Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 41

1 2Há muito anela nossa alma alegrar-se convosco a respeito da palavra de Deus, e nele vos saudar, pois ele é nosso auxílio e nossa salvação. Ouvi por nosso intermédio o que Deus nos inspira, e exultai nele conosco, em sua palavra, em sua verdade, em sua caridade. Tomamos um salmo, para vos comentar, de acordo com vosso desejo. Ele começa por um santo desejo, e diz quem o canta: “Como o cervo anseia pelas fontes das águas, assim aspira a minha alma por ti, meu Deus”. Quem além, quem quer que sejas tu, se está em teu poder o que buscas? No entanto, não é apenas um só homem, mas é um só corpo: o corpo de Cristo, que é a Igreja (cf Cl 1,24). Não se encontra tal desejo em todos que entram na Igreja; contudo todos os que experimentaram a suavidade do Senhor, e que reconhecem no cântico aquilo que a saboreiam, não pensem que estão sozinhos, mas acreditem que tais sementes foram espalhadas no campo do Senhor por todo o orbe da terra, e constitui a voz de certa unidade cristã o que segue: “Como o cervo anseia pelas fontes das águas, assim aspira a minha alma por ti, meu Deus”. De fato, não seria errado entender que se trata da voz dos que, ainda catecúmenos, se apressam a aceder à graça do santo batismo. Daí provém que solenemente se canta este salmo, para que desejem a fonte da remissão dos pecados, “como o cervo anseia pelas fontes das águas”. Assim seja, e na Igreja tenha aceitação verdadeira e solene tal interpretação. Contudo, irmãos, parece-me que mesmo com o batismo não se sacia este desejo dos fiéis. Talvez, se sabem onde estão como peregrinos, e para onde devem passar, inflamem-se, com anelos mais ardentes.

2 1O título do salmo é o seguinte: “Para o fim. Inteligência, dos filhos de Coré. Salmo”. Encontram-se os filhos de Coré igualmente em títulos de outros salmos, 1 e lembramos-nos de já haver explicado e nos ter estendido sobre o significado deste nome. Apesar disto, agora relembramos o título, e sem prejuízo do que foi explanado, falemos sobre ele, porque nem todos estavam presentes durante nossa explicação. Houve um homem chamado Coré e teve filhos, que eram conhecidos sob o nome de filhos de Coré (cf Nm 26,11). Nós, porém, perscrutemos o segredo desta figura, e o nome dê à luz o mistério de que está prenhe. É grande sacramento a denominação de filhos de Coré atribuída aos cristãos. Por que filhos de Coré? Porque filhos do esposo, filhos de Cristo. Os cristãos são apelidados filhos do esposo. Por que razão Cristo seria Coré? Porque Coré significa Calvário. Vamos um pouco longe. Perguntava qual a razão de se denominar a Cristo de Coré. Procuro saber com maior insistência por que Cristo tem referência a Calvário. Logo não nos ocorre que Cristo foi crucificado no Calvário (cf Mt 27,33)? É claro que ocorre. Por conseguinte, os filhos do esposo (cf Mt 9,15), os filhos de sua paixão, os filhos redimidos em seu sangue, os filhos de sua cruz, que na fronte trazem o sinal daquilo que os inimigos fincaram no Calvário, chamam-se filhos de Coré; para que eles o entendam é que se canta o presente salmo. Despertemos, portanto, nossa inteligência; e se é para nós que se canta, entendamos. O que haveremos de entender? E qual o objeto deste conhecimento, proveniente do canto do salmo? Ouso dizer: “Sua realidade invisível tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas” (cf Rm 1,20). Avante, irmãos. Compreendei minha avidez, tomai parte neste meu desejo; amemos conjuntamente, juntos tenhamos esta sede ardente, juntos corramos para a fonte do entendimento. Aspiremos, portanto, como o cervo pela fonte, não a fonte desejada pelos que ainda não receberam o batismo em vista da remissão dos pecados, mas, já batizados, anelemos por aquela fonte da qual diz outra passagem escriturística: “Pois em ti está a fonte da vida”. Fonte e luz igualmente o designam. Porque “na tua luz contemplamos a luz” (Sl 35,10). Se Cristo é fonte, também é luz. Com razão é também a inteligência, porque sacia a alma ávida de saber. Todo aquele que entende, é iluminado por certa luz não corporal, não carnal, não exterior, mas interior. Existe, portanto, irmãos, certa luz interior, que não possuem os que não entendem. Daí dirigir-se o Apóstolo, com censuras, àqueles que desejam esta fonte de vida, e dela alguma coisa percebem: “Não andeis mais como andam os demais gentios, na futilidade de seus pensamentos, com entendimento entenebrecido, alienados da vida de Deus pela sua ignorância e pela cegueira dos seus corações” (Ef 4,17.18). Se eles têm a inteligência obscurecida, isto é, obscurecem-se porque não entendem, os que entendem ficam iluminados. Corre à fonte, deseja o manancial das águas. Junto de Deus está a fonte da vida e a fonte inexaurível; na sua luz temos uma luz indefectível. Deseja tal luz, certa fonte, certa luz que teus olhos desconhecem. Os olhos interiores são capazes de vê-la. A sede interior arde no desejo de tal fonte. Corre para a fonte, deseja-a; mas não de qualquer forma, nem corras como qualquer animal. Corre como o cervo. O que quer dizer: como o cervo? Não haja tardança na corrida, corre sem preguiça, sem disídia anela pela fonte. Sabemos que o cervo tem grande velocidade.

