SERMÃO I (Em Tagaste)
1 1Esteja ciente V. Caridade que meus irmãos e companheiros no episcopado impuseram-me a tarefa de comentar este salmo. Quiseram que todos nós ouvíssemos alguma coisa a respeito dele. Ouçamos, pois, todos daquele de quem todos igualmente aprendemos e em cuja escola todos somos condiscípulos. Não é preciso determo-nos no próprio título. É curto, e não é difícil de entender, principalmente para os que foram educados na Igreja de Deus. Intitula-se o salmo: “A Davi”. Davi siginifica: de mão forte, ou desejável. O salmo é dedicado, pois, aquele que têm mão forte e é desejável, que venceu a nossa morte, e nos prometeu a vida. Mão forte, porque venceu a nossa morte. Desejável, porque prometeu a vida eterna. O que há de mais forte do que esta mão que tocou o esquife e ressuscitou um morto? O que de mais forte do que esta mão, que venceu o mundo, sem estar armada de ferros, e sim estando pregado ao madeiro? O que há de mais desejável do que aquele que os mártires não viram, mas quiseram morrer para merecerem chegar até ele? A ele, portanto, cante o salmo; a ele cante nosso coração, a ele cante dignamente a nossa língua; se, contudo, ele se dignar dar-nos a possibilidade de cantá-lo. Ninguém pode cantar-lhe dignamente, se dele mesmo não receber os cânticos. Finalmente, o cântico que acabamos de cantar, foi composto por seu profeta, sob inspiração do Espírito. Nestas palavras nos reconhecemos a nós mesmos e também a ele. Não o injuriamos, se dizemos nós e ele, porque do céu ele clamou: “Por que me persegues?” (At 9,4)? E no entanto, ninguém o tocava, mas nós combatíamos na terra. Ouçamos, portanto, a sua voz, ora do corpo, ora da Cabeça. Este salmo invoca a Deus contra os inimigos, nas tribulações deste mundo. Efetivamente trata-se de Cristo, ora aflito na Cabeça, ora atribulado no corpo. Pela tribulação, contudo, ele dá a todos os seus membros a vida eterna, que se tornou desejável por meio de sua promessa.
2 1.2“Julga, Senhor, os que me atacam, combate os meus adversários”. Se Deus está por nós, quem está contra nós (cf Rm 8,21)? Como Deus nos concede isto? “Empunha as armas e o escudo; ergue-te e vem em meu socorro”. Grande espetáculo é este: ver Deus armado em teu favor. E qual é o seu escudo? Quais as armas? “Senhor”, disse em outro salmo quem fala aqui, “como um escudo, nos cercaste de benevolência” (Sl 5,13). Suas armas, porém, com as quais não só os provê, mas ainda fere os inimigos, se progredirmos no bem, seremos também nós. Como nós, para nos munirmos, recebemos dele, assim ele se arma conosco. Mas ele se arma com aqueles que ele fez; nós nos armamos com os dons de nosso criador. Em certa passagem diz o Apóstolo que nossas armas são o escudo da fé, o capacete da salvação, e o gládio do espírito, que é a palavra de Deus (cf Ef 6,16.17). Ele nos muniu de tais armas, cuja referência ouvistes; são louváveis e invictas, insuperáveis e esplêndidas; espirituais e invisíveis, porque combatemos com inimigos invisíveis. Se vês teu inimigo, tens armas visíveis. Armamo-nos com a fé naquelas coisas que não vemos, e prostramos inimigos que não vemos. Todavia, caríssimos, não penseis que estas armas são feitas de tal modo que o escudo seja sempre escudo, ou o capacete continue sempre capacete, ou a couraça sempre seja couraça. Isto sucede às armas materiais, embora o ferro de que são feitas possa transformar-se: de uma espada se faz um machado. Ao invés, vemos que o mesmo Apóstolo num texto escreveu couraça da fé, e em outro, escudo da fé. A mesma fé, portanto, pode ser couraça e escudo; escudo, porque apara os dardos