Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 36

SERMÃO I

1 É sabido que o último dia está terrível para aqueles que não querem estar seguros, vivendo honestamente, e preferem viver mal por muito tempo. Foi com utilidade que Deus deixou escondido aquele dia, para que os corações sempre estejam preparados, na expectativa do que há de vir, apesar de desconhecerem quando será. Nosso Senhor Jesus Cristo foi-nos enviado como mestre. Declarou ele que o Filho do homem ignorava qual seria aquele dia (Mc 13,32), porque não competia a seu magistério torná-lo conhecido de nós. O Pai não sabe algo que o Filho ignore, uma vez que a ciência do Pai identifica-se com a sua sabedoria. Seu Filho, seu Verbo é a sua sabedoria. Como não era de nosso proveito vir a conhecer o que sabia o mestre que viera nos ensinar (não viera, porém, ensinar aquilo que não nos era útil saber), não só, enquanto mestre, ensinou certas coisas, mas nesta mesma qualidade deixou de transmitir outras. Como um mestre sabia bem tanto ensinar o que convinha, como calar o que prejudicaria. Assim, por certo modo de expressão foi dito que o Filho não sabia o que não ensinou. Diz-se que ignora o que nos deixa desconhecer, conforme nos exprimimos no uso diário, por certo modo de falar, conforme eu disse acima. Chamamos de alegre o dia que nos torna alegres; e triste, o que nos faz tristes; e frio preguiçoso, o que nos faz indolentes. Também, ao invés, o Senhor declara: Agora sei. Foi dito a Abraão: “Agora sei que temos a Deus” (Gn 22,12). Deus o sabia, antes de experimentá-lo. Aquela provação se realizou para que nós soubéssemos o que Deus já sabia. Por nossa causa foi escrito o que ele conhecia antes da prova. Talvez o próprio Abraão ainda não soubesse de quanta força dispunha a sua fé. Cada qual, de fato, de certa maneira interrogado pela tentação, passa a conhecer-se a si mesmo. Pedro ignorava, efetivamente, de que forças dispunha a sua fé, quando disse ao Senhor: “Estou pronto a ir contigo à morte” (Lc 22,33). O Senhor, todavia, que o conhecia, predisse uma defecção, anunciando-lhe sua fraqueza, como se estivesse tocando-lhe o pulso. Em consequência, Pedro, que antes da tentação presumira de si mesmo, na tentação aprendeu a conhecer-se. Assim, portanto, não é absurdo pensarmos que também nosso pai Abraão veio a conhecer o vigor de sua fé, ao receber a ordem de imolar seu único filho. Não duvidou, nem hesitou oferecê-lo a quem o dera. Como não sabia como o Senhor o daria, antes de seu nascimento, assim acreditou que poderia vivificá-lo, depois de imolado. Disse Deus, portanto: “Agora sei”. Entendemos: Agora fiz-te conhecer, conforme as locuções acima referidas: Frio preguiçoso, porque nos faz preguiçosos; dia alegre, que nos alegra. Do mesmo modo, conhece quem dá a conhecer. Daí a palavra: “É o Senhor vosso Deus que vos experimenta, para saber se de fato o amais” (Dt 13,4). Atribuirias, efetivamente, ao Senhor nosso Deus, ao Deus supremo, ao Deus verdadeiro grande ignorância, o que seria em verdade sacrílego, se entendesses: “O Senhor vosso Deus vos experimenta, para saber”, como se ele pela prova adquirisse conhecimento do que antes ignorava. Mas, o que significa: “Experimenta para saber”? Experimenta-vos, para vos fazer conhecer. Tomais em sentido contrário a norma do entendimento. Como, ao ouvires Deus dizer: “Agora sei”, entendeis: Levei ao vosso conhecimento, assim também ao ouvires a respeito do Filho do homem, isto é, de Cristo, dizer que ele desconhece aquele dia, entendei que nos deixa sem saber. O que significa, nos deixa sem saber? Oculta, para não sabermos o que não convém nos transmitir. Foi isto o que eu disse: o bom mestre sabe o que deve transmitir, o que há de ocultar, conforme lemos que ele adiou certas mensagens. Daí compreendemos que tudo não há de ser revelado, quando não são capazes de apreender aqueles aos quais devíamos comunicar alguma coisa. O Senhor declarou em outra parte: “Tenho ainda muito a vos dizer, mas não podeis agora compreender” (Jo 16,12). Disse também o Apóstolo: “Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais, como a crianças em Cristo. Deivos a beber leite, não alimento sólido, pois não podíeis suportar. Mas nem mesmo agora podeis” (1Cor 3,1.2). Para que serve esta palavra? Como sabemos que há de vir o último dia, é para nosso proveito sabermos que virá, e também nos é útil ignorarmos quando será, e assim tenhamos o coração disposto a uma vida honesta. Não somente não tenhamos a vinda daquele dia, mas até a amemos. Efetivamente, aquele dia aumenta o sofrimento dos infiéis, mas acaba com o dos fiéis. Antes que ele venha, está em teu poder escolher qual deles queres ser; quando vier, não estará mais. Escolhe, portanto, enquanto é tempo. Deus oculta com misericórdia o que também com misericórdia difere.

2 Verifica-se que de qualquer espécie de vida, em qualquer profissão, nem todos são honestos, nem todos condenáveis, porque em certas parábolas a respeito das várias espécies de homens, propostas há pouco no evangelho que ouvimos, assim se conclui: “Um será tomado e o outro deixado” (Mt 24,40). É tomado o bom, e deixado o mau. Veem-se dois num campo; mesma profissão, mas não mesmo coração. Os homens veem a profissão, Deus conhece o coração. Qualquer que seja o campo, “um será tomado e o outro deixado”. Não quer dizer que metade é tomada, e metade deixada; mas se declara serem duas as espécies de homens. E se for constituída de poucos e outra de muitos, “um será tomado e o outro deixado”, isto é, uma espécie será tomada e a outra deixada. Isto acontece tanto no leito, como no moinho. Estais na expectativa, talvez, que eu diga o que é isto; vedes que é coisa oculta, envolvida em certas comparações. É possível que me pareça de um modo e outro tenha opinião diferente. Nem eu imponho a outro como a melhor explicação o que eu disser, nem ele a mim o seu parecer, se ambos concordam com a fé. Parece-me que os que trabalham no campo são os que presidem às igrejas, conforme diz o Apóstolo: “Vós sois a seara de Deus, o edifício de Deus”. Ele se denomina arquiteto, quando diz: “Como bom arquiteto, lancei o fundamento”, e agricultor, quando afirma: “Eu plantei, Apolo regou, mas era Deus quem fazia crescer” (1Cor 3,9.10.6). Diz o evangelho duas no moinho (cf. Mt 24,41), não dois: creio que esta figura se refere às multidões, porque os chefes governam e as multidões são governadas. O moinho, a meu ver, significa este mundo; porque se revolve pela roda dos tempos, e esmaga os que o amam. Existem, portanto, os que não se afastam das ações mundanas; contudo, ali uns agem bem, outros agem mal. Uns adquirem amigos com as riquezas da iniquidade, que os recebam nos tabernáculos eternos (cf Lc 16,9); a eles é dito: “Tive fome e me destes de comer”. Outros são negligentes neste ponto, e se lhes dirá: “Tive fome e não me destes de comer” (Mt 25,35.42). Por conseguinte, dentre os que estão envolvidos nos negócios e trabalhos deste mundo, alguns gostam de prestar benefícios aos necessitados, outros o negligenciam. É o caso das duas mulheres no moinho: “uma será tomada e a outra deixada”. A meu ver, leito significa aqui repouso; há os que não querem se envolver em atividades mundanas, como os homens casados que têm casas, famílias, filhos: nem querem trabalhos na Igreja, como os prelados que são os que trabalham na agricultura; mas se sentindo fracos para esta labuta, afastam-se para o lazer e gostam de estar tranquilos. Lembrados de sua fraqueza, não se arriscam numa grande atividade, e de certo modo no leito de sua fraqueza, rezam a Deus. Este estado de vida contém bons, e contém fingidos; por conseguinte, também entre eles acontece que “um será tomado, e outro deixado”. Em qualquer estado de vida a que te dedicares, prepara-te para encontrar fingidos; se, ao invés, não te prevenires, encontrarás o que não esperavas, e desanimarás ou te perturbarás. O Senhor, que te fala, prepara-te para tudo, enquanto é tempo para ele de expor e não é ainda ocasião de julgar, e para ti oportunidade de ouvir, e ainda não de inútil arrependimento. Agora, pois, a penitência não é vã; então, será frustrada. Não digo que então os homens não se penitenciem de terem vivido mal; mas de forma alguma a justiça de Deus revoga o que eles perderam por sua injustiça. É justo, para Deus, que ele agora conceda a misericórdia; então, exercerá o juízo. Por este motivo, agora não se cala. Ou se cala? Censure alguém, murmure, se agora este trecho da Escritura não é recitado e cantado na terra inteira; se também cessa de ser apregoada publicamente.

3 1.2Mas, de fato, perturba-te, ó cristão, veres os que vivem mal serem felizes, nadar em abundância, estarem sadios, ocuparem soberbas dignidades, ter a casa incólume, ver a alegria dos seus, os obséquios dos clientes, elevados poderes, nada de triste atacar suas vidas; vês os maus costumes, e as propriedades abundantes; e teu coração diz que não há juízo divino, que tudo é obra do acaso e sacudido por movimentos fortuitos. Declaras: Se Deus olhasse as coisas humanas, a maldade daquela estaria florescente, e minha inocência labutaria? Toda doença de espírito encontra nas Escrituras medicamento adequado. Quem está doente a tal ponto que diz isto em seu coração, beba a poção deste salmo. Qual é? Novamente examinemos: o que dizias? Respondes: O que dizia? Não é o que vês? Os maus progridem, os bons pelejam; como Deus vê estas coisas? Toma, bebe. Preparei-te uma poção, a respeito destes fatos dos quais murmuras. Apenas não recuses a bebida salutar. Ouviste. Acomoda a boca do coração. Bebe o que ouves: “Não rivalizes com os malvados, nem invejes os obreiros da iniquidade. Bem cedo hão de secar como o feno e murchar qual erva do campo”. É breve para Deus o que te parece longo: submeter-se a Deus, e será breve para ti. Identificam-se “feno e ervas do campo”. São insignificantes, superficiais, e não têm raízes profundas. Por este motivo, reverdescem no inverno; apenas o sol do verão começa a arder, murcham. Agora é inverno, e tua glória ainda não aparece; mas, se for profunda a raiz de tua caridade, conforme sucede a muitas árvores no inverno, passará o frio, virá o verão, isto é, o dia do juízo, quando secará o verdor do feno, e aparecerá a glória das árvores. “Estais mortos”, diz o Apóstolo, assim como as árvores no inverno, quase secas, quase mortas. Qual, então, a nossa esperança, se estamos mortos? A raiz está escondida dentro da terra. Onde está nossa raiz, lá se encontra nossa vida, lá se encontra nossa caridade. “E a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Quando murcha a árvore que tem essa raiz? Quando será nosso verão? Quando nos reveste a beleza das folhas e nos enriquece a fartura dos frutos? Quando será? Ouve a continuação: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados em glória” (ib 3,4). E agora, como é? “Não rivalizes com os malvados, nem invejes os obreiros da iniquidade. Bem cedo hão de secar como o feno e murchar qual erva do campo”.

4 3.4E tu? O que farás? “Espera no Senhor”. Há os que esperam, porém não no Senhor; a esperança deles é mortal, a esperança deles é caduca, frágil, volátil, transitória, vã. “Espera no Senhor”. Sim, espero. O que fazer? “E pratica o bem”. Não o mal, que observas naqueles que são felizes, mas vivem mal; “pratica o bem; habita a terra”. Não faças o bem, mas fora da habitação, da terra. A terra do Senhor é a sua Igreja; o Pai a irriga, cultiva-a aquele que é o agricultor (cf. Jo 15,1). Pois são muitos os que praticam boas obras e não habitam a terra, não pertencem ao agricultor. Pratica, pois, o bem, não fora da terra, mas habita a terra. E o que terei? “E nutrir-te-ás de suas riquezas”. Quais são as riquezas desta terra? Sua riqueza é o seu Senhor, sua riqueza é seu Deus. É aquele ao qual diz o salmista: “O Senhor é a minha porção” (Sl 118,57). A ele se refere o salmo: “O Senhor é a porção de minha herança e de meu cálice” (Sl 15,5). Em recente sermão lembrávamos a V. Caridade1 que Deus é nossa possessão e nós somos a propriedade de Deus. Ouve que a riqueza desta terra é ele mesmo; vê como prossegue: “Põe tuas delícias no Senhor”. Suponhamos que pedes: Mostra-me as riquezas daquela terra, onde me ordenas habitar. Responde o salmista: “Põe tuas delícias no Senhor e ele atenderá aos pedidos de teu coração”.

5 Acolhe como um sinal a expressão: “pedidos de teu coração”. Distingue entre pedidos do coração e pedidos da carne. Distingue quanto puderes. Não é ociosa a expressão de certo salmo: “Deus de meu coração” (Sl 72,26). E continua: “e minha porção, meu Deus, pelos séculos”. Por exemplo, um cego corporalmente suplica a visão. Suplique-a, porque Deus faz também destas coisas, e as concede; mas também os maus as pedem. É um pedido carnal. Se alguém adoece, pede a saúde. Um moribundo recupera a saúde. Esta é igualmente uma prece carnal, etc. Qual é a súplica do coração? É um pedido carnal o referente à restauração dos olhos, para verem a luz, visível a tais olhos; assim também o pedido do coração é relativo a outra luz. Pois, “bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). “Põe tuas delícias no Senhor e ele atenderá aos pedidos de teu coração”.

6 5.6Está bem. Desejo, peço, quero. Posso realizá-lo? Não. Quem, então? “Expõe ao Senhor o teu caminho. Confia nele e ele agirá”. Manifesta-lhe teu sofrimento, manifesta-lhe tua vontade. Qual o teu sofrimento? “Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne” (Gl 5,17). Qual a tua vontade? “Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?” (Rm 7,24.25). Como será ele quem realizará, quando lhe tiveres revelado teu caminho, vê como prossegue: “A graça de Deus por Jesus Cristo nosso Senhor” (ib 25). Por conseguinte, o que fará ele, uma vez que foi dito: “Expõe ao Senhor o teu caminho. Confia nele e ele agirá;” o que há de fazer? “Fará surgir como a luz a tua justiça”. Agora tua justiça está oculta: existe na fé, não ainda na realidade. Crês para agir, mas ainda não vês o que acreditas. Ao começares a ver o que creste, tua justiça surgirá como a luz, porque tua justiça era a tua fé. Pois, o justo vive da fé (cf Hb 11,1; Rm 1,17).

7 “Fará surgir como a luz a tua justiça e o teu direito como o sol do meio-dia”, isto é, como luz brilhante. Era pouco dizer: “como a luz”. Já chamamos de luz o alvorecer; denominamos também luz a aurora; mas nunca é mais brilhante a luz do que ao meio dia. Não apenas, portanto, fará surgir como a luz a tua justiça, mas o teu direito será como o sol ao meio-dia. Agora julgas que segues a Cristo. Decidiste fazê-lo. Tal foi tua escolha, teu juízo. Ninguém te mostra o objeto da promessa. Já tens aquele que promete, mas esperas quem te dará. No julgamento de tua fé optaste por seguir o que não vês. Teu juízo ainda é oculto. Ainda é censurado e escarnecido pelos infiéis: O que acreditaste? O que Cristo te prometeu? Que serás imortal e te dará a vida eterna? Onde se acha isto? Quando dará? Quando será possível? Julgas, no entanto, melhor seguir a Cristo que te promete o que não vês do que ao ímpio que te censura por acreditares no que não vês ainda. Este é o teu juízo. E a qualidade de teu julgamento ainda não é manifesta; este século é uma espécie de noite. Quando, então, surgirá o teu direito como o sol ao meio dia? Quando se manifesta Cristo, vossa vida, então também vós aparecereis com ele na glória (cf Cl 3,4). Quando vier o dia do juízo, vier Cristo e congregar todos os povos para serem julgados, o que acontecerá? Onde o ímpio esconderá sua perfídia, quando eu tiver visto a minha fé? No entanto, o que acontece agora? Angústias, tribulações e tentações. E feliz o que perseverar, porque quem perseverar até o fim, será salvo (cf Mt 24,13). Não ceda aos injuriadores, nem opte por florescer aqui, de sorte que de árvore se torne feno.