3 2Mas talvez a Escritura não quis apenas isto levar em conta no cervo, mas também insinuar outra coisa. Ouve o que acontece ainda ao cervo. Ele mata as serpentes, e depois de matá-las sente sede mais ardente, e por isso, mortas as serpentes, corre mais veloz para as fontes. As serpentes representam teus vícios. Consome as serpentes da iniquidade, e desejarás com mais ardor a fonte da verdade. A avareza talvez te insinua uma ação tenebrosa, e sibila contra a palavra de Deus, contra os mandamentos de Deus. Se alguém te diz: Despreza-a, não pratiques o mal; se preferes fazer o mal a desprezar alguma vantagem passageira, escolhes a mordedura da serpente, ao invés de matá-la. Por conseguinte, se ainda favoreces teu vício, tua ambição, tua avareza, tua serpente, se ainda encontro em ti tal desejo, como correrás para a fonte das águas? Quando hás de aspirar pela fonte da sabedoria, se ainda sofres as consequências do veneno da malícia? Mata em ti tudo o que é contrário à verdade; e se te vires de certo modo isento das perversas ambições, não pares como se não houvesse mais o que desejar. Existe ainda alguma coisa que te eleve, se já conseguiste afastar os obstáculos que havia em ti. Se és um cervo, provavelmente me dirás: Deus sabe que não sou mais avaro, não desejo o bem alheio, não ardo de cupidez por um adultério, não me consumo de ódio ou inveja de alguém, etc. Dirás: Não faço tais coisas, e talvez procuras o que te pode deleitar. Anela por algum prazer; aspira pelas “fontes das águas”. Deus tem com que te refazer, e desalterar aquele que o procura sedento, depois de matar as serpentes, como um cervo veloz.

4 Nota-se outra coisa ainda no cervo. Conta-se que os cervos, e isto alguns já presenciaram (ninguém escreveria isto a respeito deles, se não o tivesse visto), conta-se que os cervos quando avançam no meio de um bando, ou quando procuram outras partes da terra nadando, apoiam suas cabeças uns nos outros, de sorte que um vai à frente, e o segundo põe sobre ele a cabeça, e assim em seguida, todos eles, até o fim do rebanho. Quando o da frente, que suportava em primeiro lugar o peso da cabeça, fica cansado, vai para o fim, de modo que outro toma o seu lugar, e carrega o que ele carregava, para que o primeiro descance, apoiando a cabeça, como os demais faziam: assim vão se alternando em carregar o peso e terminam a viagem, ajudando-se mutuamente. Não seria de uma espécie de cervos que fala o Apóstolo: “Carregai o peso uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2)? 1 Cf. Sl 41.43-48; 83.84.86.87.

5 3Um cervo desses já fiel, embora ainda não veja o que crê, procura entender o que ama, sofre da parte dos cervos que, ao contrário, têm a inteligência obscurecida, estão mergulhados nas trevas interiores, e obcecados pela cupidez dos vícios. Além disso, insultam o fiel, que não mostra aquele em quem crê, dizendo: “Onde está o teu Deus?” Ouçamos o que este cervo replica a tais palavras, a fim de que possamos também fazer o mesmo. Em primeiro lugar, exprimiu qual a sua sede: “Como o cervo anseia pelas fontes das águas, assim aspira a minha alma por ti, meu Deus”. Mas, se o cervo busca as fontes das águas para se lavar? Não sabemos se é para beber ou para se lavar. Ouve como continua o salmista, e cessa a interrogação: “Minha alma tem sede do Deus vivo”. Digo: “Como o cervo anseia pelas fontes das águas, assim aspira a minha alma por ti, meu Deus”, do mesmo modo que declaro: “Minha alma tem sede do Deus vivo”. De que tem sede? “Quando irei me apresentar ante a face de Deus?” Esta é a minha sede: ir me apresentar. Tenho sede na peregrinação, tenho sede no percurso; serei desalterado quando chegar. Mas: “Quando irei?” Para Deus será em breve, mas tarda para meu desejo. “Quando irei apresentar-me ante a face de Deus?” Este desejo é idêntico àquele que fez o salmista exclamar em outra parte: “Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei: Habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida” (Sl 26,4). Com que intuito? “Para contemplar as delícias do Senhor, quando me apresentar ante a face do Senhor”.

