tivesse dito só: “os confins da terra”, e não: “Todos os confins da terra”, haveriam de replicar: Pois temos confins da terra na Mauritânia. “Todos os confins da terra”. Assim disse. Ó herege, ele afirma: “todos”. De que lado escaparás da questão? Não tens por onde sair, para teres por onde entrar.


29 28.29Desculpai-me. Não quero discutir. Não se diga que minha palavra consegue alguma coisa. Dai atenção ao salmo. Lede o salmo. Eis o que Cristo sofreu. Seu sangue foi derramado. Eis o nosso redentor, eis o nosso preço. Que se me conte o que comprou. Por que perguntamos? Se alguém disser: Tolo, por que interrogas? Tens contigo o códice e podes verificar com que comprou. Procura descobrir o que comprou. Nele se encontra: “Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra”. Os confins da terra hão de se lembrar. Mas os hereges se esqueceram, e no entanto ouvem-no todo ano. Pensas que dão ouvidos ao proferir seu leitor: “Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra?” Vamos. Talvez seja um só versículo. Com o pensamento estavas ausente. Conversavas com teu irmão enquanto era recitado. Atenção. O leitor repete e sacode os surdos. “E adorarão em sua presença todas as famílias das nações”. Continua surdo. Não ouve. Insiste ele: “Porque do Senhor é o reino. E ele dominará os povos”. Guardai estes três versículos, irmãos. Hoje também entre os donatistas são cantados. Ou talvez o tenham apagado. Crede-me, irmãos. Fico agitado, abalo-me, admiro não sei bem o quê: a surdez ou a dureza de coração deles, a ponto de duvidar às vezes se eles têm esse versículo nos seus códices. Hoje todos acorrem à Igreja, hoje todos atentos ouvem o salmo, todos escutam com o coração ao alto. Mas, vamos supor que não estejam atentos. Acaso trata-se apenas de um versículo: “Haverão de ser lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra?” Já acordaste, mas ainda esfregas os olhos: “E adorarão em sua presença todas as famílias das nações”. Sacode o sono, pois estás sonolento e escuta: “Porque do Senhor é o reino, e ele dominará os povos”.


30 Não sei se ainda encontram o que replicar. Discutam com as Escrituras, não conosco. Eis o próprio códice. Combatam-no. Onde está o que diziam com jactância: Nós conservamos as Escrituras, para não serem queimadas? 1Foram conservadas para que tu te queimes. O que conservaste? Abre, lê. Tu as guardaste e as atacas. Por que preservaste das chamas o que procuras apagar com a língua? Não acredito, não creio que guardaste. Absolutamente não creio, não preservaste. Com verdade os nossos afirmam que entregaste. Comprova ser traidor quem leu o testamento e não o executa. Eis o que é lido e eu o executo. É lido e tu recusas. Qual foi a mão que o meteu nas mãos? Quem acredita e segue, ou quem se aflige porque é lido? Não quero saber quem o guardou. Em qualquer parte onde foi encontrado um códice, trata-se do testamento de nosso pai que sai de um esconderijo. Não sei que espécie de ladrões queria roubá-lo, não sei quais os perseguidores que procuraram queimá-lo. Onde quer que seja apresentado, seja lido. Por que provocas contenda? Somos irmãos. Por que pleiteamos? Nosso pai não norreu sem deixar testamento. Fez o testamento e morreu; morreu e ressuscitou. Discute-se sobre a herança dos mortos até que o testamento seja aberto. Quando é publicado, todos se calam, para que se abram e se leiam as tabuinhas. O juiz ouve atentamente, os advogados se calam, os pregoeiros impõem silêncio, todo o povo fica em suspenso, para que se leiam as vontades do morto, insensível no sepulcro. Ele jaz sem sensibilidade no sepulcro, e suas palavras são válidas. Cristo está sentado no céu, e se contradiz a seu testamento? Abra-se; leiamos. Somos irmãos. Por que disputamos? Aplaquese o nosso ânimo. Nosso pai não nos deixou intestados. Aquele que fez o testamento vive eternamente. Ouve as nossas vozes, e reconhece a sua. Leiamos. Por que abrir processo? Onde se achar a herança, agarremo-la. Abre o testamento, lê no primeiro capítulo do próprio saltério: “Pede-me” (Sl 2,8). Quem diz isso? Talvez não seja o Cristo. Lá se acha: “O Senhor me disse: Tu és o meu Filho, hoje eu te gerei” (ib 2,7). Fala, portanto, o Filho de Deus, ou o Pai se dirige ao Filho. O que o Pai diz ao Filho? “Pede-me, e dar-te-ei as nações por herança, e em domínio os confins da terra”. Costuma acontecer, irmãos, que ao se tratar de propriedade, pergunta-se quais são os lindeiros. O herdeiro informa-se entre os lindeiros, este ou aquele, qual o herdeiro, a quem é doado, ou quem compra. Entre quais lindeiros se procura? Entre os possuidores, este e aquele. Quem retirou todas as divisas, não deixou limítrofes. Para onde te voltares, encontrarás a Cristo. Tens por herança os confins da terra. Vem para cá, possuirás tudo comigo. Por que em litígio reclamas só uma parte? Vem para cá. Serás vencido para teu bem. Terás o todo. Ou ainda acusas? Já li o testamento e ainda calunias. Acusas talvez, porque o salmo disse: os confins da terra, e não: todos os confins da terra? Então leiamos. Como foi dito? “Haverão de se lembrar, de se converter ao Senhor todos os confins da terra. E adorarão em sua presença todas as famílias das nações. Porque do Senhor é o reino. E ele dominará todos os povos”. É dele, não vosso. Reconhecei o Senhor. Reconhecei a propriedade do Senhor.