8 7O que devo, pois, fazer? Escuta o que hás de fazer: “Sê submisso ao Senhor e suplica-lhe”. Consista tua vida em obedecer aos seus preceitos. É isto que significa ser-lhe submisso, e suplicar até que ele conceda o que prometeu. Persevera nas boas obras, persevera nas orações. Importa orar sempre, sem esmorecer (cf Lc 18,1). Em que te hás de mostrar submisso? Fazendo o que ele ordenou. Mas ainda não recebes a recompensa; talvez porque ainda não és capaz de recebê-la. Ele já pode dar, mas tu não podes receber. Exercita-te nas boas obras, trabalha na vinha; no fim do dia pede o pagamento. É fiel aquele que te contratou para trabalhar na vinha (cf Mt 20,8). “Sê submisso ao Senhor e suplica-lhe”.

9 7-9Vou fazê-lo. Sou submisso ao Senhor e suplico-lhe. Mas, o que te parece? Aquele vizinho malvado, age perversamente e prospera. Conheço seus furtos, seus adultérios, suas rapinas. Sempre soberbo, orgulhoso, gloria-se da iniquidade e não se digna me conhecer. Como suportarei isto por muito tempo? Ele está doente. Imuniza-te. “Não invejes o que prospera em seus caminhos”. Prospera ele, mas em seu caminho; tu, labutas, mas no caminho de Deus. Ele encontra a prosperidade enquanto está a caminho; ao chegar, achará a infelicidade. Tu labutas no caminho, na chegada terás a felicidade, porque “o caminho dos ímpios leva à perdição” (Sl 1,6). “O Senhor conhece o caminho dos justos; o caminho dos ímpios leva à perdição”. Trilha os caminhos conhecidos pelo Senhor. Se neles estás em trabalhos, contudo não te enganam. O caminho dos ímpios é felicidade transitória; termina o caminho, acaba a felicidade. Por quê? Porque aquele caminho é espaçoso, mas termina no profundo do inferno. Teu caminho, porém, é apertado, e poucos ingressam nele; mas deves pensar em que amplidão termina (cf Mt 7,13.14). “Não invejes o que prospera em seus caminhos, o que pratica a iniquidade. Reprime a ira e acalma a indignação”. Por que te encolerizas? Por que, devido à ira e à indignação blasfemas, ou quase? “O que pratica a iniquidade. Reprime a ira e acalma a indignação”. Não sabes até onde te conduz esta cólera? A dizer que Deus é iníquo. Até aí vai. Por que este é feliz e aquele infeliz? Vê o que a ira produz; abafa este mau conceito. “Reprime a ira e acalma a indignação”, de sorte que já arrependido, digas: “Tenho os olhos turvados de ira” (Sl 6,8). Que olho, a não ser o da fé? Interrogo o olho da tua fé: Acreditaste em Cristo; por quê? O que ele te prometeu? Se Cristo te prometeu a felicidade neste mundo, murmura contra Cristo, murmura contra ele, ao verificares que um infiel é feliz. Qual a felicidade que te prometeu? Qual senão a que se recebe na ressurreição dos mortos? E nesta vida, então? Direi: Terás o mesmo que ele, igual a ele. Ou desprezas, servo e discípulo, aquilo que recebeu o Senhor e mestre? Acaso não ouves a sua palavra: “O servo não é maior do que seu senhor”, nem o discípulo maior do que o mestre (Jo 13,16)? Ele sofreu por ti dores, flagelos, opróbrios, cruz, morte. E o que merecia disto tudo o justo? O que não era devido a ti, pecador? Por conseguinte, mantém reto o teu olhar, não se turve pela ira. “Reprime a ira e acalma a indignação. Desiste da emulação. Não emules agindo mal”, de certo modo imitando aquele que, agindo mal, prospera durante algum tempo. “Desiste da emulação. Seria um mal a mais. Pois serão exterminados os malvados”. Mas, eu vejo a felicidade deles. Acredita naquele que afirma: “Serão exterminados”, porque ele vê melhor do que tu; não podes deixar que a ira perturbe teu olho. “Pois serão exterminados os malvados. Os que esperam com paciência no Senhor”, não num homem falaz, mas de fato, na própria verdade; não em alguém que tem pequeno poder, mas efetivamente naquele que é onipotente. “Os que esperam com paciência no Senhor, herdarão a terra”. Que terra, senão aquela Jerusalém? Quem arde de amor por ela chegará à paz.

10 10Mas, por quanto tempo o pecador prosperará? Até quando hei de suportar? Que pressa! Logo virá o que te parece longo. Tua fraqueza faz parecer longo o que é breve. Como se manifestam os desejos dos doentes? A demora dura o tempo que se leva a preparar o copo para o que está com sede. De fato, os familiares se apressam, para que o doente não se impaciente. Quando fica pronto? Quando estará cozido? Quando me será dado? Os que te servem são rápidos, mas tua fraqueza acha demorado o que se faz depressa. Vede, portanto, o nosso médico acalmando o enfermo que pergunta: Quanto tempo tenho de esperar? Para quando será? “Ainda um pouco e o pecador não existirá mais”. Sem dúvida, gemes no meio dos pecadores, gemes por causa do pecador; ainda um pouco e não existirá mais. Eu te disse: “Os que esperam com paciência no Senhor herdarão a terra”; por isso não vás pensar que esta paciência será longa demais; espera um pouco, e receberás para sempre o que esperas. Ainda um pouquinho: um pouco. Lembra-te dos anos decorridos de Adão até hoje, percorre as Escrituras. Foi apenas ontem que ele caiu e foi expulso do paraíso. Tantos séculos decorreram, passaram. Onde estão as épocas passadas? Assim também as poucas que ainda restam, passarão indubitavelmente. Se tivesses vivido durante todo aquele tempo, desde que Adão foi expulso do paraíso até hoje, certamente acharias que tua vida não foi longa, que voou. Qual a duração da vida de cada homem? Acrescenta quantos anos quiseres, imagina uma velhice muito prolongada. O que é isto? Não será uma brisa matutina? Seja, portanto, distante o dia do juízo, quando haverá a retribuição dos injustos e dos justos, com toda certeza teu último dia não pode estar muito longínquo. Prepara-te para ele. Conforme estiveres ao sair desta vida, serás na outra. Após esta breve vida ainda não estarás no ponto em que estarão os santos, aos quais se dirá: “Vinde benditos de meu Pai, recebei o reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34). Ainda não estarás neste ponto, quem não o sabe? Mas já poderás estar no lugar daquele mendigo cheio de úlceras que viu em seu repouso, de longe, aquele rico soberbo e carente, no meio de seus tormentos (cf Lc 16,23). De posse daquele repouso, certamente esperarás em segurança o dia do juízo, quando recuperarás também o corpo, quando serás transformado para te igualares aos anjos. Por isso, quanto nos apressamos, dizendo: Quando será? Demorará muito? Isto hão de dizer os nossos filhos, hão de dizer os nossos netos. E enquanto cada um dos que sucedem há de falar assim, passará este pouco de tempo, como passou tudo o que pertence ao passado. Ó homem fraco! “Ainda um pouco e o pecador não existirá mais”.

11 “Procurarás o seu lugar e não o encontrarás”. O salmista mostra aqui o que significa: “Não existirá mais”. Não quer dizer que absolutamente já não existirá, mas que para nada servirá. Se não existir mais, absolutamente, também não será atormentado. O pecador se sentirá em segurança e dirá: Farei o que quiser enquanto vivo, porque depois não existirei mais. Não terá de que se lastimar, não haverá tormentos? E como se realizará a palavra: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25,41)? Mas, talvez os que forem lançados naquele fogo não existirão mais, sendo consumidos. Neste caso não se lhe diria: “Ide para o fogo eterno”, porque o que não existirá mais não pode ser eterno. Além disso, o Senhor não calou o que lhes advirá, se absoluta destruição, ou dor e tormentos, dizendo: “Lá haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8,12). Como, pois, hão de chorar e ranger os dentes, se não existirão mais? E então, como se diz aqui: “Ainda um pouco e o pecador não existirá mais”, a não ser da maneira descrita no versículo seguinte: “Procurarás o seu lugar e não o acharás?” O que significou: “seu lugar?” Sua utilidade. O pecador tem alguma utilidade? Tem. Aqui, Deus o emprega para experimentar o justo, como utilizou-se do diabo para provar a Jó, como empregou Judas para entregar a Cristo. Nesta vida, portanto, o pecador serve para alguma coisa. Aqui, portanto, está o seu lugar, como no crisol a palha tem lugar. A palha arde, para purificar o ouro; assim o ímpio se encarniça para experimentar o justo. Mas quando passar o tempo de nossa provação, quando não haverá mais justos a serem provados, não haverá quem os experimente. Acaso porque dissemos: Não haverá quem os experimente, eles não existirão mais? Mas como não haverá mais necessidade de pecadores para experimentar os justos: “Procurarás o seu lugar e não o acharás”. Procura agora seu lugar, e encontrarás. O Senhor fez do pecador um flagelo, deu-lhe honra, deu-lhe poder. Às vezes, ele age assim. Dá ao pecador poder; são castigadas as ações humanas, e com isso os bons se emendam. Ao pecador será dado em troca o que merece; no entanto, dele se fez com que o piedoso progrida e pereça o ímpio. “Procurarás o seu lugar e não o acharás”. 1 Cf. Com. ao Sl 32, s. 2, n. 17.

12 11“Os mansos, porém, herdarão a terra”. Terra representa aquela da qual falamos frequentemente, a Jerusalém santa, que será libertada da necessidade de peregrinar, e viverá eternamente com Deus e de Deus. Por conseguinte, “herdarão a terra”. Quais serão as suas delícias? “E gozarão de paz profunda”. Deleite-se aqui o ímpio na multidão de ouro, na quantidade de prata, na multiplicidade de escravos, na multidão de termas, de rosas, de vinhos, de banquetes lautos e pomposos. É este o poder que invejas, a flor que te deleita? Não seria deplorável, mesmo que assim para sempre fosse? Quais serão as tuas delícias? “E gozarão de paz profunda”. A paz será teu ouro, a paz será tua prata, a paz será tua propriedade, a paz será tua vida. A paz estará em teu Deus. A paz será para ti tudo o que desejares, aqui, na terra, o que é ouro não pode ser tua prata, o que é vinho não se torna pão para ti, a luz não se faz tua bebida. No entanto, teu Deus será tudo para ti. Tu o comerás para não teres fome; bebê-lo-ás para não teres sede; serás iluminado por ele, para não seres cego; nele te apoiarás para não desfaleceres. Ele, todo inteiro, te possuirá integralmente. Não sofrerás aperturas na companhia daquele, no qual tudo possues; terás tudo, e ele terá tudo, porque tu e ele sereis um, e aquele que vos possui terá totalmente a unidade. São estes “os bens que sempre restam ao homem pacífico”. Cantamos isto. Este versículo está na verdade longe dos versículos do salmo de que tratamos. Mas como o cantamos, vamos encerrar com ele. Somente mantém-te tranquilo. “Guarda a inocência”. É coisa preciosa. Suponho que queiras roubar alguma coisa, para adquiri-la. Vê onde pões a mão e de onde a tiras. Queres adquirir uma coisa e perdes outra. Adquires dinheiro e perdes a inocência. Esteja antes vigilante o teu coração. Querias adquirir dinheiro e perdes a inocência. Perde de preferência o dinheiro. “Guarda a inocência e observa a retidão” (Sl 36,37). Deus te dirigirá, de sorte que queiras, também tu, aquilo que ele quer. Isto é retidão. Pois, se não queres o que Deus quer, serás torto, e tua maldade não te permitirá adaptar-te ao que é reto. “Guarda a inocência, e observa a retidão”, e não penses que terminada esta vida, desaparecerá o homem, porque “sempre restam alguns bens ao homem pacífico”.

SERMÃO II

1 Recebemos a ordem de falar a V. Caridade sobre este salmo e devemos obedecer. O Senhor quis que nossa viagem fosse adiada por causa da intensidade das chuvas; e foi-nos ordenado que nossa língua não se calasse diante de vós, porque sempre ocupais o nosso coração, como nós ocupamos o vosso. Recordáremos a vontade de Deus, de que fala o salmo: o que quer nos ensinar, nos admoestar, de nos precaver, o que havíamos de tolerar e o que esperar. Há duas espécies de homens, os justos e os pecadores; nesta terra e nesta vida estão misturadas. Cada uma destas espécies tem metas peculiares. Os justos se esforçam por atingir as coisas sublimes através da humildade; os pecadores são arrastados para baixo, por causa do orgulho. Os primeiros se abaixam para se erguerem, os segundos se exaltam para caírem. Com isso, uma espécie tolera, outra é tolerada. Os justos se propõem ganhar para a vida eterna os próprios iníquos, enquanto os iníquos se propõem pagar o bem com o mal e, se possível, até privar da vida temporal aqueles mesmos que lhes desejam a vida eterna. O injusto não suporta o justo, e o justo não tolera o injusto; são pesados uns aos outros. Ninguém duvida que estes dois são mutuamente pesados um ao outro, mas por diversos motivos. O justo torna-se um peso para o injusto, porque não quer que continue injusto, mas que se torne justo, fazendo votos para tal e esforçando-se neste sentido. O injusto, porém, odeia o justo, não querendo que o seja e não para torná-lo bom. Quanto maior for a bondade deste, tanto mais pesado se torna à iniquidade do outro. E empenha-se efetivamente a fazê-lo injusto, se possível; se não o consegue, procura tirá-lo de sua frente, e afastar o motivo de seu tédio e incômodo. Mas, mesmo que o torne injusto, continuará a ser-lhe molesto. Não é apenas que é pesado ao injusto, mas também dois injustos mal se suportam; e quando parecem amarse, fazem-no por cumplicidade, não por amizade. Concordam entre si, ao se tratar de conspiração para perda do justo. Não o fazem porque se amam, mas porque odeiam juntos aquele que devia ser amado. O Senhor nosso Deus nos impõe, em relação a esta espécie de homens, tolerância e o afeto daquela caridade que o evangelho nos ensina, segundo a ordem do Senhor: “Amai os vossos inimigos, e fazei bem aos que vos odeiam” (Mt 5,44). E ainda o Apóstolo: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12,21). Disputa com o malvado, mas sobre a bondade. Esta é a verdadeira disputa, ou antes o certame salutar: o bom contra o mau, para não serem dois maus.

2 12.13Olhai o salmo. A primeira parte foi analisada. Vêm as seguintes. “O pecador observará o justo, e rangerá os dentes contra ele. O Senhor, porém, se ri dele”. De quem? Sem dúvida, do pecador, que range os dentes contra os justos. Por que “o Senhor se ri dele? Porque vê chegar o seu dia”. O pecador mostra-se cruel ao ameaçar o justo, que ignora o dia de amanhã. O Senhor, porém, vê, e prevê o seu dia. Qual? Quando retribuirá a cada um conforme suas obras (Mt 16,27). O pecador está acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus (cf Rm 2,5). Mas o Senhor prevê; tu não prevês; indicou-te o futuro aquele que prevê. Ignoravas que haveria um dia em que o injusto sofreria o castigo; quem o sabe, não escondeu de ti. Estar unido a quem sabe não é pequena parte de conhecimento. Ele tem os olhos do conhecimento, possuas tu os da fé. Crê naquilo que Deus vê. Virá o dia das contas do injusto; Deus o prevê. Qual dia? O do castigo de cada um. É necessário seja castigado o ímpio, seja castigado o injusto, quer se converta, quer não. Se ele se converter, a vingança contra ele será terminar a iniquidade. Não se riu Deus, prevendo o dia de dois iníquos, o de Judas traidor e o do perseguidor Saulo? Viu o dia do castigo de um, e o da justificação do outro. Contra ambos se vingou: um foi destinado ao fogo da geena, outro foi prostrado pela voz celeste. Tu, portanto, que sofres da parte o iníquo, com os olhos da fé contempla com Deus o dia deles; e ao perceberes que se enfurece contra ti, dize a ti mesmo: Ou se corrigirá, e estará comigo; ou perseverará no mal, e não estará comigo.