6 4Neste ínterim, enquanto medito, enquanto corro, enquanto estou a caminho, antes de ir, antes de apresentar-me, “minhas lágrimas noite e dia se tornaram o meu pão, quando se me rediz: Onde está o teu Deus? Minhas lágrimas se tornaram”, não minha amargura, mas o “meu pão”. Eram-me suaves estas lágrimas. Tendo sede daquela fonte, como ainda não podia beber, com maior avidez absorvia minhas lágrimas. Ele não disse: Minhas lágrimas se tornaram minha bebida, para não parecer que as desejava, como se fossem fontes de águas. Tornaram-se meu pão as minhas lágrimas, nessas delongas, mas permanece a sede que me devora e me arrasta para as fontes das águas. Efetivamente, engolindo suas lágrimas, sem dúvida sente mais sede das águas das fontes. Em verdade, noite e dia minhas lágrimas se tornaram o meu pão. Os homens tomam de dia este alimento que se chama pão; de noite, dormem. Quanto ao pão das lágrimas, eles o comem dia e noite, quer se entenda por dia a prosperidade neste mundo e que por noite se signifique a adversidade. Na prosperidade ou na adversidade derramo as lágrimas de meus anelos, cuja avidez não diminui. Quando no mundo tudo corre bem para mim, reputo como mal, enquanto não me apresento ante a face de Deus. Por que tentas levar-me a congratular-me, como se fosse dia, quando a prosperidade mundana me sorri? Não é enganadora? Não é transitória, caduca, mortal? Não é temporal, volúvel, passageira? Não causa mais decepção do que deleite? Como então, mesmo com ela, as minhas lágrimas não se tornariam o meu pão? Verdadeiramente, mesmo quando a felicidade deste mundo nos cerca com seu brilho, enquanto estamos neste corpo, estamos em pregrinação longe do Senhor (cf 2Cor 5,6), “quando se me rediz cada dia: Onde está o teu Deus?” Se for um pagão que me diz isto, não posso replicar-lhe: “Onde está o teu Deus?” Pois, há de mostrar-me seu deus com o dedo. Aponta para uma pedra e responde: Aqui está o meu deus. “Onde está o teu Deus?” Se eu zombar da pedra e aquele que me mostrou ficar envergonhado, tira os olhos da pedra, olha para o céu, e talvez apontando para o sol, dirá novamente: Aqui está o meu deus. “Onde está o teu Deus?” Ele encontra o que mostrar aos olhos corporais; eu, porém, fico como se não tivesse o que mostrar. De fato é ele que não tem olhos para ver o que eu poderia mostrar. Ele pôde indicar a meus olhos corporais o sol, seu deus; a que olhos eu apresentarei o criador do sol?

7 Porquanto ouço diariamente: “Onde está o teu Deus?” e alimentado com minhas lágrimas cotidianas, medito noite e dia a pergunta que ouvi: “Onde está o teu Deus?” procuro também eu o meu Deus, a fim de verificar se é possível não só acreditar, mas igualmente ver alguma coisa. Pois, vejo as coisas que meu Deus criou, mas não vejo meu Deus que as fez. Mas, tendo em vista que assim como o cervo anseia pelas fontes das águas, e junto de Deus está a fonte da vida, e ainda este salmo para inteligência têm por título: salmo dos filhos de Coré; considerando também que a realidade invisível de Deus tornou-se inteligível através das criaturas, o que farei para encontrar o meu Deus? Olho a terra; ela foi criada. Grande é sua beleza, mas teve um artífice. Admirável o milagre da germinação das sementes, mas tudo isto teve um criador. Mostro a grandeza do mar e sua extensão, com espanto e admiração, e busco seu artífice. Contemplo o céu e a beleza das estrelas; admiro o esplendor do sol, suficiente para iluminar o dia, e a lua que alivia as trevas noturnas. Tudo isto é admirável, louvável, estupendo. E não se acham só na terra, mas também no céu. Mas, ainda não se estanca a minha sede. Louvo tudo isso que admiro, mas tenho sede daquele que o fez. Volto-me para mim mesmo, e perscruto, busco quem sou eu que me interrogo desta maneira. Descubro que tenho corpo e alma; governo o primeiro, sou governado pela segunda. O corpo deve servir e a alma dirigir. Distingo que minha alma é melhor do que o corpo, e verifico que a alma, não o corpo, é que faz tais perguntas. No entanto, sei que percorro com o corpo tudo o que percorri. Louvava a terra, e a conhecera pelos olhos. Tecia elogios ao mar, e o vira com os olhos. Conhecera com os olhos o céu, os astros, o sol e a lua, que elogiara. Os olhos, membros corporais, são as janelas da alma. Está dentro quem as vê através delas; quando ela está ausente pelo pensamento, é em vão que se abrem as janelas. Não alcanço com estes olhos meu Deus, que fez todos esses objetos visíveis a meus olhos. Contemple a alma algo por si mesma, e verifique se não difere do que percebo com os olhos, como a cor e a luz; pelos ouvidos, como o canto e o som; pelo nariz, como os odores suaves; pelo paladar e a língua, como as coisas saborosas; por todo o corpo, como o que é duro ou mole, frio ou quente, áspero ou liso; mas, se ao contrário, não é algo que se vê interiormente? O que significa ver interiormente? Ver o que não é cor, nem som, nem odor, nem sabor, nem calor, nem frio, nem objeto duro ou mole. Queira saber a cor da sabedoria. Ao pensarmos na justiça, e gozarmos interiormente de sua beleza, através do pensamento, o que soa a nossos ouvidos? O que pomos na boca? Que vapor entra pelo nariz? O que tocam as mãos e nos dá prazer? Está no interior, é bela, é louvada e contemplada; e se os olhos estão nas trevas, a alma goza daquela luz. O que é que via Tobias, quando dava conselhos de vida ao filho que via, enquanto ele estava cego (cf Tb 4,2)? Há alguma coisa que percebe a alma, ela que rege o corpo, o orienta e o habita. Ela não o capta pelos olhos corporais, nem pelos ouvidos, nem pelo nariz, nem pelo paladar, nem pelo tato corporal, mas por si mesma; e de fato, vê melhor por si mesma do que por meio de seu servo. É bem assim. Vê-se a si mesma por si. A alma, como se conhece, se vê. Não procura auxílio dos olhos corporais para se ver. Ao contrário. Para se ver em si como se conhece, faz abstração de todos os sentidos corporais, que lhe trazem impedimento e barulho. Mas, talvez seja Deus algo de semelhante à alma? É verdade que Deus só pode ser visto pela alma, mas não como a alma se vê. A alma procura saber alguma coisa de Deus, a respeito de que não a isultem os que perguntam: “Onde está o teu Deus?” Busca a verdade imutável, a substância indefectível. Tal não é a alma, pois retrocede e avança, conhece e ignora, lembra-se e esquece-se; ora quer uma coisa, ora não quer. Em Deus não há tal mutabilidade. Se disser: Deus é mutável, insultar-me-ão os que me interrogam: “Onde está o teu Deus?”