do inimigo e os repele; couraça porque impede que sejas traspassado. Estas são as nossas armas. Quais são as de Deus? Lemos em certa passagem: “Dos ímpios livra a minha alma, tua espada dos inimigos de tua mão” (Sl 21,21). Acima disse: Dos ímpios, e no versículo seguinte: “dos inimigos de tua mão”. Primeiro: “minha alma” e depois: “tua espada”, isto é, teu gládio. Chamou, portanto sua alma de espada de Deus. Disse: “Dos ímpios livra a minha alma”, isto é, “tua espada dos inimigos de tua mão”. Tomas a minha alma, e debelas meus inimigos. E o que é nossa alma, apesar de esplêndida, desembainhada, afiada, ungida, vibrante pela luz e brilho da sabedoria? O que é nossa alma, o que pode, se Deus não a segurar e lutar com ela? Pois, por melhor que seja a espada, se não houver um guerreiro, fica jogada. Havíamos dito que não devemos imaginar nossas armas como algo de fixo, de sorte que de uma não se possa transformar em outra coisa; assim também acontece entre as armas de Deus. Afirmei que a alma do justo é espada de Deus; ainda pode-se chamar a alma do justo de sede Deus; a alma do justo é sede da sabedoria (cf Sb 7). Portanto, o que Deus quer, ele faz de nossa alma. Como está em suas mãos, ele a usa como lhe apraz.
3 Erga-se, portanto (assim foi invocado), empunhe as armas, venha em nosso socorro. De onde surge, diz-se também em outra passagem: “Levanta-te; por que dormes, Senhor?” (Sl 43,23). Quando se diz que ele dorme, somos nós que dormimos; e quando se fala que ele se levanta, somos nós que acordamos. O Senhor dormia na nave. A nave flutuava, porque Jesus dormia. Pois, se Jesus ali estivesse desperto, a nave não flutuaria. Tua nave é teu coração. Jesus é a nave, é a fé no coração. Se te lembras de tua fé, teu coração não hesita; se te esqueces de tua fé, Cristo dorme; cuidado com o naufrágio. No entanto, faze o que resta. Se está dormindo, acorda-o. Dize-lhe: Senhor, salva-nos, estamos perecendo, para que ele conjure os ventos, e faça-se a bonança em teu coração (cf Mt 8,24). Afastam-se todas as tentações, ou certamente nada poderão, quando Cristo, isto é, a tua fé, estiver vigilante em teu coração. “Ergue-te”, por conseguinte, o que significa? Manifesta-te, aparece, evidencia-te. “Ergue-te”, portanto, “e vem em meu socorro”.
4 3“Desembainha a espada e fecha o caminho aos meus perseguidores”. Quais são os teus perseguidores? Acaso teu vizinho, ou aquele a quem causaste dano, ou injuriaste, ou que procura roubar-te o que é teu, ou contra quem pregas a verdade, ou cujo pecado censuras, ou a quem a tua vida honesta incomoda porque ele vive mal. Estes igualmente são, de fato, nossos inimigos, e nos perseguem; mas recebemos o ensinamento para reconhecermos outros inimigos, contra os quais lutamos invisivelmente. A respeito deles nos admoesta o Apóstolo: “Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne”, isto é, contra homens; não é contra inimigos visíveis, mas contra os invisíveis, “contra os Principados, contra as Postetades, contra os Dominadores deste mundo de trevas” (Ef 6,12). Ao dizer ele: “Dominadores do mundo” (referia-se efetivamente ao diabo e a seus anjos), é preciso ouvir com cautela. Não me entendam mal os homens e pensem que este mundo é governado pelo diabo e seus demônios. Mas como se dá o nome de mundo tanto ao universo visível, quanto aos pecadores, e aos que amam o mundo, a respeito dos quais se declarou: “O mundo não o conheceu” (Jo 1,10), e de novo: “O mundo inteiro está sob o poder do Maligno” (1Jo 5,19), o Apóstolo expôs de que mundo são esses dominadores: “deste mundo de trevas”. Dominadores deste