3 14-16Como será, então? A injustiça do injusto te prejudica, e não o prejudica? Como pode ser que a sua iniquidade, que tenta, pela indignação e o ódio, te prejudicar, não o arruíne primeiro interiormente, e só depois te experimente por fora? A adversidade oprime teu corpo, a iniquidade dissolve-lhe a alma. Pois, tudo o que profere contra ti volta-se contra ele. Sua perseguição te purifica e faz dele um réu. A quem, então, causa maior dano? Eis que, furioso, te despejou. Quem sofre maior dano, quem perde o dinheiro, ou quem perde a fidelidade? Os que têm olhos para ver interiormente, não lastimam tais prejuízos. Para muitos o ouro tem brilho, e a fidelidade não. Têm, de fato, olhos para verem o ouro; para verem a fidelidade, não possuem. Pois, se tivessem e vissem, em verdade a amariam mais. No entanto, se alguém quebra a fidelidade para com eles, clamam, reclamam e dizem: Oh! a fidelidade! Onde está a fidelidade? Sabes amá-la para a exigires dos outros; ama-a para a observares. Uma vez que todos os que perseguem os justos sofrem maior dano, e são afligidos por moléstia mais grave, porque é a alma que é arruinada, o salmo continua e mostra: “Os ímpios desembainham a espada e retesam o arco, para abater o desvalido e o pobre, e liquidar os retos de coração. A sua espada traspassar-lhes-á o coração”. É fácil que sua espada, isto é, seu gládio, chegue a teu corpo, como o gládio dos perseguidores atingiu os corpos dos mártires; mas, ferido o corpo, o coração permaneceu ileso. O coração daquele, porém, que atravessou o corpo do justo com o gládio, de modo algum manteve-se ileso. Este salmo o atesta. Sua espada não entrará, disse o salmista, no corpo deles, mas: “A sua espada traspassar-lhes-á o coração”. Quiseram matar o corpo, morreram quanto à alma. O Senhor pôs em segurança aqueles cujos corpos eles quiseram matar, dizendo-lhes: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28). Qual a vantagem de ser cruel com a espada, só poder matar o corpo do inimigo, e no entanto matar a própria alma? Perdem o senso, enfurecem-se contra si mesmos, enlouquecem, não se veem a si mesmos. Agem como alguém que quisesse fazer a lâmina atravessar primeiro o seu próprio corpo, para rasgar a túnica de outro. Dás atenção ao alvo que alcançaste, e não observas por onde passaste; rasgaste-lhe a veste, e a tua própria carne. Consta, por conseguinte, que os iníquos mais se prejudicam e causam dano a si mesmos do que lesam, como lhes parece, àqueles a quem têm ódio. “A sua espada, portanto, traspassar-lhes-á o coração”. É sentença do Senhor. Não pode ser de outro modo. “O seu arco será despedaçado”. O que quer dizer: “O seu arco será despedaçado?” Suas insídias serão frustradas. Mais acima dissera: “Os ímpios desembainham a espada e retesam o arco”. Desembainhar a espada está significando um ataque aberto; o arco, porém, representa as insídias ocultas. Eis que sua espada o matou, e a trama de suas ciladas é frustrada. O que significa: é frustrada? Em nada prejudicam ao justo. Como, então, o ímpio em nada o lesou, se, por exemplo, ele o espoliou, se o angustiou tirando-lhe os bens? O justo tem o que cantar: “O pouco que o justo possui vale mais que a opulência dos ímpios”.

4 17Mas, os iníquos são poderosos, fazem muito, e têm bom êxito; à sua ordem segue-se a obediência, a rapidez na ação. Será sempre assim? “Porque os braços dos pecadores serão quebrados”. Braços representam o poder deles. O que sucederá na geena? Ou o que faz aquele rico, que se banqueteava na terra, e era supliciado no inferno (cf. Lc. 16,19.24)? Por conseguinte, “os braços” deles “serão quebrados, ao passo que o Senhor fortificará os justos”. Como os fortifica? O que lhes diz? O que se encontra em outro salmo: “Espera no Senhor, age virilmente, conforte-se teu coração, e espera no Senhor” (Sl 26,14). Qual o sentido de: “Espera no Senhor?” Durante certo tempo trabalhas, mas não trabalharás eternamente. Tuas dificuldades são breves, enquanto eterna será tua felicidade; por um pouco te condóis, sem fim te alegrarás. Mas começas a resvalar no meio das dificuldades? O exemplo da paixão de Cristo te é proposto. Vê quanto sofreu por ti aquele que não tinha motivo de sofrer. Por mais que padeças, não chegarás àqueles insultos, àqueles flagelos, àquela veste ignominiosa, àquela coroa de espinhos, por fim àquela cruz, porque esta pena foi abolida para o gênero humano. Antigamente os criminosos eram crucificados; agora, ninguém. Foi honrada e abolida. Abolida como castigo, permanece em forma gloriosa. De lugar de suplício passou às frontes dos imperadores. Quem concedeu tanta honra às suas penas, o que não reservará para seus fiéis? “O Senhor fortifica os justos” com estes fatos, estas palavras, estas alocuções, este exemplo. Sejam os pecadores cruéis quanto quiserem, e quanto lhes for permitido: “O Senhor fortifica os justos”. Tudo o que acontecer ao justo, atribua ele à vontade divina, não ao poder do inimigo. Este pode enfurecer-se; mas ferir, se Deus não quiser, não pode. E se Deus quiser que o inimigo fira, sabe ele como acolherá o que é seu: “O Senhor corrige a quem ele ama, e castiga todo filho a quem acolhe” (Hb 12,6). O iníquio aplaude-se a si mesmo, porque meu Pai o utilizou qual açoite? Toma-o a seu serviço, instruiu-me em vista de meu patrimônio. Não devemos atender a quanto ele permite aos injustos, mas a quanto reserva para os justos.

5 Mas cabe-nos desejar, mesmo àqueles que nos servem de flagelos, que se convertam e sejam flagelados. Foi deste modo que o Senhor instruía seus fiéis, quando se serviu de Saulo para castigá-los; mas depois o converteu igualmente. E quando o Senhor disse a santo Ananias, por quem Saulo foi batizado, que devia acolhê-lo, porque era uma vaso de eleição, Ananias respondeu, temeroso e horrorizado, devido à fama de Saulo como perseguidor: “Senhor, ouvi a respeito deste homem, quanto mal fez a teus santos em Jerusalém. E está aqui com plena autoridade dos sacerdotes para aprisionar e levar aos pontífices os que invocam o teu nome” (At 9,13-16). Replicou-lhe o Senhor: “Vai, eu mesmo lhe mostrarei quanto lhe será preciso sofrer por causa do meu nome” (At 9,13-16). Disse: Eu lhe retribuirei, vingar-me-ei dele; e sofrerá por causa de meu nome, aquele que está enfurecido contra meu nome. Ensino ou ensinei a outros por meio dele, ensinar-lhe-ei igualmente através de outros. Assim se fez. Sabemos quanto suportou Saulo. Muito mais do que fizera. O Senhor, como um avaro cobroulhe com juros aquilo que lhe havia confiado.

6 Mas vê se nele se verificou o que o salmo agora diz: “O Senhor fortifica os justos”. O mesmo Paulo, diante de muitos sofrimentos, diz: “E não é só. Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito santo que nos foi dado” (Rm 5,3-5). Bem: certamente já é justo, já está confirmado. Por conseguinte, como a Paulo já confirmado em nada causavam dano os que o perseguiam, nem ele mesmo prejudicava àqueles que ele perseguia. “O Senhor confirma os justos”. Ouve outras palavras do justo já fortificado: “Quem nos separará do amor do Cristo? A tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez?” (Rm 8,35) Como estava unido a Cristo aquele que nem tais dificuldades eram causa de separação? “O Senhor fortifica os justos”. Haviam descido alguns profetas de Jerusalém, e cheios de Espírito Santo profetizaram ao mesmo Paulo que haveria de sofrer muito em Jerusalém; assim um deles chamado Ágabo, tirou o cinto e amarrou-se, como se costuma fazer, para mostrar o profeta, por meio destes sinais, acontecimentos futuros, dizendo: “Como me vedes ligado, assim deverá ser amarrado este homem em Jerusalém”. Os irmãos, ouvindo o aviso dado a Saulo, agora já Paulo, começaram a dissuadi-lo de não se expor a tantos perigos, aconselhando e pedindo que desistisse de ir a Jerusalém. Ele, porém, já era do número daqueles dos quais foi dito: “O Senhor fortifica os justos”, e disse: “Por que me partis o coração?” Não dou grande valor a minha vida. Já dissera àqueles que gerara para o evangelho: “Quanto a mim, de bom grado me despenderei todo inteiro, em vosso favor. Estou pronto não somente a ser preso, mas ainda a morrer pelo nome do Senhor Jesus Cristo” (At 21,11-13; 2Cor 12,15).

7 18“O Senhor, portanto, fortifica os justos”. Como os fortifica? “O Senhor vela pelos caminhos dos homens íntegros”. Ao sofrerem males, pensam que trilham maus caminhos os que ignoram, os que não souberam reconhecer os caminhos dos homens íntegros. Quem os conhece, sabe como o Senhor conduz por um caminho reto os seus, que são mansos. Daí dizer outro salmo: “Dirigirá os mansos no juízo. Ensinará aos dóceis os seus caminhos” (Sl 24,9). Imaginai como não devem ter detestado os transeuntes aquele pobre, coberto de úlceras, a jazer diante da porta do rico (cf Lc 16,20)? Acaso não tapavam o nariz e cuspiam? Mas, o Senhor sabia reservar-lhe o paraíso. Não desejariam para si a vida daquele que se vestia de púrpura e linho fino, e se banqueteava diariamente de maneira opulenta? O Senhor, porém, que via de antemão o seu dia, conhecia seus futuros tormentos, tormentos sem fim. Portanto: “O Senhor vela pelos caminhos dos homens íntegros”.

8 “E a herança deles permanecerá eternamente”. Temos isto na fé; acaso para o Senhor será na fé? O Senhor o sabe de modo tão manifesto que não podemos exprimir, mesmo ao nos tornarmos iguais aos anjos. Não nos serão tão evidentes as coisas reveladas quanto são manifestas àquele que não pode nem mesmo mudar. No entanto, a nosso respeito, o que foi dito? “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas o que seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,2). Por conseguinte, está sendo reservado para nós não sei bem qual suave espetáculo, absolutamente; e se em parte se pode pensar, ver em figura e num espelho, de forma nenhuma se pode exprimir a beleza daquela suavidade que Deus guarda para os que temem, e realiza para os que nele esperam (cf Sl 30,20). Para isto nossos corações são preparados no meio de todas as tribulações e tentações desta vida. Não te admires de seres preparado pelos trabalhos; é para algo de muito grande que te preparas. Daí se originam aquelas palavras do justo já fortificado: “Os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós” (Rm 8,18). Qual será nossa futura glória senão igualar-nos aos anjos e ver a Deus? Qual a grandeza do benefício prestado ao cego por aquele que curar seus olhos a fim de ver a luz do sol? Depois de curado, não encontra recompensa condigna para aquele que o curou; por mais que lhe dê, o que será em comparação com o que dele recebeu? No máximo dar-lhe-á ouro, e muito ouro; contudo o outro lhe prestou o benefício da luz. Para reconhecer que é nada o que dá, veja nas trevas o seu presente. E o que daremos, então, nós àquele médico que nos cura os olhos interiores, a fim de vermos a luz eterna, que é ele mesmo? O que lhe daremos? Procuremos, encontremos, se pudermos; e nas aflições de nossa procura, exclamemos: “O que retribuiremos ao Senhor por tudo aquilo com que nos retribuiu?” E o que encontra? “Tomarei o cálice da salvação, e invocarei o nome do Senhor” (Sl 115,12.13). Disse o Senhor: “Podeis beber o cálice que estou para beber?” (Mt 20,22). Daí também a Pedro: “Tu me amas? Apascenta minhas ovelhas”, em favor das quais haveria de beber o cálice do Senhor (Jo 21,17). “O Senhor fortifica os justos. O Senhor vela pelos caminhos dos homens íntegros e a herança deles permanecerá eternamente”.

9 19“Não serão confundidos no tempo da desgraça”. Que sentido tem a frase: “Não serão confundidos no tempo da desgraça”? No dia da tribulação, no dia das angústias não serão confundidos, como se envergonha aquele cuja esperança falha. Quem é que se confunde? Aquele que afirma: Não encontrei aquilo que esperava. E com razão! Esperavas de ti mesmo, ou esperavas de um amigo, que é apenas um homem; maldito, porém, o que deposita sua confiança num homem (cf Jr 17,5). Ficas confundido, porque falhou tua esperança, decepcionou a esperança depositada na mentira, pois todo homem é mentiroso (cf Sl 115,11). Mas, se é em Deus que depositas tua esperança, não serás confundido; porque não falha aquele em quem confiaste. Em consequência disto, aquele justo corroborado, que citei há pouco, numa situação difícil, no dia da tribulação, uma vez que não foi decepcionado, o que declarará? “Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona”. Por que a esperança não decepciona? Porque depositada em Deus. Daí prosseguir: “Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3-5). Já nos foi dado o Espírito Santo. Como nos enaganaria, se temos tal penhor? “Não serão confundidos no tempo da desgraça e por ocasião da fome serão saciados”. Existe aqui certa saciedade. Pois, dias de fome são desta vida; alguns famintos, outros saciados. Como se gloriaria o Apóstolo afirmando: “Nós nos gloriamos nas tribulações”, se interiormente padecesse penúria? Exteriormente parecia angustiado, mas interiormente achava-se dilatado.

10 20Como age o malvado, quando começa a tribulação? Exteriormente nada tem, tudo lhe é tirado e na consciência não encontra alívio. Não tem como escapar, porque fora as coisas são duras. Não pode entrar, porque dentro só existem males. De direito acontece-lhe o que segue: “Mas os pecadores perecerão”. Como não haverão de perecer, se em parte alguma há lugar para eles? Não acham consolo exteriormente, nem interiormente. As coisas exteriores não nos trazem consolo algum. Todos aqueles que não possuem a Deus, servem ao dinheiro, à amizade, à glória, aos bens deste mundo, às riquezas materiais. Não podem consolar-se interiormente como se consolava aquele que estava cheio de bens interiores, e desta saciedade brotava a palavra: “O Senhor deu, o Senhor tirou. Como lhe aprouve, assim se fez. Seja bendito o nome do Senhor” (Jó 1,21). Aqueles pecadores, portanto, não encontram lugar nas coisas exteriores, porque nelas padecem tribulações. Sua conciência não os consola. Não se sentem bem consigo mesmos, porque ninguém se sente bem em companhia de um mau. Todo aquele que é malvado, sente-se mal consigo mesmo. Necessariamente atormenta-se, sendo seu próprio tormento. É um castigo para si mesmo aquele a quem sua consciência atormenta. Foge-se de um inimigo para onde se puder. Como poderá fugir de si mesmo?