8 5Ao procurar meu Deus entre as coisas visíveis e corporais, sem encontrá-lo; ao buscar sua substância em mim mesmo, como se fosse semelhante a mim, sem igualmente o achar, percebo que meu Deus é alguma coisa acima de minha alma. Portanto, para atingi-lo “meditei essas coisas, e minha alma se expandiu acima de si mesma”. Quando minha alma poderia atingir o que está acima dela, se não se expandisse acima de si mesma? Se permanecesse em si, nada veria a não ser a si mesma; e por se ver, nem por isso veria seu Deus. Digam os que me insultam: “Onde está o teu Deus?” digam-no. Eu, enquanto não vejo, enquanto sofro com essas delongas, dia e noite absorvo as minhas lágrimas. Digam eles ainda: “Onde está o teu Deus?” Consequentemente, procuro meu Deus em meio aos corpos terrestres ou celestes, e não o encontro; procuro sua substância em minha alma, mas não a encontro; entreguei-me a cogitações sobre meu Deus, desejoso de que se me tornasse inteligível sua realidade invisível, através das criaturas (cf Rm 1,20) e “minha alma se expandiu acima de si mesma”, e só lhe resta atingir a meu Deus. A casa de meu Deus está acima de minha alma; ali ele habita, de lá me olha, de lá me criou, me governa, cuida de mim, me incita, chama, dirige, conduz e guia.

9 Aquele que possui ocultamente uma excelsa morada, tem igualmente na terra seu tabernáculo. Seu tabernáculo terrestre é sua Igreja, que ainda peregrina. Mas é na Igreja que há de ser procurado, porque no tabernáculo se encontra o caminho que leva à casa. Por isso, expandia minha alma acima de mim mesmo para atingir a meu Deus; por que assim agi? “Porque entrarei no local do tabernáculo”. Fora do tabernáculo, estarei procurando meu Deus num caminho errado. “Porque entrarei no local do tabernáculo admirável, até a casa de Deus”. Entrarei no local do tabernáculo, do tabernáculo admirável, até a casa de Deus. Pois, já admiro muitas coisas no tabernáculo. Oh, quantas coisas admiro no tabernáculo! Pois, tabernáculo de Deus na terra são os homens fiéis; admiro neles o serviço que seus membros lhes prestam, porque o pecado não impera neles, de sorte que obedeçam a seus desejos, nem entregam seus membros, como armas de injustiça, ao pecado, mas se oferecem ao Deus vivo, por meio de boas obras (Rm 6,12.13). Admiro que os membros corporais sejam subordinados à alma que serve a Deus. Contemplo a própria alma que obedece a Deus, planeja seus atos, refreia as ambições, repele a ignorância, tolera todas as coisas ásperas e duras, dispendendose em justiça e caridade para com os outros. Contemplo também estas virtudes na alma; mas ainda ando no lugar do tabernáculo. Vou além; e embora seja admirável o tabernáculo, fico estupefacto ao chegar à casa de Deus. A esta casa se refere outro salmo, após ter-se proposto uma questão dura e difícil: a de saber por que razão nesta terra com frequência tudo corre bem para os maus, e mal para os bons, e disse: “Meditei para compreender este problema. Pareceu-me penosa tarefa, até que entrei no santuário de Deus e percebi qual a sua sorte” (Sl 72,16-17). A fonte donde brota o entendimento está no santuário de Deus, na casa de Deus. Ali entendeu o salmista a sorte de cada um deles, e encontrou a solução do problema da felicidade dos iníquos e das dificuldades dos justos. Como solucionou? Viu que as penas dos maus são adiadas, reservadas para o fim, e que os bons são provados aqui, por meio de trabalhos, para que no final consigam a herança. Foi isto que ele veio a saber no santuário de Deus, entendendo as últimas soluções. Subindo do tabernáculo chegou à casa de Deus. No entanto, ao contemplar as partes do tabernáculo, foi conduzido à casa de Deus, seguindo certa suavidade, e um deleite interior e oculto, como se da casa de Deus viesse o som suave de algum órgão. Enquanto andava no tabernáculo, e tendo ouvido determinado som interior, foi conduzido por sua suavidade, e pôs-se a seguir aquela melodia, fez abstração de todos os ruídos da carne e do sangue, e alcançou a casa de Deus. Relembra seu caminho e por onde foi conduzido, como se lhe disséssemos: Contemplavas o tabernáculo nesta terra. Como chegaste ao mais recôndito da casa de Deus? “Entre gritos de alegria e de louvor, e sons festivos”. Quando aqui na terra, os homens fazem uma festa estrondosa, têm o costume de pôr instrumentos e músicos, ou qualquer espécie de música que se presta à lascívia, ou a excitam, diante de sua casa. E se a ouvirmos ao passar por ali, o que dizemos? O que está acontecendo aqui? E obtemos a resposta de que se trata de uma festa. Aqui se celebra um natalício, ou um casamento, de sorte que aqueles cantos não parecem inadequados, mas se desculpa a sensualidade com a festa. Ao invés, na casa de Deus, a festa é eterna. Ali não se celebra coisa alguma que seja transitória. O coro dos anjos é eternamente festivo. A presença de Deus traz uma alegria indefectível. É um dia de festa, sem início e sem fim. Daquela eterna e perpétua festividade ressoa não sei bem que eco canoro, suave aos ouvidos de nosso coração; mas isto se o ruído do mundo não o abafa. O eco daquela festa é agradável ao ouvido daquele que anda no tabernáculo e considera os milagres de Deus em prol da redenção dos fiéis, e ainda atrai fortemente o cervo às fontes das águas.