mundo, digo, dominadores “destas trevas”. Novamente nos incita a entender o que chama de “trevas”. De quais trevas o diabo e seus anjos são dominadores? De todos os infiéis, de todos os iníquos, acerca dos quais foi afirmado: “E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam” (Jo 1,5). Finalmente, o que assegura o Apóstolo acerca da multidão dos fiéis, provenientes do número dos que não acreditavam? “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Não queres ser súdito do diabo? Emigra para a luz. E como emigrarás para a luz, se o Senhor não desembainha a espada, e te livrar de teus inimigos e perseguidores? Como desembainha a espada (Já ouvimos qual o significado de espada. É a alma do justo). Superabundem os justos, e a espada será desembainhada, e o caminho será fechado aos inimigos. Relativamente à espada desembainhada, o Apóstolo nos adverte a vivermos na justiça, e diz em consequência: “Para que o adversário, nada tendo o que dizer contra nós, fique envergonhado” (Tt 2,8). Seu caminho foi fechado, porque ele não encontra o que falar contra os santos.
5 E onde estão os justos? Ou o que dizem os inimigos que nos perseguem? O que dizem aqueles inimigos invisíveis? Nada? Principalmente aqueles inimigos que atacam invisivelmente sugerem ao coração humano que Deus não é nosso auxílio; procurando ajuda noutra parte, tornamo-nos impotentes, e somos apanhados pelos mesmos inimigos. Isto, pois, é sugerido. Contra essas vozes especialmente temos de vigiar, conforme se demonstra em outro salmo: “Numerosos são os que se insurgem contra mim! São muitos a dizer a minha alma: Para ele não há salvação junto de Deus” (Sl 3,2.3). Contra essas palavras, o que se diz aqui? “Dize a minha alma: eu sou a tua salvação”. Ao dizeres a minha alma: “eu sou a tua salvação”, ela viverá na justiça; e não procurarei outro auxílio senão em ti.
6 4Como continua o salmista? “Cubram-se de vergonha e confusão os que buscam a minha alma”. Buscam-na para perdê-la. Oxalá procurem para seu bem! Em outro salmo, o salmista acusa os homens, porque não havia quem procurasse a sua alma: “Não tenho aonde fugir, e não há quem procure a minha alma” (Sl 141,5). Quem será que declara: “Não há quem procure a minha alma”? Será aquele, de quem foi predito com tanta antecedência: “Traspassaram-me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos. Estiveram a olhar-me e me examinaram. Dividiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes” (Sl 21,17-19)? Tudo isso já se realizava diante de seus olhos, e não havia quem procurasse a sua alma. Invoquemos, portanto, irmãos; diga à nossa alma: “Eu sou a tua salvação”, e abra-lhe os ouvidos para ouvir: “Eu sou a tua salvação”. O Senhor fala, mas alguns fazem-se de surdos, e ouvem de preferência, em sua tribulação, os inimigos perseguidores. Se falta alguma coisa, se a alma está angustiada, na indigência de bens temporais, não raro procura auxílio junto dos demônios, quer consultar os possessos, procura os agoureiros. Perseguindo-os, os inimigos invisíveis se aproximaram, entraram, tomaram de assalto, reduziram ao cativeiro, venceram, dizendo: “Para ele não há salvação junto de Deus”. Ficou surda para a palavra: “Eu sou a tua salvação. Dize a minha alma: Eu sou a tua salvação, para que se cubram de vergonha e confusão os que buscam a minha alma”, e aos quais dizes tu: “Eu sou a tua salvação”. Quero ouvir ao Senhor que me diz: “Eu sou a tua salvação”. Não hei de procurar outra salvação, fora do Senhor, meu Deus. É-me sugerida uma salvação proveniente da criatura; esta também vem dele. Se levanto os olhos para os