11 Assim aconteceu com certo homem do partido de Donato. Procurou-nos, tendo sido acusado e excomungado pelos seus; veio procurar aqui o que perdera lá. Não pôde ser recebido senão no lugar devido. Não abandonou o partido, como se estivesse bem com eles, para parecer que assim agira não por necessidade, mas por livre escolha. Como ali não conseguiu o que buscava (queria vanglória e falsa honra), e aqui não encontrou o que lá perdeu, pereceu. Gemia ferido e não se consolava; tinha na consciência ocultos, horríveis remorsos. Tentávamos consolá-lo com a palavra de Deus. Mas ele não era do número das sábias formigas, que colhem no verão a subsistência para o inverno (cf Pr 6,6;30,25). Quando a vida decorre tranquila, então o homem deve recolher a palavra de Deus, e escondê-la no íntimo do coração, como a formiga esconde nos formigueiros o fruto de seu trabalho no verão. Durante o verão é possível agir assim. Vem, porém, o inverno, isto é, advém a tribulação. Quem não encontra interiormente com que se alimentar, necessariamente morrerá de fome. Este homem, portanto, não guardava para si a palavra de Deus. Veio o inverno. Não encontrou aí o que procurava. Seria o único consolo. Nada de palavra de Deus. Nada possuía dentro de si, e não encontrava fora o que buscava. Ardia nas chamas da indignação e da dor, seu espírito agitava-se violentamente. Ocultou-o até soltar alguns gemidos, que os irmãos ouviram, sem que ele soubesse. Víamos isto, e sofríamos intensamente. Deus conhece tamanha dor da alma, tantas cruzes, tantas geenas, tantos tormentos. O que dizer ainda? Não aceitando um lugar mais baixo, que poderia ser um lugar de salvação, se ele quisesse entender, comportouse de tal forma que foi despedido. Nem assim devemos, irmãos, perder a esperança a respeito de outros, que talvez tenham escolhido a verdade e não a seguido, por necessidade. Não percamos a esperança acerca dos outros; nem daquele mesmo perco a esperança, enquanto viver. De nenhum ser vivo devemos perder a esperança de melhora. V. Caridade esteja ciente disto, nesta ocasião, irmãos, a fim de que ninguém diga coisa diferente. Por isso, o subdiácono deles que, sem ter com eles nenhuma dificuldade, escolheu a paz e a unidade da Igreja católica, e deixando-os veio até nós, veio de fato por escolher o bem e não por ter sido repudiado pelos maus. Foi recolhido, de sorte que nos alegramos com a sua conversão, e o recomendamos a vossas orações. Deus é poderoso, e o faça cada vez melhor. De resto, nada devemos julgar a respeito de alguém, pendendo para o bem ou para o mal. Enquanto se vive na terra, sempre se ignora como será o amanhã. “Não serão confundidos no tempo da desgraça e por ocasião da fome serão saciados. Mas os pecadores perecerão”.

12 “Os inimigos do Senhor apenas se gloriam e exaltam, dissipar-se-ão como fumaça”. Descobri vós, nesta comparação, o que o salmista insinuou. A fumaça, irrompendo do fogo, vai para o alto, e elevando-se abre-se num grande globo; mas quanto maior for o globo, tanto mais se desvanece. Com aquela grandeza sem fundamento e solidez, mas solta e inchada, vai para a atmosfera e se dissipa, de sorte que a própria grandeza lhe é prejudicial. Quanto mais se ergue, se espalha, se difunde por toda a parte, num âmbito maior, tanto mais tênue se torna, mais se esvai e desaparece. “Os inimigos do Senhor apenas se gloriam e exaltam, dissipar-seão como fumaça”. Desses tais foi dito: “Do mesmo modo como Janes e Mambres se opuseram a Moisés, assim também estes se opõem à verdade; são homens de espírito corrupto, de fé inconsciente”. Como resistem à verdade, a não ser pelo inchaço de seu tumor, segundo os ventos, orgulhando-se como se fossem justos e grandes? Como são qualificados? Como fumaça: “Mas eles não irão muito adiante; pois a sua loucura será manifesta a todos, como o foi a daqueles (1Tm 3,8.9). Os inimigos do Senhor apenas se gloriam e exaltam, dissipar-se-ão como fumaça”.

13 21“O pecador pede emprestado e não paga”. Recebe e não devolve. O que não devolve? A ação de graças. De ti o que quer Deus, ou o que exige, senão o que te é vantajoso? Quanta coisa não recebeu o pecador e não paga? Recebeu o ser, recebeu a existência humana. Grande é a diferença entre ele e o animal. Recebeu a forma do corpo, recebeu os vários sentidos: os olhos para ver, ou ouvidos para ouvir, o nariz para cheirar, o paladar para sentir o gosto, as mãos para apalpar, os pés para andar, a própria saúde corporal. Mas tudo isso ainda é comum com os animais. Recebeu muito mais, isto é, a mente para entender, apreender a verdade, discernir entre o que é justo e injusto, para indagar, desejar o criador, louvá-lo e a ele aderir. Também o pecador recebeu tudo isso, mas não vivendo bem, não paga o que deve. Por conseguinte, “o pecador pede emprestado e não paga”, não restitui àquele de quem recebeu, não agradece: ao contrário, paga o bem com o mal, blasfêmias, murmurações contra Deus, indignação. Portanto, ele “pede emprestado e não paga. O justo, porém, se compadece e dá”. Aquele nada tem, este tem alguma coisa. Vede a penúria, vede a riqueza. O primeiro recebe e não restituiu; este se compadece e empresta; tem em abundância. E se for pobre? Ainda assim é rico. Tu apenas fita com olhos benevolentes as suas riquezas. Vê a sua caixa vazia, e não vês a sua consciência cheia de Deus. Não tem riquezas exteriormente, mas tem interiormente a caridade. Com a caridade, quanto distribui, e ela não se esgota! Efetivamente, se tem bens exteriores, a caridade é que dá do que possui; se não encontra exteriormente o que dar, dá benevolência, dá conselho, se pode; presta auxílio, se é possível; por fim, se não pode ajudar com um conselho, um donativo, ajuda com o desejo, ou reza pelo aflito. Talvez ele é mais atendido do que aquele que dá o pão. Quem possui um coração cheio de caridade tem sempre o que dar. A caridade também se chama boa vontade. Deus não exige mais de ti do que aquilo que te deu interiormente. A boa vontade não pode ficar inativa. Quem não possui boa vontade, apesar de ter o supérfluo, não dá ao pobre, enquanto os pobres entre si dão de boa vontade, não são inúteis uns aos outros. Vês, por exemplo, um cego conduzido por alguém que vê: como não possuía dinheiro para dar ao necessitado, emprestou seus olhos a quem não tinha. Donde vem que empreste seus membros a alguém que não os possui, senão porque havia no seu íntimo a boa vontade, tesouro do pobre? Neste tesouro há um suave repouso e verdadeira segurança. Não se receia perdê-lo; nem o ladrão junto dele tem aceso, nem há perigo de naufrágio. O pobre guarda consigo seu tesouro íntimo, fica sem nada, e está repleto. Pois, “o justo se compadece e dá”.

14 22“Os que bendizem a Deus possuirão a terra em herança”, como aquele justo, verdeiramente o único justo, e que justifica. Ele na terra foi pobre, mas trouxe grandes riquezas, para tornar ricos aqueles que aqui achou sendo pobres. Foi ele que, pelo Espírito Santo, enriqueceu os corações dos pobres, e encheu com a opulência da justiça as almas despojadas que confessavam seus pecados. Ele pôde tornar rico o pescador, que abandonou suas redes, desprezou o que tinha e ganhou o que não possuía (cf Mt 4,1a). Pois, Deus escolheu o que é fraco neste mundo para confundir os fortes (cf 1Cor 1,27). E não foi por meio do orador que ele ganhou o pescador, mas através do pescador lucrou o orador, com o pescador obteve o senador, com o pescador alcançou o imperador. “Os que bendizem a Deus possuirão a terra em herança”. Serão seus co-herdeiros, naquela terra dos vivos, da qual se diz em outro salmo: “Tu és a minha esperança, a minha porção na terra dos vivos” (Sl 141,6). Tu és a minha porção, diz o salmista a Deus, e não hesitou em fazer de Deus a sua porção. “Possuirão a terra em herança, mas os que o maldizem desaparecerão”. É um dom que bendigam os que bendizem. O Senhor se aproximou dos que maldiziam, e eles se tornam bendizentes; e assim já desapareceram os maldizentes, porque por seu dom se fizeram bendizentes daquele que maldiziam devido ao mal que havia neles, mas agora bendizem, por efeito do bem que dele provém.

15 23Vede como continua: “O Senhor dirigirá os passos do homem, e este se compraz nos caminhos dele”. Os passos do homem são encaminhados pelo Senhor para que ele opte pelo caminho do Senhor. Pois, se o Senhor não dirigisse os passos do homem, seriam tão maus que iriam sempre pelas sendas do mal, e seguindo os atalhos sinuosos não poderiam voltar. Veio, porém, o Senhor, chamou, redimiu, derramou seu sangue. Foi o preço que pagou, prestou tal benefício, e sofreu os males. Observa o que fez; ele é Deus. Pondera o que sofreu; ele é homem. Quem é este homem Deus? Se tu, ó homem, não tivesses abandonado a Deus, Deus não se faria homem por tua causa. Não te bastava que ele te tenha feito homem para seres grato ao menos diante de seu dom? Ainda era preciso que se fizesse homem em teu favor? É ele, pois, quem dirige nossos passos, para que optemos por seus caminhos. “O Senhor dirigirá os passos do homem, e este se compraz nos caminhos dele”.

16 Se já segues o caminho de Cristo, não prometas a ti mesmo a prosperidade neste mundo. Cristo andou por duros caminhos, mas prometeu grande recompensa. Segue-o. Não olhes por onde passarás, mas aonde há de chegar. Haverás de tolerar duros trabalhos temporais, mas alcançarás alegrias eternas. Se queres suportar o trabalho, olha para a recompensa. Pois também o operário desanimaria no trabalho da vinha, se não atendesse ao que haverá de receber. Atendendo ao que haverás de receber, todos os teus padecimentos te parecerão insignificantes, e não terão proporção com o que receberás por eles. Ficarás admirado de que tanto seja dado em paga de tão minúsculo trabalho. Pois, em verdade, irmãos, para obter um eterno repouso seria necessário um labor eterno. Para receber a eterna felicidade, deverias sofrer eternas dores. Mas se suportasses um trabalho eterno, quando chegarias à felicidade eterna? Assim acontece que necessariamente seja temporal a tua tribulação; terminada esta, chegarás à felicidade infinita. No entanto, irmãos, poderia ser longa a tribulação em prol de uma felicidade eterna. Por exemplo, como nossa felicidade não terá fim, nossa miséria, nosso labor e nossas tribulações deveriam ser muito longas. Pois, se fossem de mil anos, pondera o que são mil anos tendo por contrapeso a eternidade; como pesarás contra o infinito seja o que for de finito? Dez mil anos, dez vezes cem mil, ou antes um milhão, que têm fim, não podem ser comparados com a eternidade. Acrescente-se a isto que Deus não somente quis que fosse temporário teu labor, mas ainda que fosse breve. Toda a vida do homem consta de poucos dias, mesmo se aos dias difíceis não se misturassem os alegres, que são em maior número e mais longos do que os penosos. Os dias difíceis são mais breves e em menor número, para que possamos suportá-los. Se, no entanto, toda a vida de um homem se passasse em trabalhos e tribulações, em dores, tormentos, cárcere, ferimentos, fome e sede diárias, todas as horas, toda a sua vida até à velhice, constaria de poucos dias toda a vida do homem. Passado o trabalho, virá o reino eterno, virá a felicidade sem fim, virá a igualdade com os anjos, virá a herança de Cristo, virá Cristo, o co-herdeiro. Em lugar de tanto trabalho, que grande recompensa recebemos! Os veteranos que militaram e durante tantos anos padeceram ferimentos, começaram a militar em sua juventude, e já terminam velhos. Para gozarem de poucos dias tranquilos em sua velhice, quando a idade já começa a pesar-lhes (embora as guerras já não lhes pesem) quantas coisas duras toleram: viagens, frio, sol, necessidades, ferimentos, perigos! E ao sofrerem tudo isto, não lhes dão importância, diante de poucos dias tranquilos na velhice, sem saberem se chegarão a eles. Portanto, o “Senhor dirigirá os passos do homem, e este se compraz nos caminhos dele”. Começara pelo seguinte: Se queres o caminho de Cristo e és verdadeiro cristão (e é cristão, de fato, quem não despreza o caminho de Cristo, mas quer segui-lo, por meio de sua paixão) não procures trilhar outra via senão aquela por onde ele passou. Parece dura, mas é o caminho seguro; outro talvez ofereça prazeres, mas está cheio de ladrões. “E se compraz nos caminhos dele”.

17 24“Ainda que caia não ficará prostrado, porque o Senhor o ampara com a mão”. Eis o que significa escolher o caminho de Cristo. Pode acontecer que alguém sofra tribulação, desonra, injúria, aflição, prejuízos, etc. Tudo isto abunda nesta vida para o gênero humano. Lembra-se de seu Senhor, quantas provações sofreu; e “ainda que caia não ficará prostrado, porque o Senhor o ampara com a mão”. Ele sofreu primeiro. Por que temes, ó homem, cujos passos foram dirigidos, para escolheres a via do Senhor? Por que temes? Dores? Cristo foi flagelado. Injúrias? Ele ouviu, embora expulsasse os demônios: “Tens demônio”. Acaso a facção e a conspiração dos maus? Ele padeceu conspiração (cf Mt 27,26; Jo 8,48; Jo 9,22). Não podes talvez tornar patente tua consciência em paz, perante alguma acusação, e sofres violência, porque se apresentam falsas testemunhas contra ti. Contra ele, em primeiro lugar, proferiram falso testemunho, não só antes da morte, mas até depois da ressurreição. Foram introduzidas falsas testemunhas, a fim de que fosse condenado pelos juízes (cf Mt 26,60); apresentaram-se os guardas do sepulcro como testemunhas falsas. Ele ressuscitou, com um grande milagre. A terra tremeu, revelando que o Senhor ressurgira. Havia ali terra1 a guardar a terra; mas a terra mais dura não pôde ser mudada. Anunciou a verdade, mas foi seduzida pela falsa. Aqueles guardas disseram aos judeus o que viram e o que se realizara; aceitaram dinheiro e foi-lhes dito: “Dizei que os seus discípulos vieram enquanto dormíeis, e o roubaram” (Mt 28,12). Eis falsas testemunhas e contra um ressuscitado. Quanta cegueira nestas falsas testemunhas, irmãos, quanta cegueira! Falsas testemunhas costumam sofrer o castigo de ficarem cegas, e dizerem contra si mesmas, sem o perceberem, o que demonstra sua falsidade. O que, pois, disseram estes contra si mesmos? Enquanto dormíamos, “vieram os discípulos, e o roubaram”. O que é isto? Quais são os que prestam testemunho? Os que dormiam. Eu não acreditaria neles se me contassem tais eventos, nem se me descrevessem seus sonhos. Loucura absurda! Se estavas desperto, por que permitiste? Se dormias, como sabes?