10 6Mas, irmãos, enquanto estamos neste corpo, estamos longe do Senhor, o corpo corruptível pesa sobre a alma e — tenda de argila — oprime a mente pensativa (cf 2Cor 5,6; Sb 9,15). Se conseguimos dissipar um pouco as névoas que nos cercam, caminhando pelo desejo, uma vez ou outra alcançamos aquele som, de forma a captarmos, após muitos esforços, algum dos bens daquela casa; mas, devido ao peso de nossa fraqueza, recaímos em nossos hábitos e reincidimos em nossos costumes. Da mesma forma que ali havíamos encontrado motivos de alegria, aqui não nos faltam ocasiões de gemermos. Em consequência de tudo isto, o cervo absorve noite e dia de suas lágrimas e impelido por seus desejos às fontes das águas, a saber, a doçura interior que vem de Deus, expande sua alma acima de si, para atingir os bens superiores. Caminha em direção ao lugar do tabernáculo admirável, até a casa de Deus. Levado pela alegria causada pelo som interior e inteligível, despreza as riquezas exteriores, e é arrebatado pelas interiores. Mas não deixa de ser homem e ainda geme, ainda carrega a frágil carne, ainda corre perigo no meio dos escândalos deste mundo. Volta, portanto, o olhar para si mesmo, como se tivesse partido de lá, e diz a si mesmo no meio destas tristezas, comparando os bens atuais com aqueles que fora ver, e saiu depois de ter visto: “Por que estás triste, ó minha alma? E por que me perturbas?” Assim é. Alegramo-nos por causa de determinada doçura interior e por termos percebido, apesar de ter sido apenas breve e rapidamente, algo de imutável, com a penetração do espírito. Por que ainda me perturbas, por que estás triste ainda? Pois, não duvidas a respeito de teu Deus. Tens o que responder aos que te perguntam: “Onde está o teu Deus?” Já pressenti algo de imutável; por que me perturbas? “Espera em Deus”. E parece que a alma lhe responde silenciosamente: Por que te perturbo? Não será porque ainda não estou onde se encontra aquela suavidade, que de tal modo me raptou, quase de passagem? Por acaso já bebo daquela fonte, sem receio algum? Não receio mais escândalo algum? Já me sinto segura, como se já tivesse domado e vencido todas as concupiscências? Não está vigilante contra mim o diabo, meu inimigo? Não me arma cotidianamente laços insidiosos? Não queres que te perturbe, achando-me no mundo e peregrinando longe da casa de meu Deus? Perturbado por sua alma, replica: “Espera em Deus”, como que dando a razão desta perturbação: os males que superabundam neste mundo. Neste ínterim, habita nele, com esperança. Ver o que se espera, não é esperar. E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos (cf Rm 8,24-25).

