1 1“Oração de Davi”. Oração atribuível ao Senhor, unido à Igreja, seu corpo.
2 1.2“Atende, ó Deus, a minha justiça, ouve minha súplica. Presta ouvidos a minha prece, que não parte de lábios falsos”, não chega a ti procedente de lábios enganadores. “Meu julgamento derive de tua face”, isto é, esclarecido pela luz de teu conhecimento, que eu julgue com verdade. Ou então, proceda meu julgamento de tua face, não de lábios falsos, a saber, não sentencie ao julgar senão o que entendo em ti. “Meus olhos vejam a equidade”: refiro-me aos olhos do coração.
3 3“Sondaste meu coração e o visitaste à noite”, quer dizer, meu coração foi experimentado pela visita da tribu-lação. “Pelo fogo me examinaste e em mim não se encontrou iniquidade”. Foi denominada noite, que costuma perturbar, e fogo que queima a própria tribulação, com a qual fui examinado e considerado justo.
4 4“Não se ocupe minha boca das obras dos homens”. Não saia de minha boca senão o que toca a tua glória e teu louvor; mas não trate das obras humanas realizadas à margem de tua vontade. “Por causa das palavras de teus lábios”, palavras de tua paz ou de teus profetas. “Eu segui duros caminhos”, enveredei pelos laboriosos caminhos da mortalidade humana e da paixão.
5 5“Para firmar meus passos nas tuas veredas”. Que se torne perfeita a caridade da Igreja, através de caminhos estreitos que terminam em teu repouso. “Para não se modificarem minhas pegadas”, não se apagarem as balizas de meu caminho, sinais impressos pelos sacramentos e as Escrituras apostólicas. Olhem-nos, observem-nos os que almejam me seguir. Ou talvez, permaneça eu estável na eternidade, após ter palmilhado duros caminhos e ter firmado meus passos nas estreitezas de tuas veredas.
6 6“Eu clamei, porque me ouviste, ó meu Deus”. Com livre e válida intensidade, dirigi-te minhas preces. Ouviste-me ao orar com menor fervor, para que pudesse rezar instantemente. “Inclina para mim o teu ouvido e escuta minhas palavras”. Não se subtraia o entendimento, por causa de minha humilde condição.
7 7“Mostra admiravelmente tuas misericórdias”. Não se banalizem tuas misericórdias, não aconteça que sejam pouco amadas.
8 8.9“Salva os que em ti esperam daqueles que resistem a tua direita”, dos contraditórios diante do favor que me demonstras. “Guarda-me, Senhor, qual pupila dos olhos”, que é aparentemente pequenina, insignificante; no entanto, ela regula a penetração do olhar que distingue a luz das trevas, assim como o julgamento divino ao discernir justos e pecadores passa pela humanidade de Cristo. “A sombra de tuas asas protege-me”. No reduto de tua caridade e misericórdia, “protege-me da face dos ímpios que me afligiram”.
9 9.10“Os inimigos puseram cerco a minha alma, engordaram em excesso”. Os obesos encheram-se de alegria exuberante depois que sua ambição se saciou de crimes. “Sua boca falou com arrogância”. Assim, a sua boca falou com soberba: “Salve rei dos judeus” (Mt 27,29) etc.
10 11“Lançaram-me para fora, e então me cercaram”. Lançaram-me para fora da cidade, cercaram-me na cruz. “Decidiram cravar os olhos no chão”. Fixaram por meta do coração os bens terrenos. Julgavam ter perpetrado grande crime aquele que estavam matando, e mal nenhum eles que o matavam.
11 12“Atacaram-me qual leão impaciente pela presa”. Atacavam-me como aquele adversário que rodeia, procurando quem devorar (1Pd 5,8). “E como o leãozinho encolhido no covil”. Leãozinho, o povo, ao qual se disse: “Sois filhos do diabo” (Jo 8,44), a planejar insídias, assediando e arruinando o justo.
12 13“Levanta-te, Senhor, vai ao encontro deles e suplanta-os”. Levanta-te, Senhor. Eles pensam que dormes e não levas em conta as iniquidades dos homens; ao contrário, sejam eles obcecados pela própria malícia e o castigo venha antecipadamente. Assim, suplanta-os.
13 14“Livra dos ímpios a minha alma”. Livra a minha alma, ressuscitando-me da morte infligida pelos ímpios. “Tua mão tire dos inimigos a tua espada”. Minha alma é tua espada, arrebatada pela tua mão, teu poder eterno, a fim de debelar os reinos da iniquidade e separar os justos dos ímpios. Tira-a dos inimigos, dos meus inimigos. Tua mão, teu poder. “Arruinando-os, Senhor, da terra, dispersa-os durante a vida”. Senhor, arruinando-os na terra em que habitam, dispersa-os pelo orbe nesta vida, considerada a única por aqueles que não esperam a vida eterna. “Seu ventre se saciou com os teus tesouros”. Não apenas os atingirá este castigo visível, mas também sua consciência se encheu de pecados, de modo a se esquecerem de Deus. São trevas que fogem da luz da verdade. “Saturaram-se de coisas sórdidas”, saturaramse de imundícies, pisoteando as pérolas das palavras de Deus. “E deixaram os sobejos a seus pequeninos”, clamando: “Este pecado caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,25).
14 15“Eu, porém, aparecerei ante tua presença com tua justiça”. Não me mostrei aos de coração sórdido e tenebroso, cegos para a luz da sabedoria, mas comparecerei justificado em tua presença. “Serei saciado ao se manifestar a tua glória”. Enquanto eles, saturados de imundícies, não me podem entender, eu me saciarei, ao se manifestar a tua glória, naqueles que me conhecem. Na verdade, no versículo: “Saturam-se de coisas sórdidas”, alguns exemplares trazem: “saturaram-se de filhos”. Da ambiguidade do texto grego originou-se a dupla tradução
1 . Por filhos entendemos as obras. Bons filhos são as boas obras, maus filhos, as más obras. 1 LXX: uion ou ueion cf. Aug. Epist. 149,5,352,s.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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