18 Assim agiram também estes seus filhos, 2como vos lembrais; não deixemos passar a oportunidade. Tanto mais devemos rememorar sua vaidade quanto mais desejamos sua salvação. O corpo de Cristo suporta falsas testemunhas, sofre o corpo o mesmo que precedeu na Cabeça. Não é de admirar. Também agora não faltam os que dizem ao corpo de Cristo, espalhado por toda a terra: Raça de traidores. Proferes um falso testemunho. Vou convencer-te de que és falsa testemunha, com poucas palavras. Tu me acusas: És traidor. Respondo: Estás mentindo. Não podes provar minha traição, nunca e em parte alguma. Eu provo tua mentira aqui e agora, ao falares aquelas palavras. Certamente ali disseste que afiamos nossas espadas. Leio as Atas de teus Circumceliões. Sem dúvida ali3 asseguraste que omitiste o que foi retirado. Leio as Atas; fizeste procuração para exigir prestação de contas. Certamente ali declaraste: Nós apresentamos somente os evangelhos. Cito tantas ordens dos juízes, com as quais perseguiste os que estão separados de ti. Cito as postulações ao imperador apóstata, ao qual disseste4 que só há justiça perante ele. Parece-te que a apostasia de Juliano é parte do evangelho? Aí está. Apanho tua mentira. O que afirmaste a meu respeito que se deva acreditar? Mesmo que não encontrasse como provar que proferes uma falsidade, basta que mostre que és mentiroso. O que dizes? Todos os outros são como tu. Com razão atribuíste a todos tais coisas. Queres que seja muito grande a sociedade da mentira, para não teres de te envergonhar sozinho de mentir.

19 Mas valha, diz um donatista, o juízo de nossos pais a respeito de Ceciliano. Por que valerá? Porque os bispos o julgaram. Valha também, então, o que os maximianistas julgaram contra ti. Em primeiro lugar, acredito que estais cientes disto: os bispos de acordo com Maximiano, ainda diácono deles, vieram a Cartago, conforme consta do documento judicial, que anexaram às Atas, durante o litígio5 acerca da casa, com o procurador deles6, que omitiu os roubos. Por conseguinte, primeiro enviaram a respeito dele o documento judicial, queixando-se de que não quis ir ao seu encontro; esta foi a sua principal queixa. Vê como Deus lhes retribuiu acerca do que afirmaram de Ceciliano. Admirável semelhança! Deus quis, depois de tantos anos, lançar-lhes em rosto o que foi feito, de sorte que absolutamente não tenham como dissimular e escapar. Se quiserem afirmar que se esqueceram dos fatos anteriores, Deus não os deixa no esquecimento; e oxalá lhes valha para sua salvação! Pois, Deus assim agiu, em sua misericórdia, se considerarem os fatos. Ponde, irmãos, diante dos olhos a unidade do orbe da terra de então, da qual eles se separaram, indo contra Ceciliano. Observai agora também o partido de Donato, do qual se separaram os maximianistas, contra Primiano. Aquilo mesmo que então eles fizeram a Ceciliano, estes agora fizeram a Primiano. Por esta razão, os maximianistas se dizem mais verdadeiros do que os donatistas, porque efetivamente imitaram os feitos de seus maiores. Eles opuseram Maximiniano a Primiano, como os donatistas opuseram Maiorino a Ceciliano. Os primeiros questionaram a respeito de Primiano, como os donatistas acerca de Ceciliano. Pois, se vos recordais, eles afirmaram que Ceciliano não quis ir ao seu encontro, por causa do que tinha na consciência; ele, porém, conhecia o partido deles; assim também os maximianistas se queixam de que Primiano não quis ir ao encontro deles. Por que a Primiano se concede que conhece o partido dos maximianistas, e a Ceciliano não se concede que conhecia o dos donatistas? Maximiano ainda não estava ordenado, e se acusava de crime a Primiano. Vieram os bispos e quiseram que ele fosse ao encontro dos outros; não foi, como indicam os documentos judiciais, incluídos nas Atas. Não foi. Não reprovo; ao contrário, até louvo. Se notaste a existência de uma facção, certamente não devias comparecer ante os membros dela, e sim reservar tua causa a melhor juízo de um tribunal de teu partido. Restava ainda a maioria dos donatistas, diante da qual Primiano poderia justificar-se; por isso, não quis comparecer ante os conspiradores. Vês como elogiamos tua prudência contra os maximianistas; dá igual atenção à causa de Ceciliano. Não queres ter a atitude de um irmão; julgas antes como se foras um estranho. Não quiseste, Primiano, comparecer. O que dizias a ti mesmo? Os deste partido conspiraram contra mim, deixaram-se subornar contra mim; se me entrego a eles, prejudico a minha causa. Não me apresento. Reservo minha causa a juízo melhor, de maior autoridade. Boa decisão. Se Ceciliano pensou também assim? Embora te esforces por demonstrar que uma outra Lucila os subornou contra ti, talvez não encontres. Ceciliano sabia muito bem disto então, como depois revelaram as Atas7 . Mas desconfiaste de um segredo, foi-te denunciada alguma coisa ameaçadora. Admito tal cautela, provocada pelo medo. Fizeste bem de não te apresentar a eles; havia outros para te julgar. Atenta agora a Ceciliano. Reservaste para ti a Numídia; ele, ao invés, a terra inteira. Mas se queres sejam válidas contra ele as sentenças dos donatistas de outrora, sejam válidas agora contra ti as sentenças dos maximianistas. Foram bispos que o condenaram; bispos também são os que te condenam. Por que depois apelaste e venceste os maximianistas, como Ceciliano recorreu e superou os donatistas? Os fatos anteriores se repetem ante nossos olhos, oferecendo-nos admirável manifesto e exemplo. Os maximianistas se queixam de Primiano, da mesma forma que todos eles se queixaram de Ceciliano. É espantoso, irmãos; fico tocado, dou graças a Deus. Efetivamente constitui misericórdia de Deus para com eles, se quiserem entender, o exemplo que lhes é oferecido para seu esclarecimento. Por isso, um pouquinho, irmãos se vos apraz, uma vez que Deus as colocou em nossas mãos, ouvi as atas do concílio dos maximianistas. (Explicando, ele próprio leu as atas do concílio dos maximianistas:)

20 “Aos santíssimos irmãos e colegas, de toda a África”. – (Lendo, disse): Todo o conjunto deles acha-se na África. Mas com eles aqui, está a Igreja católica; nas outras partes da terra eles não estão de permeio com a Igreja católica. (Expondo, continuou:) – “Aos santíssimos irmãos e colegas, de toda a África, a saber, da província Procon-sular, da Numídia, Mauritânia, Bizacena e Trípoli; bem como aos presbíteros e diáconos, a todo o povo, que milita conosco na verdade do evangelho, Victorino, Fortunato, Victoriano, Migino, Saturnino, Constâncio, Candório, Inocêncio, Crescônio, Florêncio, Sálvio, outro Sálvio, Donato, Gemínio, Pretextato”. – (E lendo, disse:) Este é o assuritano, recebido depois; ele posteriormente recebeu aquele que sentenciou contra ele. (E tratando do assunto, continuou:) – “Maximiano, Teodoro, Anastácio, Donaciano, Donato, outro Donato, Pompônio, Pancrácio, Januário, Secundino, Pascásio, Crescônio, Rogaciano, outro Maximiano, Benenato, Gaiano, Victorino, Guntásio, Quintásio, Feliciano”. – (E lendo, disse ainda:) Este é o mústio que ainda vive; mas talvez exista outro, em outro lugar. Os que assinam depois, dizem também o seu lugar de origem. Comentando e continuando a leitura:) – “Sálvio, Migino, Próculo, Latino, e outros presentes ao concílio de Cabarsussi. Saúde eterna, no Senhor. Irmãos caríssimos. Ninguém ignora que os sacerdotes de Deus, não por própria vontade, mas impelidos pela Lei divina, de direito e com razão, pronunciam sentença contra os réus e absolvem os inocentes acusados. Estará sujeito a grave perigo quem poupar um réu, ou tentar matar um inocente. Principalmente porque está escrito: Não matarás o inocente e o justo, e não justificarás o culpado (Ex 23,7). Interpelados, portanto, por este edito da Lei, devíamos ouvir e discutir em sua presença a causa de Primiano, que o povo santo da Igreja cartaginesa, do rebanho de Deus, recebera como bispo, conforme os pedidos da carta dos anciãos da mesma Igreja, de sorte que, havendo todos deposto, ou absolvêssemos como inocente, o que era desejável, ou demonstrássemos com certeza que era culpado e merecedor de condenação. Desejamos ardentemente que o povo santo da Igreja cartaginesa se alegrasse por se sentir honrada de possuir um bispo que fosse tido em tudo por santo e irrepreensível. Efetivamente, o sacerdote do Senhor deve ser tal que mereça impetrar de Deus o que pedir e que o povo não conseguir obter de Deus, uma vez que está escrito: “Se o povo comete uma falta, o sacerdote orará por ele; mas se pecar o sacerdote, quem intercederá por ele?” (cf 1Sm 2,25) – (E o mesmo, tendo lido, explicou:) Os apóstolos também pediram ao povo que rezasse por eles, e diziam na oração: “Perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6,12). E o apóstolo João disse: “Temos como advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, o justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 2,1.2). Mas esta palavra é referente ao sacerdote, que é incompreensível para eles. Então, a profecia adverte ao povo que reconheça por sacerdote aquele pelo qual ninguém pode rezar. Qual o sacerdote pelo qual ninguém ora, senão o que intercede por todos? Outrora havia o sacerdócio levítico. O sacerdote entrava no santuário e oferecia vítimas pelo povo. Era a imagem, não a realidade de certo sacerdote futuro. Os próprios sacerdotes eram pecadores como os demais homens. Querendo Deus profeticamente admoestar o povo a desejar um sacerdote que intercedesse por todos, sem precisar da oração de ninguém, designando-o, advertiu com as palavras: “Se o povo comete uma falta, o sacerdote orará por ele; mas se pecar o sacerdote, quem intercederá por ele?” (1Sm 2,25). Por conseguinte, ó povo, escolhe um sacerdote que não necessite de tuas orações, mas de cuja oração por ti possas estar seguro. Este é nosso Senhor Jesus Cristo, único sacerdote, único mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus (cf 1Tm 2,5). (Depois desta explicação, continuou a ler:) – “Os escândalos de Primiano, e sua malícia singular de tal modo provocaram o juízo celeste que se tornou necessário excluir inteiramente o autor de tais crimes. Ele fora ordenado recentemente”. – (Tendo lido, expôs:) Já, já se começa a enumerar seus crimes. (Tendo explicado, continuou:) – “instigou os presbíteros do povo supramencionado a uma conjuração ímpia, pedindo-lhe, em virtude de um direito precário, que condenasse quatro diáconos, varões egrégios, de mérito singular, a saber, Maximiano, Rogaciano, Donato e Salgâmio”. – (Interrompeu a leitura e disse:) Entre esses quatro estava o autor do cisma, que dividiu uma porção do partido, sem se importar de se separar da unidade. (Tendo explicado, continuou:) “E imediatamente lhe prometem dar seu consentimento. – (Tendo lido, explicou:) Fez-lhes esta proposta; eles não quiseram prometer, mas se calaram. Ele, então, não duvidou em praticar o crime que havia excogitado. (E prosseguiu a leitura:) – “Eles, estupefactos diante desta presunção malvada, repeliram-na com o silêncio. Ele, então, não hesitou em praticar o crime que planejara, a ponto de julgar que se devia pronunciar uma sentença contra o diácono Maximiano, homem inocente, como todos sabem, sem motivo, sem acusador, sem testemunhas e estando ele ausente e acamado”. – (Tendo lido isso, disse:) Vede o crime! (Dito isto, leu:) – “Anteriormente, ele, com igual furor, condenou alguns clérigos. Em sua temeridade, não quis se emendar, de ter admitido adúlteros à santa comunhão, contra a lei e os decretos de todos os sacerdotes, e quando a maior parte do povo lhe resistiu e também pela carta de venerandos anciãos fosse intimado a corrigir por si mesmo vencido por sua temeridade, recusou emendar-se, com desprezo, o que cometerá. Diante desses fatos, os anciãos da supramencionada Igreja, enviaram legados e cartas a todas as comunidades, suplicando com lágrimas que fôssemos com zelo para junto deles, a fim de que, ponderando bem todas as coisas, e examinando os seus planos, fosse restituída a boa fama da Igreja. Em seguida, como atendêssemos aquelas cartas, e fôssemos a sua Igreja, irritado por razões dele conhecidas, escapou inteiramente, à nossa chegada”. – (Tendo lido isto, expôs:) Conheceis suas objeções. Alega que o partido de Donato já está contaminado. Estava estabelecida esta norma: Quais são aqueles com os quais se comunga, tais se tornam todos e a massa inteira. Se, portanto, é verdade o que eles dizem, todo o partido de Donato está contaminado. Apresentem-se, de fato, os numidas, e digam: Não nos interessa se aqueles adúlteros, desconhecidos para nós, foram admitidos por ti à comunhão; poderia atingir-nos a nós, tão distantes? Se, portanto, não quereis que vos atinja na Numídia o que se faz em Cartago, como pôde o que se deu na África prejudicar à terra inteira? Sempre a sua defesa os acusa e nos escusa. (Explicou isso e prosseguiu:) – “Escapou inteiramente, à nossa chegada”. – (Tendo lido, disse:) Foi disto que se queixaram a respeito de Ceciliano. (Depois desta explicação, continuou lendo:) – “Ele até agora recalcitrante e rebelde, perseverou no mal, de sorte que, conduzindo uma multidão de homens perdidos”. – (Lido isto, disse:) Isto já é demais. Tais coisas eles não disseram de Ceciliano. Vede quais. (Tendo explicado, leu o seguinte:) – “e conseguindo o reforço de oficiais, cercaram as portas das basílicas”, – (Tendo lido, disse:) Para os bispos não entrarem. Explicado isso, continuou:) – “eles nos interditaram a entrada e a celebração das festas. Examine e julgue quem ama ou afirma a verdade, se ao bispo convém agir assim, se um cristão pode admiti-lo, se os evangelhos o ordenam. Isto nos infligiu um irmão, outrora próprio; o que nunca faria um estranho”. – (Tendo lido, disse:) Para que acrescentar mais? Dizem muita coisa e condenam o homem; mas leiamos agora a própria condenação. (Exposto isto, disse:) “Decretamos nós todos, sacerdotes de Deus, assistidos pelo Espírito santo, a respeito do mesmo Primiano, primeiro porque substituiu bispos ainda vivos por outros; porque misturou adúlteros com a comunhão dos santos; porque tentou obrigar os presbíteros a formar uma conjuração; porque mandou meter o presbítero Fortunato numa cloaca por ter socorrido a alguns doentes, dando-lhes o batismo; porque negou absolutamente a comunhão ao presbítero Demétrio, para obrigar o filho a renunciar; porque repreendeu o mesmo presbítero, por ter hospedado uns bispos; porque o supramencionado Primiano enviou uma multidão para destruir as casas dos cristãos; porque prendeu bispos com clérigos, e depois seus satélites os apedrejaram; porque na basílica foram mortos os anciãos que se opuseram a que claudianistas fossem admitidos à comunhão; porque julgou que deviam ser ordenados clérigos inocentes; porque não quis apresentar-se para ouvir-nos, quando fechou as portas das basílicas para que não entrássemos, servindo-se do povo e de oficiais; porque rejeitou com injúrias os nossos legados junto deles; porque usurpou muitos lugares, primeiro à força, e depois através de autoridade judiciária”. – (Tendo lido, disse:) Ele não reclama o que foi tirado, embora diga o apóstolo Paulo: “Quando alguém de vós tem rixa com outro, como ousa levá-la aos injustos, e não aos santos?” (1Cor 6,1). Vede de que o recriminam, porque não quis discutir a questão junto dos bispos, mas perante um juiz. (Tendo dado esta explicação, continuou a ler:) – “Além de outras ações ilícitas, que calamos por decoro, foi condenado para sempre pelos sacerdotes reunidos, a fim de que não fosse poupado, e a Igreja de Deus não fosse maculada por contágio ou algum crime. O mesmo apóstolo Paulo exorta e admoesta: Nós vos ordenamos, irmãos, em nome do Senhor Jesus Cristo, que vos afasteis de todo irmão 8 que leve vida desordenada (2Ts 3,6). Por esta razão, lembrados da pureza da Igreja, julgamos oportuno, por meio deste instrumento judicial exortar a todos os santos sacerdotes, a todos os clérigos e a todo o povo que se considera cristão, a que rejeitem com o maior cuidado a comunhão com ele, por ser um condenado. Aquele que tentar violar este nosso decreto, não obedecendo, dará ele próprio contas de sua perdição. Aprouve a nós e ao Espírito Santo, uma vez que lhe foi reservado um longo tempo para se converter, que qualquer sacerdote ou clérigo que, esquecido de sua salvação, desde o dia da condenação do supramencionado Primiano, isto é, do dia oitavo das Kalendas de julho (24 de junho) até o dia oitavo das Kalendas de janeiro (25 de dezembro), não se afastar da comunhão com o condenado Primiano, esteja sujeito a tal sentença. Igualmente os leigos que, do dia citado de sua condenação até o próximo dia de Páscoa, não se separarem de sua companhia, recordem-se de que não poderão ser readmitidos na Igreja, a não ser pela penitência”. (Assinam:) “Victorino, bispo Munacianense. Fortunato, bispo Dionisianense, Victoriano, bispo Carcabianense. Florêncio, bispo de Adrumeto. Migino, bispo de Elefantária. Inocêncio, bispo Thebaltense. Migin, delegado por meu colega Sálvio, bispo Membressitano. Sálvio, bispo Ausafense. Donato, bispo Sabratense. Gemélio, bispo de Tanaba”. – (Tendo lido, disse:) Daqueles que condenaram, assinou também Pretextato Assuritano, e Feliciano Mustio. (Depois desta explicação, continuou:) – “Pretextato, bispo Assuritano. Maximiano bispo Stabatense. Daciano, bispo Camicetense. Donato, bispo Fiscianense, Teodoro, bispo Usulense, Victoriano, por delegação do colega Agnósio, bispo. Donato, bispo Cebresutano, Natálico, bispo Telense. Pompônio, bispo Macrianense. Pancrácio, bispo Balianense. Januário, bispo Aquenense. Secundo, bispo Iacondianense. Pascásio, bispo de Vico de Augusto. Creso, bispo Conjustiacense, Rogaciano, bispo. Maximiano, bispo Erumiense. Benenato, bispo Tuguscianense, Riteno, bispo. Gaiano, bispo. Tiqualense. Victorino, bispo Leptimagnense. Guntásio, bispo Benefense, Quintásio, bispo Capsense. Feliciano, bispo Mústio, Victoriano por delegação do bispo Migino. Migio, bispo. Latino, bispo Mugiense. Próculo, bispo Girbitano. Donato, bispo Sabratense, por meu irmão e colega Marrácio. Próculo Girbitano, por meu colega Galião. Secundiano, bispo Prisianense. Elpídio, bispo Tusdritano. Donato, bispo Samurdatense. Getúlico, bispo Victorianense. Anibônio, bispo Robautense. Idem Anibônio, a pedido de meu colega Augendo, bispo Arense. Tertulo, bispo Abitense. Primuliano, bispo. Secundino, bispo Arusianense. Máximo, bispo Pitanense. Crescenciano, bispo Murrense. Donato, bispo Belmense. Perseverâncio, bispo Tebertino. Faustino, bispo Binense. Víctor, bispo Altiburitano”. (Todos perfazem o número de cinquenta e três.) (Tendo lido, explicou:)