11 “Espera em Deus”. Por que: “Espera? Porque ainda o louvarei”. Qual o objeto do louvor? “A salvação de minha face e meu Deus”. A salvação não pode provir de mim mesmo. Isto eu digo e confesso: “A salvação de minha face e meu Deus”. O salmista, receoso em consequência do que parcialmente conhece, inspeccionou solicitamente se o inimigo não estaria se insinuando, e ainda não diz: Estou completamente seguro. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção de nosso corpo (cf Rm 8,23). Ao se consumar em nós a salvação, viveremos sem fim na casa de Deus, sem fim louvando aquele ao qual foi dito: “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos” (Sl 83,5). Ainda não acontece tudo isso, porque a salvação prometida ainda não chegou; mas confesso a meu Deus em esperança, dizendo-lhe: “Salvação de minha face e meu Deus”. Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar (cf Rm 8,24). Persevera, portanto, para alcançares; persevera até que venha a salvação. Escuta a teu Deus, que te fala no teu íntimo: “Espera no Senhor, age virilmente, conforte-se teu coração e espera no Senhor” (Sl 26,14), pois que “aquele que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 10,22; 24,13). “Por que estás triste, ó minha alma? E por que me perturbas? Espera em Deus; ainda o louvarei”. Meu louvor é o seguinte: “Salvação de minha face e meu Deus”.

12 7“Dentro de mim, inquieta-se a minha alma”. Acaso se perturba junto de Deus? Junto de mim é que se perturba. Ela se refazia perto do que é imutável, e junto do que é mutável se perturbava. Sei que é permanente a justiça de meu Deus, mas desconheço se a minha há de permanecer. O Apóstolo me atemoriza, ao dizer: “Aquele que julga estar de pé, tome cuidado para não cair” (1Cor 10,12). Uma vez que em mim não há firmeza, nem confio em mim mesmo: “Dentro de mim, inquieta-se a minha alma”. Queres que não se inquiete? Não pare em ti, e dize: “A ti, Senhor, elevei a minha alma” (Sl 24,1). Escuta a explicação desta passagem. Não confies em ti, mas espera em teu Deus. Se confias em ti, tua alma se inquieta, pois sabe que em ti não há segurança. Se minha alma se inquieta dentro de mim, só me resta a humildade, e que ela não presuma de si mesma. Só resta que a alma se torne muito pequena, e humilhe-se para merecer ser exaltada. Nada atribua a si mesma, a fim de que lhe conceda Deus o que lhe for útil. Dentro de mim se inquietou a minha alma e foi a soberba que causou tal inquietação, “por isso lembro-me de ti da terra do Jordão, e desde o pequeno monte do Hermon”. De onde me lembrei de ti? Do monte pequeno e da terra do Jordão. Talvez se refira ao batismo, que dá a remissão dos pecados. Ninguém corre em busca da remissão dos pecados sem antes não se desgostar de si mesmo. Ninguém acorre à procura da remissão dos pecados se não se confessar pecador; e ninguém se declara pecador, senão humilhando-se diante de Deus. “Por isso lembro-me de ti da terra do Jordão, e desde o pequeno monte”. Não foi de um monte elevado. Partindo do monte pequeno, ele se tornará grande, “pois todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 14,11; 18,14). Se procuras qual a interpretação desses nomes, verás que Jordão significa: descida deles. Desce, portanto, para subires; não te eleves, para não escorregares. “Desde o pequeno monte do Hermon”. Hermon traduz-se por: anátema. Censura-te a ti mesmo, desgostando-te de ti; desagradarás a Deus, se te comprazes em ti mesmo. Tendo em vista que Deus é quem nos dá todos os bens, porque ele é bom e não por sermos dignos, porque ele é misericordioso e não que tenhamos merecido alguma coisa, lembrei-me de Deus “da terra do Jordão e do Hermon”. Como se lembra com humildade, merecerá gozar ao ser exaltado. Não se exalta em si quem se gloria no Senhor.

13 8“Um abismo chama a outro abismo, ao fragor das tuas cascatas”. É possível que terminemos o salmo, porque me estimula a vossa atenção, cuja intensidade estou vendo. Não me preocupo tanto com vosso cansaço de tanto ouvir porquanto podeis verificar como estou coberto de suor, pelo esforço de falar. Vendo meu labor, certamente haveis de colaborar; não é por minha causa que me empenho, mas pela vossa. Portanto, ouvi; verifico que quereis escutar. “Um abismo chama outro abismo, ao fragor das tuas cascatas”. É a Deus que se dirige o salmista; dele se lembrou da terra do Jordão e do Hermon. Falou cheio de admiração: “Um abismo chama outro abismo, ao fragor das tuas cascatas”. Qual é o abismo que chama a outro? De fato, entender isto é um abismo. Abismo é um lugar profundo, impenetrável, incompreensível. Costuma-se dar este nome principalmente a uma imensa quantidade de água. É grande sua profundidade, a distância até o fundo, ao qual não se pode chegar. Finalmente, foi declarado em outra passagem: “Os teus juízos são como o abismo profundo” (Sl 35,7). A Escritura chama a atenção para o fato de que os juízos de Deus são incompreensíveis. Qual o abismo que invoca outro abismo? Se o abismo é uma profundeza, não seria um abismo o coração humano? O que há de mais profundo do que este abismo? Os homens podem falar, ser vistos através do movimento dos membros, ser ouvidos pela palavra; mas quem pode penetrar seu pensamento, examinar seu coração? Quem compreende o que faz internamente, o que pode, como age, como dispõe em seu íntimo, o que quer, o que não quer? Razoavelmente pode-se entender por abismo o homem, acerca do qual foi dito: “O homem sondará a profundidade do coração e Deus será exaltado” (Sl 63,7.8). Por conseguinte, se o homem é um abismo, como é que um abismo chama outro abismo? Seria um homem que chama a outrem? Invoca como Deus é invocado? Não. Mas invoca, quer dizer: chama a si. Pois, foi dito de alguém: Invoca a morte1 , isto é, vive de tal modo que chama a morte para si. Pois ninguém faz uma oração para invocar a morte, mas é levando uma vida má que os homens invocam a morte. “Um abismo chama outro abismo”. Um homem chama a outro. Ao se aprender a sabedoria, a fé, um abismo chama a outro. Os santos pregadores da palavra de Deus chamam outro abismo, porquanto eles mesmos são um abismo. Diz o Apóstolo, para notificar que eles são um abismo: “Pouco me importa ser julgado por vós ou por um tribunal humano” (1Cor 4,3). Ouvi o que diz adiante, para entenderdes a que ponto ele é um abismo: “Eu também não me julgo a mim mesmo” (1Cor 4,3). Acreditais haver no homem tão grande profundidade que ele mesmo não sabe o que existe em si? Quanta profundidade tinha a fraqueza latente em Pedro, quando desconhecia o que se passava no seu íntimo e com temeridade prometia que haveria de morrer com o Senhor ou por ele! Que abismo! Este abismo, contudo, era patente aos olhos de Deus. Pois, Cristo lhe prenunciou o que ele mesmo ignorava. Todo homem, portanto, por mais santo, por mais justo, por mais perfeito que seja, é um abismo, e chama outro abismo, quando prega a outrem verdades da fé, ou relativas à vida eterna. É útil o abismo àquele que ele chama, se o faz ao fragor de tuas cascatas. “Um abismo chama a outro abismo”, um homem lucra a outro, mas não com sua voz, mas “ao fragor de tuas cascatas”.