31 Mas também vós, querendo possuir vossa unidade particular e não a comum unidade com Cristo, querendo dominar na terra e não reinar com ele no céu, possuís vossas casas. Algumas vezes os procuramos, dizendo: Busquemos a verdade, encontremos a verdade. Respondem-nos: Ficai com o que tendes. Possues as tuas ovelhas e eu possuo as minhas. Não moleste as minhas ovelhas, porque eu também não molesto as tuas. Graças a Deus. As ovelhas são minhas, as ovelhas são suas. E o que comprou Cristo? Ao contrário, não sejam minhas, nem tuas, e sim daquele que as comprou, as assinalou. Assim, pois, aquele que planta, nada é; aquele que rega, nada é; mas importa tão-somente Deus, que dá o crescimento (1Cor 3,7). Por que haveremos de ter, eu as minhas e tu as tuas? Se Cristo está ali, para lá se dirijam as minhas, pois não são minhas; se Cristo está aqui, as tuas venham para cá, uma vez que não são tuas. Por causa destas apropriações, beijem-nos a cabeça e as mãos, e pereçam os filhos de outro. Responde ele: Não é propriedade minha. Que é isto? Vejamos se não é tua propriedade, se não a reivindicas. Eu trabalho em prol do nome de Cristo, e tu, pelo nome de Donato. Se tua meta é Cristo, ele está em toda a parte. Tu afirmas: Cristo está aqui (Mt 24,23), e eu digo: ele está em toda a parte. Louvai, servos do Senhor, louvai o nome do Senhor (Sl 112,1). Desde onde louvam? Até onde? Desde o nascente ao poente louvai o nome do Senhor (ib). Eis a Igreja que eu mostro, eis o que Cristo comprou, eis o que redimiu, eis por quem deu o sangue. Mas, o que replicas? Também eu recolho para ele. “Quem não ajunta comigo, dispersa” (Mt 12,30). Divides a unidade, procuras tuas posses. Porque têm elas o nome de Cristo? Por que para defenderes a tua propriedade, colocaste o título de Cristo. Acaso não é isto o que fazem em sua casa? No intuito de que não seja invadida por um poderoso, põem o título de um grande, título falso. Quer ser o dono, e proteger o frontispício de sua casa com título alheio. Quem ler o título, assustado com o poderio de quem possui tal nome, abstém-se de invadi-la. Assim agiram eles, ao condenarem os maximianistas. Compareceram diante dos juízes e leram as atas de seu concílio, 2 de certo modo ostentando títulos, para parecerem bispos. Então interrogou o juiz: Há outro bispo aqui, do partido de Donato? Respondeu o oficial: Nós só conhecemos o católico Aurélio. Temendo as leis, deram o nome de um só bispo. Querendo ser ouvidos pelo juiz, acrescentaram o nome de Cristo. Em sua propriedade puseram o título dele. O Senhor é bom. Que os perdoe, e onde encontrar o seu título, reivindique-o para o seu domínio. É poderosa a sua misericórdia, e pode congregar quaisquer que encontrar usando o nome de Cristo. Vede, irmãos. Quando um potentado encontra seu título, não reivindica judicialmente aquilo e não declara: Não poria o meu título, se não fosse meu? Pôs os meus títulos, é meu. Onde encontro o meu nome é meu. Talvez mudará o título? O título que havia fica; muda o possuidor, o título não muda. Assim também, se os que têm o batismo de Cristo vêm à unidade, não mudamos o título, nem o apagamos; reconhecemos o título de nosso rei, o título de nosso imperador. Mas, o que falamos? Ó casa infeliz! Possua-te aquele cujo título tens. Tens o título de Cristo, não estejas na posse de Donato.


32 Falamos, muito, irmãos. Não se apague de vossa memória o que lemos hoje. Repito-o e com frequência convém repeti-lo. Por causa do próprio dia, isto é, pelo mistério deste dia, insisto convosco. Não saia a lembrança de vossos corações. “Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra. E adorarão em sua presença todas as famílias das nações. Porque do Senhor é o reino. E ele dominará os povos”. Diante de tão clara e evidente demonstração de domínio de Cristo, não escuteis as palavras do caluniador. Seja o que for que repliquem, são homens os que afirmam; aqui, porém, está o que diz Deus.

1 Os donatistas declaravam que haviam conservado as Sagradas Escrituras, e que os nossos as haviam entregado.
2 Concílio Bagaitano de 394

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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