21 Queiram prestar-me um pouco de atenção. Esta é a tua condenação. Dizemos-lhe: O que queres? Tem peso ou não tem? Sou favorável a tua causa, e digo em absoluto que todos disseram coisas falsas contra ti. Ouve por que o acredito: Porque perante outros juízes tiveste ganho de causa, e eles foram condenados. Se, por isto, acredito que és inocente, pois não te apresentaste aos partidários, e em outra parte demonstraste tua inocência, de sorte que mereceram condenação os que te condenaram, queira aceitar que Ceciliano é inocente, ele que não quis apresentar-se a teus maiores, e reservou sua causa para a terra inteira, do mesmo modo que reservaste a tua para o concílio da Numídia. Se o tribunal de Bagai te inocentou, quanto mais a ele a sé apostólica? Ou queres que seja válida a sentença dos que primeiro condenaram? Se é válida, vale contra ti. Pois, eles contra Ceciliano nada puderam, nem poderão; contudo, o que os juízes pronunciaram contra ti, ouve.

22 Neste ponto, eles ousam replicar: mas, nós que depois condenamos os maximinianistas, éramos em maior número. Valha, portanto, vossa sentença contra Feliciano, e valerá a deles contra Ceciliano. Ao se reunirem em concílio em Bagai, condenaram também a Feliciano; agora Feliciano está do lado de dentro. Ou foi recebido sendo culpado, ou foi condenado quando inocente. Se, pois, recebes um culpado, para a paz de Donato, cede diante de todas as gentes, por causa da paz de Cristo. Se, todavia, por erro vosso um inocente foi condenado, puderam errar trezentos e dez que condenaram Feliciano, e não erraram setenta, condenando Ceciliano? Que resposta dais? Ouvindo-nos dizer: Os maximianistas condenaram vossos antepassados, respondeis: Mas nós, que condenamos os maximianistas, éramos em maior número. A ambas as respostas é fácil retrucar, porque também os vossos maiores condenaram a Ceciliano. Se prevalecem os antepassados, os primianistas cedam ao concílio dos maximianistas; se vale o maior número, cedam os donatistas ao orbe da terra; nada de mais justo. Os maximianistas são poucos, mas vieram primeiro. Um réu não acusa a outro. Se julgas assim, como pudeste, sendo um condenado, condenar a outro? Entre os que condenaram, também se acha ele, sem que antes tivesse de se defender. Para Ceciliano foi diferente. Teve de se defender, conforme consta da sentença, porque não foi admitido à comunhão sem se ter justificado. Este, porém, foi condenado por juízes aqui, e lá se acha entre os juízes que condenam. Mas tal foi a equidade do concílio de Bagai; concedemos, absolutamente. Os maximianistas te condenaram sem razão; condenaram também contra o direito os teus maiores a Ceciliano. Tu te justificaste em Bagai; ele se justificou num julgamento de além-mar. A terra inteira aprovou este julgamento. O que hás de dizer? Nós somos em maior número do que os maximianistas. Que seja em maior número! Portanto, tratemos de números. Vê a grande diferença. Os maximianistas te condenaram, em tua ausência, porque não quiseste comparecer diante deles. Nisto há semelhança. Também eles condenaram a Ceciliano, em sua ausência, ao evitar ele comparecer diante do partido deles. Mas tu, novamente, fizeste que fosse proferida sentença contra eles quando ausentes, no concílio de Bagai; ao invés, Ceciliano presente justificou-se perante o adversário. Além disso, outra grande diferença: Tu mesmo procuraste, tu escolheste os juízes da Numídia perante os quais te justificarias, sem que os maximianistas o tivessem pedido. Donato, porem, foi vencido, diante dos juízes, por Ceciliano; o partido de Donato havia pedido estes juízes. Os maximianistas agora te respondem e dizem com razão: Nós, antes, viemos a tua procura, bispos pertencentes a tua província, a tua diocese, e quisemos ouvir tua causa; tu nos desprezaste, recusaste comparecer perante nós. Se receaste nosso juízo, poderíamos ter escolhido juntos os juízes, e não irias àqueles que quisesses. Vede a grande diferença. Então, os próprios donatistas pediram por carta ao imperador que nomeasse juízes; recusaram aqueles perante os quais foram vencidos, e que antes haviam pedido; foram mandados outros, a seu pedido, e foram de novo vencidos; apelaram ao imperador, e foram vencidos. O maximianista ausente foi vencido uma só vez, e se cala; o donatista presente foi vencido três vezes e não se cala?

23 Mas disputas com os maximianistas a respeito de número. Como disse: estou a teu favor. Trezentos e dez são mais do que cem, ou de quantos foram os que condenaram da parte de Maximiano a Primiano; mil bispos por toda a terra que condenaram a Donato, da parte de Ceciliano, não têm peso diante de ti? Mas hás de dizer-me: Acaso mil bispos condenaram os donatistas, de toda a terra? Muito bem; não condenaram. Por que não condenaram? Porque não assistiram ao julgamento. Se não estavam presentes ao julgamento, não condenaram porque desconheceram inteiramente aquela causa. Por que te separaste de inocentes? Se vem aqui, a ti, um batizado de outras partes da terra, e queres rebatizá-lo; ele se aproxima de ti, que já exerce o ministério mortal, e queres reiterar o que se dá uma só vez e não se perde, e te diz, em alta voz e com gemidos: O que me queres fazer? Rebatizar-me? Diz isto alguém da Mesopotâmia, não sei quem da Síria, do Ponto, ou de mais longe. Respondes: Porque não tens o batismo. Por quê? Lê as epístolas do Apóstolo a mim enviadas. Vem não sei quem da Galácia, do Ponto, de Filadélfia, Igrejas às quais escreveu João; vem de Colossas, de Filipos, de Tessalônica, e diz: Eu não tenho o batismo, e no entanto, a mim escreveu o Apóstolo. E tu, de quem o recebeste? Ousas ler a minha epístola, tu que detestas a minha paz?

1 Os guardas.

2 Donatistas.

3 Cf. Brevic. collat. c. Donat. III,8,11- ed. Petschenig, p. 62, 5-6; Contra Crescon. IV. 47,57-p. 554,18-19.

4 Cf Epist. 105,9-ed. Goldbacher, p. 601 s.; Contra litt. Petiliani, II,92,203-ed. Petschenig, p. 127,5; 97,224-p. 4 s.

5 Maximianistas.

6 Primiano.

7 Gesta apud Zenophilum aº 320, ed. Ziwsa, CSEL XXVI, p. 185 ss.; cf. Contra Crescon. III, 29,33 – p. 439, ss.: Epist. 43,6-17-p. 99,15.

8 Irmão omitida nos códices: Os donatistas de bom grado omitiriam a palavra, “dizem os Maurinos”.

SERMÃO III

1 25Havia ficado sem discussão e explicação a última parte deste salmo. No entanto, como vejo, o Senhor nos chamou para pagar nossa dívida, não segundo nosso propósito, mas também não sem uma disposição divina. Ficai atentos, portanto, irmãos, para podermos, com o auxílio de Deus, ao menos agora solver nosso débito. Quem é que diz o que acabamos de cantar? “Fui jovem, e já sou velho, e nunca vi o justo desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão”. Se fala como se fosse um só homem, não é muito tempo a vida de um homem. Que importância há em que um homem de alguma parte da terra, durante toda a vida, que é tão breve (como é breve a vida humana!), embora de jovem chegue até à velhice, não tenha visto um justo abandonado, nem sua descendência a mendigar o pão? Não é de admirar. É possível que antes de sua vida tenha havido um justo a mendigar o pão; pode ter acontecido em outra parte da terra e não onde ele está. Além disso, ouvi o que faz pensar: Cada um de vós, que talvez já tenha envelhecido, olhando para trás e refletindo sobre os seus conhecidos, é possível que não encontre um justo a mendigar o pão, ou o filho de um justo sem meios de vida; contudo, se examina as Escrituras divinas verá o justo Abraão passando por dificuldades, sofrendo fome em sua terra, e transferindo-se para outra região; encontrará também que seu filho Isaac, igualmente por causa da fome, mudou-se para outras regiões, à procura de pão (cf Gn 12,10; 26,1). E como será verdadeira a palavra: “Nunca vi o justo desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão”? E se constatou esta verdade no espaço de sua vida, encontrou outra coisa na leitura divina, que é mais fiel do que a vida humana.

2 O que faremos, então? Auxilie-nos vossa piedosa aplicação, para examinarmos nestes versículos do salmo qual a vontade de Deus, o que ele quis nos dar a entender. É de temer que algum fraco, que não consiga entender espiritualmente as Escrituras, procure exemplos humanos e veja uma ou outra vez bons servos de Deus passando necessidade e forçados a mendigar o pão; principalmente que se lembre do apóstolo Paulo, que diz: “Mais ainda: fome e sede, frio e desnudamento” (2Cor 11,27), e escandaliza-se, dizendo: Será mesmo verdade o que cantei? Será verdade o que, de pé, na Igreja, fiz ressoar com tanta devoção: “Nunca vi o justo desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão”? As Escrituras nos enganam, dirá consigo mesmo. E aconteceu que todos os seus membros sintam-se desfalecer diante de uma boa obra; em seus membros interiores — o que é mais grave — e interiormente desanimado, desista da boa obra, e diga: Para que pratico boas obras? Por que parto meu pão com o faminto, visto o nu, abrigo em minha casa o que não tem domicílio, atendendo ao que está escrito: “Nunca vi o justo desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão”, portanto vejo tantos homens de bem, muitas vezes, passando fome? Mas supondo que erro, pensando que vive bem tanto o homem de bem quanto o que leva vida má, enquanto Deus, ao invés, sabe que é iníquo aquele que considero justo, o que pensar de Abraão, que a própria Escritura recomenda como sendo justo? Como julgar o próprio apóstolo Paulo, que exorta: “Sede meus imitadores como eu o sou de Cristo”? (1Cor 4,16). Também eu devo suportar os mesmos males que ele: “fome e sede, frio e desnudamento”?

3 Revolvendo tais pensamentos e, como disse, enfraquecidos todos os membros interiores para a prática das boas obras, podemos, irmãos, como que carregar um paralítico, abrir o teto das Escrituras, e descê-lo diante do Senhor? Vedes que é uma passagem obscura. E se é obscuro, está encoberto. E vejo interiormente certo paralítico. Vejo também um telhado, e debaixo dele sei que Cristo está oculto. Uma vez que foram elogiados os que abriram o telhado e desceram o paralítico para junto de Cristo, farei o que puder para que este diga ao paralítico: Tem confiança, filho, “teus pecados estão perdoados”. Assim curou-o interiormente da paralísia, perdoando-lhe pecados e fortificando-lhe a fé. Mas ali havia homens que não tinham olhos para ver que o paralítico por dentro já fora curado, e julgaram que o médico, ao curar, estava blasfemando. Disseram: “Quem é este que perdoa pecados? Ele blasfema. Não é só Deus que pode perdoar pecados?” (Lc 5,18-22). Mas, como ele era Deus, ouvia os que cogitavam tais coisas. Pensavam o que é correto a respeito de Deus, mas não viam a Deus, presente ali. Aquele médico fez, então, algo no corpo do paralítico, para curar a paralisia interior daqueles que proferiram tais palavras. Fez alguma coisa que eles poderiam ver, dando-lhes motivo de crer. Eia, pois, quem quer que sejas, tão fraco e doente de coração que, dando atenção a exemplos humanos, queres desistir das boas obras, e estás desanimado por certa paralísia interior; anima-te, para ver se podemos, abrindo este telhado, descer-te para junto do Senhor.

4 O próprio Senhor, em seu corpo, que é a Igreja, foi jovem nos primódios, e agora já envelheceu. Sabeis, reconheceis, entendeis, porque pertenceis a este corpo, e acreditais que Cristo é nossa Cabeça. Nós somos o corpo daquela Cabeça (cf 1Cor 12,27; Ef 4,15). Mas somente nós, e não igualmente aqueles que existiram antes de nós? Todos os justos que existiram desde o começo do mundo têm Cristo por Cabeça. Eles acreditaram que Cristo haveria de vir; nós acreditamos naquele que já veio. Foram curados através da mesma fé que nós. Deste modo, ele é a Cabeça de toda a cidade de Jerusalém, que congrega todos os fiéis do início até o fim, acrescentando-se ainda as legiões e exércitos dos anjos, a fim de se constituir uma só cidade sob o governo de um só rei, um só império sob um só imperador, feliz em perpétua paz e bem-estar, a louvar a Deus eternamente, numa bem-aventurança sem fim. O corpo de Cristo, porém, isto é, a Igreja (cf Cl 1,18.24), como se fosse um ser humano, primeiro foi jovem, e no fim do século já se encontra numa velhice fecunda, porque dela foi dito: “Ainda se multiplicará numa velhice fecunda” (Sl 91,15). Multiplicou-se por todos os povos, e sua voz é como a de um homem que olha para a sua primeira idade, e passando por todas as outras, contempla esta última, porque conhece todas as idades, através das Escrituras; e diz, exultando e exortando: “Fui jovem”, nos primeiros tempos do século, e “já sou velho”, estou nos últimos tempos; e “nunca vi o justo desemparado, nem sua descendência a mendigar o pão”.