14 Existe outro modo de entender: “Um abismo chama a outro abismo, ao fragor de tuas cascatas”. Fico tremendo, quando minha alma está perturbada, e tenho um medo veemente de teus juízos, pois “os teus juízos são como o abismo profundo” (Sl 35,7; 41,8), e “um abismo chama a outro abismo”. Existe certa condenação, proferida num juízo teu, enquanto estamos presos a esta carne mortal, aflita, pecadora, cheia de incomodidades e de escândalos, sujeita às concupiscências, pois disseste ao homem que pecara: “Terás de morrer”, e “com o suor de teu rosto comerás teu pão” (Gn 2,17; 3,19). Este é o primeiro abismo de teus juízos. Mas, se os homens viveram mal, “um abismo chama a outro abismo”, porque eles vão de pena em pena, de trevas em trevas, de profundezas em profundezas, de suplício em suplício, e do ardor da concupiscência às chamas do inferno. Provavelmente foi isso o que receou este homem, que dizia: “Dentro de mim inquieta-se a minha alma, por isso lembro-me de ti, Senhor, da terra do Jordão e do Hermon”. Devo ser humilde. Tive horror de teus juízos, e temor veemente de teus juízos; por isso “dentro de mim inquieta-se a minha alma”. Quais os teus juízos que receio? Seriam pequenos estes teus juízos? São grandes, duros, molestos; mas quem dera que fossem os únicos! “Um abismo chama a outro abismo, ao fragor de tuas cascatas”. Tu ameaças, tu afirmas que também após estes labores presentes resta outra condenação: “Ao fragor de tuas cascatas, um abismo chama a outro abismo”. Para onde me afastarei longe de tua face, e fugirei de teu espírito (cf Sl 138,7), se um abismo chama a outro abismo, e depois destes trabalhos ainda nos ameaçam outros mais graves?

15 “Todas as tuas ondas e vagas sobre mim passaram”. Vagas são as penas que já sinto, ondas as que me ameaçam. Tudo o que sofro constitui as tuas vagas; as ameaças são as ondas. Nas vagas acha-se o abismo que chama, nas ondas o que é chamado. Nos trabalhos que passo estão todas as tuas vagas; nos mais pesados que me ameaçam, chegaram a mim as tuas ondas. A ameaça ainda não pesa, mas está suspensa. Mas como tu libertas, disse a minha alma: “Espera em Deus; ainda o louvarei, a salvação de minha face e meu Deus”. À medida que aumentam os males, mais suave será tua misericórdia.