5 Reconhecemos o homem jovem e velho, e de certa maneira, através da abertura no telhado, alcançamos a Cristo. Mas, quem é o justo que não foi visto desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão? Se entenderes que pão é esse, hás de saber quem é ele. Pois, o pão é o verbo de Deus, que nunca se afasta da boca do justo, porquanto este justo, tentado em sua Cabeça, respondeu isso mesmo. Pois, quando ao próprio Senhor, faminto e sedento, disse o diabo: “Manda que estas pedras se transformem em pães”, ele respondeu: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,3.4). Além disso, irmãos, notai quando é que o justo não faz a vontade de Deus. Ele sempre a faz, e vive segundo sua vontade. A vontade de Deus não se aparta de seu coração, porque a vontade de Deus é a própria lei de Deus. E o que se diz de tal lei? “Dia e noite a meditará” (Sl 1,2). Comes o pão material por uma hora, e páras; comes aquele pão da palavra dia e noite. Se ouves, se lês, tu o comes; se nele pensas, ruminas, para seres um animal puro, não impuro (Lv 11,3). É isto também o que diz a Sabedoria, por meio de Salomão: “Tesouro precioso há na boca do sábio, mas o insensato o engole” (Pr 21,20). Aquele que engole para que não se veja o que devorou é quem esquece aquilo que ouviu. Quem não se esquece, porém, reflete, e refletindo rumina, e ruminando se deleita. Daí se dizer: “O pensamento santo te guardará” (cf Pr 2,11). Eis, vê se te conserva na ruminação deste pão o santo pensamento seguinte: “Nunca vi o justo desamparado, nem sua descendência a mendigar o pão”.

6 26“É sempre compassivo e empresta”. Em latim se diz: “feneratur”, tanto para quem recebe o empréstimo, como para aquele que o dá; ficaria mais claro se disséssemos: “fenerat”. Que nos importam os gramáticos? É melhor que nos entendais, com nosso barbarismo, do que com a nossa linguagem fluente (disertitudo) vos deixe sem nada (deserti). Portanto, este justo “é sempre compassivo e empresta (fenerat)”. Mas não se alegrem os usurários. Vemos aqui certo usurário, como encontramos uma espécie de pão, para que sempre, abrindo o telhado, cheguemos junto de Cristo. Não quero que sejais usurários; e não quero, porque Deus não quer. Pois, se eu não quero, mas Deus quer, podeis fazê-lo; se, todavia, Deus não quer, mesmo que eu queira, agiria para sua infelicidade quem o fizesse. Como se sabe que Deus não o quer? Foi dito em outra passagem: “Não emprestou dinheiro com usura” (Sl 14,5). Julgo que os próprios usurários sabem como isso é detestável, como é odioso, como é censurável. No entanto, eu mesmo, ou antes, nosso Deus, que te proíbe ser usurário, ordena-te dar de empréstimo; e te diz: Empresta a Deus. Se emprestas a um homem, esperas alguma coisa; e se emprestas a Deus, não esperarás? Se emprestas a um homem, isto é, se deres dinheiro de empréstimo, e dele esperas receber algo mais do que deste, não só um dinheiro, mas algo mais, seja em trigo, vinho, óleo, ou qualquer outra coisa; se esperas receber mais do que deste, és usurário, e isto é reprovável, não louvável. O que farei então, dizes, para emprestar com vantagem? Examina o que faz o usurário. Certamente quer dar menos e receber mais. Faze isto também tu. Dá coisas pequenas e recebe grandes. Vê como cresce largamente o teu empréstimo. Dá bens temporais, e recebe eternos; dá terra, e recebe o céu. E a quem darei, talvez me digas? Apresenta-se para teres a quem emprestar o próprio Senhor, que te ordenava não emprestar com usura. Ouve a Escritura te dizer como hás de emprestar ao Senhor: “Quem faz caridade ao pobre empresta ao Senhor” (Pr 19,17). O Senhor não precisa de ti, mas tens outro que necessita de ti. Dás a este e é ele quem recebe. O pobre não tem com que te retribuir: no entanto, quer retribuir, mas não tem com que te pagar; só lhe resta a boa vontade de rezar por ti. Quando, porém, um pobre reza por ti, é como se dissesse a Deus: Senhor, recebi emprestado, sê meu fiador. Por conseguinte, apesar de não teres no pobre quem te retribua, possuis um idôneo fiador. Eis que Deus te diz, em sua Escritura: Dá tranquilo. Eu pago. Como costumam falar os fiadores? O que dizem? Eu pago; sou eu que recebo, é a mim que dás. Julgamos que também Deus fala assim: Sou eu que recebi, é a mim que dás? Efetivamente, Cristo é Deus, e disto não se duvida e ele disse: “Tive fome e me destes de comer”. E quando os justos lhe perguntaram: “Quando foi que te vimos com fome?” para mostrar que ele é fiador dos pobres, que dá fiança a todos os seus membros, (porque ele é a Cabeça, e os outros são seus membros, e quem recebe os membros, é a Cabeça que recebe), disse: “Cada vez que o fizestes a um desses mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,34.36). Eia, avaro usurário, vê o que deste e o que hás de receber! Se desses um pouco de dinheiro a alguém, e aquele a quem deras, em troca daquele pouco dinheiro te desse uma grande propriedade, incomparavelmente mais valiosa do que a tua doação em dinheiro, quantos agradecimentos darias, que alegria sentirias! Escuta qual a propriedade que te dará aquele a quem emprestaste: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei”. O quê? O que destes? De modo nenhum. Vós destes bens terrenos, que se não tivésseis dado, apodreceriam na terra. O que faríeis deles, se não désseis? O que havia de se perder na terra, foi conservado no céu. Por conseguinte, o que conservado é o que haveremos de receber. Foi guardado o mérito: teu merecimento se fez teu tesouro. Pois, vê o que vais receber: “Recebei o reino preparado para vós desde a criação do mundo”. Ao contrário, aqueles que não quiseram emprestar, o que ouvirão? “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos”. Como se chama o reino que havemos de receber? Atenção ao que segue: “Irão estes para o fogo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mt 25,34-36). Ambicionai esta recompensa, comprai-a, em-prestai por causa dela. Tendes a Cristo, assentado nos céus, e pedinte na terra. Descobrimos como há de emprestar o justo. “É sempre compassivo e empresta”.

7 “E sua raça será abençoada”. Sobre isto não se pense de modo carnal. Vemos muitos filhos de justos a morrer de fome; como, então, “sua raça será abençoada”? Sua raça é o que resta dele; aqui semeia, para colher depois. Pois, diz o Apóstolo: “Não desanimemos na prática do bem, pois se não desfalecermos, a seu tempo colheremos. Por conseguinte, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos” (Gl 6,9). Esta é a tua raça, que será abençoada. Confias à terra, e tanto mais colhes: confias a Cristo, e perdes? Vê como o Apóstolo se refere expressamente à semente, ao falar de esmolas. Assim fala: “Sabei que quem semeia com parcimônia, com parcimônia também colherá, e quem semeia com largueza, com largueza também colherá” (2Cor 9,6). Mas, é com esforço que semeias, e lamentas quando te compadeces, porque vês os infelizes. Será muito melhor no futuro quando não tivermos a quem dar. Quando todos se tornarem incorruptíveis, não haverá faminto para dares pão, nem sedento ao qual ofereças bebida, nenhum nu para vestires, nenhum peregrino para receberes. Aqui, porém, lançamos a semente no meio de tribulações, tentações, dores, gemidos. Mas olha para outro salmo: “Ao partirem, iam chorando, lançando suas sementes”. Vê que “sua raça será abençoada: Ao voltarem, vêm exultantes, trazendo os seus feixes” (Sl 125,6).

8 27Examina a continuação, e não sejas preguiçoso: “Aparta-te do mal e faze o bem”. Não julgues que basta não espoliar o que está vestido. Se não lhe tiras a veste, tu te apartaste do mal; mas não murches, nem te tornes estéril. Não despojes o que está vestido, igualmente veste o nu; isto é apartar-se do mal e fazer o bem. E o que ganho com isto, dizes? Já te expliquei a quem deves emprestar, o que te dará. Ele te dará a vida eterna. Dá-lhe com confiança. Ouve como continua o salmo: “Afasta-te do mal e faze o bem, e permanecerás para sempre”. Não penses quando dás, que ninguém te vê; nem que Deus te abandona, se deres ao pobre e em seguida te acontecer algum prejuízo ou sentires tristeza por causa do que perdeste, dizendo a ti mesmo: De que me serviu esta boa obra? Acho que Deus não ama os homens que fazem o bem. Donde procede esta vossa murmuração, donde este ruído, senão porque abundam palavras destas? Cada um agora ouve estas palavras; vêm de sua boca, ou da boca do vizinho, ou da boca do amigo. Deus as elimine, e extirpe os espinhos de seu campo; plante bons frutos, árvores frutíferas. Por que te contristas, ó homem, de ter dado aos pobres, e ter perdido outros bens? Não vês que perdeste o que não deste? Por que não olhas para teu Deus? Onde está a tua fé? Por que ela dorme deste modo? Acorda-a em teu coração. Presta atenção ao que te disse o próprio Senhor, ao te exortar a tais boas obras: “Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro inesgotável nos céus, onde o ladrão não chega” (Lc 12,33). Lembra-te disso, quando te lamentas do prejuízo. Por que choras tolamente, coração mesquinho, não sadio? Por que perdeste, senão porque não me emprestaste? Por que perdeste? Quem te roubou? Responderás: O ladrão. Eu não te avisei que não depositasses lá onde o ladrão pode alcançar? Se, portanto, se lamenta quem perdeu, condoa-se por não ter colocado lá onde não poderia perder.

9 28“O Senhor ama a justiça e não abandonará os seus santos”. Quando os santos passam por trabalhos, não penses que Deus não julga, ou julga mal. Aquele que te exorta a julgares com justiça, há de julgar injustamente? Ele “ama a justiça e não abandonará os seus santos”. Mas, junto dele acha-se oculta a vida dos santos, de sorte que agora labutam na terra, como no inverno as árvores não têm frutos nem folhas; quando ele aparece, como um novo sol que se levanta, aparece em frutos, o que vivia nas raízes. Portanto, ele “ama a justiça e não abandonará os seus santos”. Mas o santo passa fome? Deus não o abandona; ele castiga todo filho a quem acolhe (cf Hb 12,6). Desprezas quando ele é castigado e temes quando enriquece. Como é castigado? Com angústias temporais. Quando será enriquecido? Quando ouvir: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34). Não recuses o castigo, para estares entre aqueles que merecerão ser recebidos. De tal forma ele ama a justiça que não abandona os santos, castigados por algum tempo. E como castiga todo filho quem acolhe, nem ao Unigênito Deus poupou, apesar de não se encontrar nele pecado. “O Senhor ama a justiça e não abandonará os seus santos”. Visto que não os abandonará, acaso lhes dará o que amas aqui, viver muitos anos, envelhecer? Não dás atenção ao fato de que, apesar de desejares a velhice, estás desejando alguma coisa de que te queixarás quando vier. Não te diga, então, a alma malvada, fraca ou pequenina: Como é verdade que “Deus ama a justiça e não abandonará os seus santos”. Verdadeiramente não abandou os três jovens, que louvavam na fornalha, pois o fogo não os tocou; talvez não fossem santos os Macabeus, que pereceram pelo fogo quanto à carne, mas não quanto à fé? (cf Dn 3,50; 2Mc 77). Dizes: É um grande problema, porque eles não fraquejaram na fé, e Deus os abandonou. Ouve como prossegue o salmo: “Serão conservados para sempre”. Tu lhes desejavas poucos anos, e pensavas que se Deus lhos concedesse, não teria abandonado os seus santos. Visivelmente não abandonou os três jovens, ocultamente não abandonou os Macabeus. Aos primeiros concedeu até a vida temporal para confundir os infiéis; aos segundos coroou ocultamente a fim de julgar a impiedade do perseguidor. Todavia, não abandonou nem os primeiros, nem os segundos, porque ele “não abandonará os seus santos”. E nada de grande teriam recebido os três jovens, se não fossem conservados eternamente. “Serão conservados para sempre”.

10 “Os injustos serão punidos, e a prole dos ímpios será exterminada”. Como a raça dos justos será abençoada, assim “a prole dos ímpios será exterminada”. A prole dos ímpios representa as suas obras. Pois, às vezes verificamos que o filho de um ímpio progride no mundo, e se torna justo, e também progride em Cristo. Vê, portanto, como tomarás o fato, para abrires o telhado e alcançar a Cristo; não o faças carnalmente, senão te enganarás. Mas a descendência dos ímpios, todas as obras dos ímpios perecerão, sem fruto. Durante algum tempo têm certo valor: depois eles procuram e não encontram o fruto de seu trabalho. Pois a seguinte palavra se refere aos que perdem o fruto de seu labor: “Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviu riqueza e arrogância? Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,8). Por conseguinte, “a prole dos ímpios será exterminada”.

11 29“Os justos, porém, herdarão a terra”. Ainda, não se insinue a avareza, prometendo-te uma grande propriedade, a fim de não esperares obter lá aquilo que aqui te é ordenado desprezar. Há uma terra dos vivos, o reino dos santos. Daí a palavra: “Tu és a minha esperança, a minha porção na terra dos vivos” (Sl 141,6). Pois, se aquela é a tua vida, entende qual a terra que hás de receber. É a terra dos vivos; aqui é, contudo, a terra dos que morrem, pronta a receber aqueles que ela nutriu enquanto vivos. Qual, portanto, é aquela terra, tal é a própria vida. Se a vida é eterna, também a terra é eterna. E como é eterna a terra? “Nela habitarão pelos séculos dos séculos”. Será outra, pois, a terra onde habitaremos pelos séculos dos séculos. Porque a respeito desta foi dito: “O céu e a terra passarão” (Mt 24,35).

12 30-32“A boca do justo se exercita na sabedoria”. Aqui está aquele pão; vede com que gosto o come este justo, como saboreia a sabedoria. “E a sua língua proclama a justiça. Está gravada em seu coração a lei de Deus”. Não penses que o justo tem na boca o que não possui no coração. Não o contes entre aqueles dos quais foi dito: “Este povo me glorifica com os lábios, mas o seu coração está longe de mim (Is 29,13). E a sua língua proclama a justiça. Está gravada em seu coração a lei de Deus”. De que lhe serve isto? “Não vacilam seus passos”. A palavra de Deus em seu coração livra do laço, a palavra de Deus em seu coração livra-o do mau caminho, a palavra de Deus em seu coração livra-o da queda. Está contigo aquele cuja palavra não se aparta de ti. Que mal pode sofrer quem é guardado por Deus? Colocas um guarda na vinha, e ficas tanquilo a respeito de ladrões. E no entanto, aquele guarda pode dormir, cair, e permitir a entrada do ladrão. Aquele que guarda Israel, contudo, não dorme, nem cochila (cf Sl 120,4). “Está gravada em seu coração a lei de Deus. Não vacilam os seus passos”. Viva em segurança, mesmo no meio de maus viva em segurança, mesmo entre ímpios. Que espécies de mal pode contra o justo um injusto ou ímpio? Vê como continua: “O mau espreita o justo e procura dar-lhe a morte”. Profere o que no livro da Sabedoria foi predito que o injusto diria: “Basta vê-lo para nos importunar; sua vida se dintingue dos demais” (Sb 2,15). Procura, por isso, dar a morte. E então? O Senhor, que o guarda, que habita com ele, que não se afasta de sua boca, nem de seu coração, o abandona? Como se realiza o que foi dito acima: “E não abandonará os seus santos”?

13 33Portanto, “o mau espreita o justo e procura dar-lhe a morte. Mas o Senhor não o entregará às mãos dele”. Por que, então, entregou os mártires às mãos dos ímpios? Por que lhe infligiram o que quiseram? A uns feriram com a espada, a outros crucificaram, a outros lançaram às feras, a outros queimaram, a outros carregavam de cadeias e mataram com prolongados maus tratos. Certamente Deus não abandona os seus santos: “O Senhor não o entregará às mãos dele”. Afinal, por que entregou seu Filho às mãos dos judeus? Aqui também, abre o telhado (cf Lc 5,19), se queres atingir o íntimo; chega até o Senhor. Ouve o que diz outra Escritura. Prevendo que o Senhor haveria de sofrer da parte dos ímpios, o que diz? “Deixa a terra em poder do ímpio” (Jó 9,24). Que sentido tem a palavra: “Deixa a terra em poder do ímpio”? A carne foi entregue às mãos dos perseguidores. Mas, Deus ali não abandonou o justo; da carne aprisionada tirou a alma invencível. Deus teria abandonado o justo nas mãos do ímpio, se o deixasse consentir no querer do ímpio. Contra este mal, reza outro salmo: “Não me entregues, contra meu desejo, Senhor, ao pecador” (Sl 139,9). Importa que não sejas entregue ao pecador, contra teu desejo. Não aconteça que, desejando a vida presente, caias em poder dele, e percas a vida eterna. Por causa de que desejo, não deve ser entregue ao pecador? Daquele do qual se diz: “Tu sabes que não desejei o dia do homem” (Jr 17,16). Aquele que deseja e ambiciona o dia do homem, quando o adversário o ameaçar de lhe tirar o dia humano, porque o matará e ele perderá esta vida, se ele não espera outra vida, desfalece e consente no que quer o inimigo. Mas, quem ouve o que diz o Senhor: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28), embora a terra seja entregue às mãos do ímpio, a terra é apanhada, mas o espírito escapa; e escapando o espírito, também a terra ressurgirá. O espírito muda, junto do Senhor, a terra se mudará em céu. Nada da terra se perde, apesar de ser entregue por certo tempo às mãos do ímpio. “Até mesmo os vossos cabelos foram todos contados” (Mt 10,30). Há, portanto, segurança, mas se Deus está no interior. Se o diabo é expulso, Deus é recebido. “Mas o Senhor não o entregará às mãos dele, nem o condenará quando for julgado”. Alguns exemplares trazem1 “Et cum iudicabit eum, iudicabitur illi”. Quando o julgar, julgará a respeito dele. “Illi” (para ele), quer dizer, quando o juízo é a respeito dele. Podemos nos exprimir assim, dizendo a um homem: Julga-me, isto é, ouve a minha causa. Ao começar Deus a ouvir a causa de seu justo, “portanto todos nós teremos de comparecer manifestamente perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10), quando o justo chegar ao juízo, Deus não o condenará, embora temporariamente pareça condenado pelos homens. Embora o procônsul tenha proferido a sentença contra Cipriano, um é o tribunal terreno, outro o tribunal dos céus; do inferior recebeu uma sentença, do superior uma coroa. “Não o condenará quando for julgado”.

14 34-36Mas quando será? Não penses que é agora: tempo de labor, tempo de semear, tempo de frio; embora no meio de ventos, apesar das chuvas, semeia. Não sejas preguiçoso. Virá o verão que te alegrará, e te regozijarás de ter semeado. Mas, o que faço agora? “Confia no Senhor”. E enquanto confio, como agir? “E segue seu caminho”. E se seguir, o que recebo? “Ele te exaltará, para obteres a terra em herança”. Que terra? De novo, não te ocorra à mente alguma propriedade. Trata-se daquela: “Vinde, benditos do meu Pai, recebei o reino preprarado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34). E o que será daqueles que nos afligiram, entre os quais gememos, cujos escândalos toleramos, pelos quais, enquanto enfurecidos, em vão oramos; o que sera deles? Segue-se: “Assistirás à ruína dos pecadores”. E verás de perto. Tu estarás à direita e eles à esquerda. Isto compete aos olhos da fé. Os que não possuem os olhos da fé, lastimam a felicidade dos ímpios, e pensam que é inútil ser justos, porque veem os ímpios prosperarem na terra. Mas quem possui os olhos da fé, o que diz? “Vi o ímpio sumamente elevado, tão alto como os cedros do Líbano”. Imagina que é sumamente elevado, muito alto, qual a consequência? “Passei, e já não existia. Procurei-o e não achei o seu lugar.” Por que já não existia, nem achei o seu lugar? Porque passaste. Se ainda pensas carnalmente, e a teu ver esta felicidade terrena é a verdadeira felicidade, ainda não passaste. Ou és igual a ele, ou inferior. Progride, e passa. E quando, com o progresso, passares, tu o olharás com os olhos da fé, verás seu fim, e dirás a ti mesmo: Aí está. Não existe mais aquele que estava todo inchado de orgulho. Será o mesmo que acontece ao passares junto da fumaça. Pois, isto foi dito também mais acima neste salmo: “Dissipar-se-ão como fumaça” (Sl 36,20). A fumaça vai para cima, e avança como um globo entumescido; quanto mais sobe, tanto mais se incha. Mas ao passares, olha para trás; a fumaça fica para trás, se Deus está a tua frente. Não olhes desejoso para trás, como olhou a mulher de Ló, e ficou no caminho (Gn 19,26); mas olha com desprezo, e verás que o ímpio já não existe, e procuras seu lugar. Qual é o seu lugar? Como tem poder, tem riquezas, tem certa posição nas coisas humanas, muitos lhe obedecem, manda e é ouvido. Este lugar não existirá mais, mas passará, de sorte que poderás dizer: “Passei, e já não existia”. Qual o significado de “passei”? Adiantei-me, cheguei aos bens espirituais, entrei no santuário de Deus, para dar atenção ao que vem no fim (cf Sl 72,17): “E já não existia. Procurei-o e não achei o seu lugar”.

15 37“Guarda a inocência”. Guarda, como guardavas a bolsa quando eras avaro; como seguravas a bolsa para que o ladrão não a roubasse, assim guarda a inocência a fim de que o diabo não te roube. Seja ela teu patrimônio garantido, porque através dela fazem-se ricos também os pobres. “Guarda a inocência”. De que te serve o lucro de ouro, com dano da inocência? “Guarda a inocência e observa a retidão”. Deves ter olhos corretos, para veres a direção: não olhos malvados para veres os maus e distorcidos, de maneira que Deus te pareça torto e mau, por favorecer os ímpios e perseguir os fiéis. Não verificas como enxergas torto? Corrige teus olhos e “observa a retidão”. Que retidão? Não prestes atenção às coisas presentes. E o que verás? “Sempre restam alguns bens ao homen pacífico”. Quais são os bens que restam? Ao morreres, não morrerás inteiramente, quer dizer, “restarão alguns bens”. Depois desta vida, haverá para ele ainda alguma coisa; isto é, aquela raça que será abençoada. Daí dizer o Senhor: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11,25). “Sempre restam alguns bens ao homem pacífico”.

16 38“Os injustos perecerão em si mesmos”. O que quer dizer: “em si mesmos”? Eternamente; ou, todos simultaneamente. “O restante dos ímpios precerá”. Restam alguns bens ao homem pacífico; portanto, os que não são pacíficos são ímpios. Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9).

17 39.40“A salvação dos justos vem do Senhor. Ele é o seu refúgio no tempo da aflição. O Senhor os ajudará e livrará. Arrancá-los-á das mãos dos pecadores”. Os justos tolerem agora os pecadores, o trigo tolere o joio, o trigo suporte a palha, porque virá o tempo da separação, e a semente boa será retirada do meio daquela que há de ser consumida pelo fogo. Uma será guardada no celeiro, e a outra lançada ao incêndio eterno. Pois, estiveram juntos, anteriormente, o justo e o injusto, para que este suplantasse e o outro fosse experimentado; depois, no entanto, um será condenado e o outro coroado.

18 Graças a Deus, irmãos. Pagamos nossa dívida, em nome de Cristo; mas a caridade sempre nos mantém como devedores. É a única dívida que, se diariamente é paga, sempre permanece. Dissemos muito contra os donatistas, lemos muita coisa, muitas cartas, muitos documentos além dos cânones das Escrituras, porque eles a isto nos forçaram. Pois, se criticarem porque vos lemos tais coisas, que nos repreendam, contanto que fiqueis bem informados. Podemos também lhes responder a este respeito: “Procedi como insensato! Vós me constrangestes a isto” (2Cor 12,11). Todavia, irmãos, antes de tudo guardai a nossa herança, garantida pelo testamento de nosso Pai; não por carta banal de um homem, mas pelo testamento de nosso Pai. Daí a nossa segurança, porque aquele que fez o testamento vive. Quem fez o testamento para seu herdeiro, julgará a respeito de seu testamento. Nas questões humanas um é o testador, e outro o juiz; contudo, o que possui o testamento vence perante um juiz, mas não junto de outro juiz morto. Quanto mais segura não é a nossa vitória, porque julgará aquele que fez o testamento! Embora tenha Cristo morrido temporariamente, já vive eternamente. 1 Alguns exemplares gregos. Cf. De Bruyne, Augustin Reviseur, p. 556.

19 Falem contra nós o que quiserem; quanto a nós, amemo-los, mesmo contra a sua vontade. Conhecemos bem, irmãos, conhecemos as suas línguas. Por causa delas não nos irritamos contra eles; suportai pacientemente conosco. Veem que não ganham a causa, voltam suas línguas contra nós e começam a falar mal de nós, muitas coisas que sabem e muitas que ignoram. Conhecem o nosso passado; fomos outrora, como diz o Apóstolo, estultos e incrédulos e incapazes de toda obra boa (cf Tt 3,3). Insensatos num erro perverso e loucos, não negamos; e quanto mais não negamos nosso passado, tanto mais louvamos a Deus, que nos perdoou. Por que razão, ó herege, deixas de lado a causa e atacas o homem? O que sou eu? O que sou? Acaso sou a Igreja católica? Acaso a herança de Cristo difundida por todos os povos? Basta-me estar dentro dela. Censuras meus pecados passados. O que fazes de importante? Sou mais severo em relação a meus pecados do que tu. Tu censuras, eu condeno. Oxalá quisesses me imitar, para que teu erro também pertença ao passado! São do passado os meus pecados, bem conhecidos, principalmente nesta cidade. Foi aqui1 que vivi mal. Confesso-o. E tanto mais me alegro com a graça de Deus, quanto acerca de meu passado, o que direi? Pesa-me? Pesaria se ainda nele estivesse. Mas, o que direi, então? Alegro-me? Também isso não posso dizer; quem me dera que nunca houvesse existido! Por pior que tenha sido, em nome de Cristo, está apagado. O que agora podiam repreender, eles não sabem. Haveria ainda algo de repreensível em mim; mas estão longe de conhecê-lo. Agito-me em meus pensamentos, lutando contra as sugestões más, e tenho um combate prolongado, e quase contínuo com as tentações do inimigo, que quer me derrubar. Gemo diante de Deus em minha fraqueza; e conhece o que nasce em meu coração aquele que sabe como nasci. “Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós ou por um tribunal humano, disse o Apóstolo. Eu também não me julgo a mim mesmo” (1Cor 4,3). Conheço-me melhor a mim mesmo do que eles, mas Deus me conhece melhor do que eu mesmo. Por conseguinte, não vos ataquem por nossa causa. Cristo não o permita. Eles dizem: Quem são? De onde são? Sabemos que eles são maus. Onde foram batizados? Se nos conhecem bem, deviam saber que outrora navegamos, saber que peregrinamos; estar cientes de que voltamos muito diferentes do que éramos. Não fomos batizados aqui; mas onde fomos batizados2 é uma igreja conhecida em toda a terra. E são muitos os nossos irmãos que sabem que fomos batizados e foram batizados conosco. É fácil de verificar, se algum dos irmãos está preocupado com isto. Mas, havemos de lhes dar satisfação e fazer demonstrações com algum testemunho da Igreja, com a qual não estão em comunhão? Com razão não sabem que fomos batizados em Cristo além mar, porque eles não encontram a Cristo além mar. Encontram a Cristo além mar os que além mar estão em comunhão com a Igreja universal. Como pode saber onde fui batizado, quando a sua comunhão mal atravessa o mar? Por isso, meus irmãos, o que lhes direi? Suspeitai o que quiserdes de nós. Se somos bons, somos trigo na Igreja de Cristo; se somos maus, somos palha na Igreja de Cristo, contudo não nos apartamos da eira. Tu que, com o vento da tentação voaste para fora, o que és? O vento não carrega o trigo para fora da eira. Pelo lugar onde te achas, então, reconhece o que és.

20 Mas tu, pode-se objetar, quem és que proferes tantas coisas contra nós? Seja eu quem for, atende ao que é dito, e não por quem. Mas o Senhor diz ao pecador: “Que te adianta ter minha aliança na boca?” (Sl 49,16). O Senhor diga isto ao pecador; talvez exista uma espécie de pecadores à qual o Senhor assim fala, de fato; mas seja quem for aquele ao qual o Senhor desta maneira se dirige, assim fala porque não adianta ao pecador proferir a lei de Deus. Acaso não adianta também aos ouvintes? Conforme afirma o Senhor, temos na Igreja ambas as espécies: bons e maus. Ao pregarem, o que dizem os bons? “Sede meus imitadores (1Cor 4,16) como eu o sou de Cristo”. E o que se diz a respeito dos bons? “Sê para os fiéis um modelo” (1Tm 4,12). Isto é o que nos esforçamos por ser; mas o que somos realmente, sabe aquele junto do qual gememos. Acerca dos maus, há uma palavra diferente: “Os escribas e os fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações” (Mt 23,2.3). Vês que na cátedra de Moisés, à qual sucedeu a cátedra de Cristo, sentam-se também alguns maus; todavia, se falam o que é bom não causam dano aos ouvintes. Por que razão tu, devido aos maus, abandonaste a cátedra? Volta à paz, volta à concórdia; ela não te prejudica. Se falo o bem, e o pratico, imita-me; se, ao invés, não faço o que digo, tens o conselho do Senhor: faze o que digo, e não faças o que faço. No entanto, não te apartes da cátedra católica. Eis que vamos partir, em nome de Cristo, e muita coisa há de ser dita por eles. Qual a finalidade? Para que logo despre-zeis a nossa causa. Dizei-lhes apenas isto: Irmãos, respondei à altura. Agostinho é bispo da Igreja católica, carrega o seu fardo, e há de prestar contas a Deus. Sei que está entre os bons; se é mau, ele o sabe; se é bom, nem assim depositei nele minha esperança. Antes de tudo, aprendi na Igreja católica que não devo depositar minha esperança num homem. Com razão, vos censuram os homens porque depositastes vossa esperança num homem. Sem dúvida, quando eles nos censurarem, menosprezai também vós. Sabemos que lugar ocupamos em vosso coração, porque sabemos que lugar ocupais no nosso. Não vale a pena discutir com eles a nosso favor. Seja o que for que disserem contra nós, passai por alto, a fim de não acontecer que empenhados em nossa defesa, deixeis de lado a vossa causa. Eles agem assim por astúcia. Não querendo e receando que tratemos de sua causa, introduzem questões que desviem nossa atenção dela, de sorte que, enquanto cuidamos de nos justificar, calemos o que pode convencê-los. Pois, de fato, se me chamas de mau, acrescento razões inumeráveis. Acaba logo com isto, põe um ponto final na minha causa, trata do assunto, atende à causa da Igreja, vê onde estás. Recebe com fome a verdade, seja donde for que te fale, para não suceder que nunca o pão chegue às tuas mãos, porque procuras sempre, com fastio e crítica, o que condenar no prato.

1 Em Cartago, cf. Confess, III,1 ss.

2 Em Milão, cf. Confess. IX,6

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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