16 9Por conseguinte, diz: “Durante o dia concedeu o Senhor a sua misericórdia e de noite a declarará”. Ninguém quer quando está atribulado. Dai atenção enquanto tudo corre bem; ouvi quando tudo está bem; aprendei, enquanto estais tranquilos, a doutrina da sabedoria, e guardai a palavra de Deus, como alimento. Quando alguém se acha no meio da tribulação, deve ser-lhe útil o que ouviu quando estava tranquilo. Efetivamente, na prosperidade Deus te manda sua misericórdia, se o servires fielmente, porque te livra da tribulação; mas não te declara esta misericórdia que te concedeu durante o dia, a não ser quando chega a noite. Ao vir a tribulação, então seu auxílio não te abandona; mostra que foi genuíno o que te mandou durante o dia. Está escrito em certa passagem: “Oportuna é a sua misericórdia por ocasião da tribulação; é como a nuvem de chuva no tempo da seca” (Eclo 35,24). “Durante o dia concedeu o Senhor a sua misericórdia e à noite a declarará”. Demonstra que te socorreu somente ao chegar a tribulação, da qual serás livrado por aquilo que te prometeu durante o dia. Por isso, admoestados somos a imitar a formiga. Como o dia representa a prosperidade neste mundo, assim a noite é figura da adversidade. De outro modo ainda, o verão figura a prosperidade no mundo, e o inverno significa a adversidade. E o que faz a formiga? Junta no verão o que lhe será útil no inverno. Portanto, enquanto é verão, quando tudo corre bem, enquanto estais tranquilos, ouvi a palavra de Deus. Como será possível, no meio das tempestades deste mundo, atravessardes sem tribulação o mar inteiro? Como será possível? A quem isto pode suceder? Se acontece a alguém, ainda mais é de recear a própria tranquilidade. “Durante o dia concedeu o Senhor a sua misericórdia e à noite a declarará”.

17 9.10Qual o teu modo de agir nesta peregrinação? O que farás? “Está comigo a oração ao Deus da minha vida”. Assim faço eu, cervo sedento que anseia pelas fontes das águas, e recorda-se da suavidade daquela voz que o conduzirá através do tabernáculo até à casa de Deus, enquanto o corpo corruptível pesa sobre a alma (cf Sb 9,15): “Tenho em mim a oração ao Deus da minha vida”. No intuito de suplicar a meu Deus não preciso ir fazer compras além mar; ou navegar para ser atendido por meu Deus, ou ir buscar de longe incenso ou aromas, ou trazer do rebanho novilho ou carneiro: “Tenho em mim a oração ao Deus de minha vida”. Possuo em meu íntimo a vítima a imolar, dentro de mim o incenso a oferecer, interiormente o sacrifício com que tornarei propício o meu Deus: “Sacrifício a Deus é o espírito contrito” (Sl 50,19). Que espírito contrito tenho interiormente, qual sacrifício? Ouve: “Direi a meu Deus: És o meu protetor. Por que me esqueceste?”. Suporto tais trabalhos neste mundo que parece teres me esquecido. Tu, porém, estás me exercitando. Sei que diferes a concessão do que me prometeste, mas não retiras a promessa; todavia “por que me esqueceste?” Como se fôssemos nós a falar, clamou nossa Cabeça: “Deus, meu Deus, por que me desamparaste” (Sl 21,2; Mt 27,46)? “És o meu protetor. Por que me repeliste?”

18 11“Por que me repeliste? Por que me repeliste”, da fonte da inteligência imutável da verdade? Por que devido ao peso e à carga de minha iniquidade, repleto de desejos por ela, fui jogado para baixo? Esta mesma palavra se encontra em outra passagem: “Eu disse no meu êxtase”: quando contemplou algo de grandioso em seu arroubo “eu disse no meu êxtase: Fui rejeitado do alcance de teus olhos” (Sl 30,23). Comparou a sua situação com aquela à qual fora elevado, e viu que fora lançado longe do alcance dos olhos de Deus, como acontece aqui: “Por que me repeliste? E por que ando eu triste, quando me aflige o inimigo e quebra-me os ossos?” Trata-se daquele diabo tentador, e do crescimento da iniquidade, cuja abundância fará com que esfrie o amor de muitos (cf Mt 24,12). Ao constatarmos que muitas vezes as igrejas talvez cedam diante dos escândalos, não dirá o corpo de Cristo: O inimigo “quebra-me os ossos”? Pois, ossos designam os fortes, e por vezes até os fortes cedem diante das tentações. E se algum dos membros de Cristo considera tudo isso, não há de clamar em lugar do corpo de Cristo: “Por que me repeliste? E por que ando eu triste, quando me aflige o inimigo e quebra-me os ossos?” Não atinge apenas as minhas carnes, quebra-me os ossos. Vês aqueles que pareciam ter alguma fortaleza cederem diante das tentações os fracos perderem a confiança quando veem os fortes sucumbirem. Quão imensos são estes perigos, meus irmãos!

19 11.12“Os inimigos que me atormentam, recriminam-me”. Novamente aquela voz: “Quando se me rediz cada dia: Onde está o teu Deus?” São especialmente as igrejas que o dizem, em suas provas: “Onde está o teu Deus?” Quantas vezes ouviram-no os mártires, fortes e pacientes, quantas vezes foi-lhes dito: “Onde está o vosso Deus?” Ele vos livre, se puder. Os homens viam seus tormentos exteriores, mas não consideravam que interiormente seriam coroados. “Os inimigos que me atormentam, recriminam-me, a dizer cada dia: Onde está o teu Deus?’ Por isso, uma vez que minha alma me perturba, o que lhe direi senão: “Por que estás triste, ó minha alma? E por que me perturbas?” E ela de certo modo me responde: Não queres que te perturbe, estando cercada de tantos males? Suspiro pelo bem, tenho sede, labuto, e não queres que te perturbe? “Espera em Deus; ainda o louvarei”. Externa a própria confissão, repete em confirmação de sua esperança: “A salvação de minha face e meu Deus”.

1 Cf Esopo. Fabr. 6.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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