montes, para ver donde me virá o auxílio (cf Sl 120,1.2), não há de provir dos montes, mas meu auxílio se origina do Senhor, que fez o céu e a terra. Até mesmo nas dificuldades temporais, Deus socorre por meio dos homens; ele mesmo é a tua salvação. Se é por um anjo que Deus socorre, ele mesmo é a tua salvação. Tudo lhe está sujeito, e ora daqui, ora dali, ele atende às necessidade da vida temporal; mas a vida eterna, só ele a dá, de si mesmo. Quando te achas no meio de privações, falta-te o que queres, mas está presente aquele a quem buscas. Procura aquele que nunca pode faltar. Sejam retiradas as coisas que ele havia dado; acaso se subtrai aquele que deu? Devolvam-se os bens que ele havia dado. Acaso são verdadeiras riquezas, ao lhe serem devolvidas, e não o será quem as tirara para nos provar, e nô-las devolve para consolar? Ele nos consola quando estes bens não nos faltam. Consola-nos como a viajores, se entendermos bem o que é este caminho. A vida inteira e tudo o que usares nesta vida devem ser para ti como uma hospedaria para um viajante, e não como uma casa para seu morador. Lembra-te de que percorreste uma parte do caminho e resta ainda um pouco. Paraste para refazer as forças, não para perdê-las.
7 Alguns há que dizem: Deus é bom, grande, sumo, invisível, eterno, incorruptível, e há de darnos a vida eterna, e aquela incorrupção que nos prometeu, na ressurreição; no entanto, estes bens mundanos e temporais pertencem aos demônios, e àquelas Postestades das trevas. Falando isto, quando envolvidos no amor a estes bens, abandonam a Deus, como se estas coisas não lhe pertencessem; e procuram por sacrifícios abomináveis, e não sei quais remédios, ou por determinada persuasão ilícita, prover-se de recursos temporais, como dinheiro, mulher, filhos e coisas semelhantes que consolam ao que passa pela vida humana, ou o impedem de andar. Contra esta opinião, está vigilante a providência divina. Demonstra que a Deus pertencem todas essas coisas, e que estão em seu poder não somente os bens eternos prometidos para o futuro, mas ainda os temporais que na terra ele dá a quem quer, e quando quer, oportunamente, sabendo a quem dar e a quem não dar, como o médico ministra o remédio conhecendo melhor a doença do que o próprio doente. Deus, portanto, no intuito de mostrar tudo isto, distribuiu os tempos do Antigo e do Novo Testamento. No Antigo Testamento há promessas de bens temporais; no Novo, do reino dos céus. Em ambos, existem muitos preceitos de como adorar a Deus e de como viver honestamente. Mas, como as promessas parecem diferentes em um e outro, a ordem do legislador e a obediência do súdito são iguais, porém difere a recompensa. Efetivamente, no Antigo foi dito aos judeus que sua meta seria receber a terra da promissão, ali reinar, superar os inimigos, não ser por eles subjugados, ter fartura de tudo naquela terra, procriar filhos. Estas promessas são terrenas, mas figurativas. Imagine que eles as tomavam assim como foram proferidas; e na verdade, muitos as receberam literalmente. Pois, a terra foi dada aos filhos de Israel, foram-lhe concedidas riquezas, tiveram filhos até as mulheres estéreis e velhas, que os pediram a Deus, e só dele os esperaram, sem procurarem outro auxílio, mesmo relativamente a estes bens temporais. Ouviram em seus corações a palavra do Senhor: “Eu sou a tua salvação”. Se ele o é relativamente aos bens eternos, por que não o seria para os temporais? Demonstrou-o Deus na causa de Jó aquele santo varão. O próprio diabo não tem o poder de tirá-los, se não o receber da potestade suprema. Pôde invejar o santo; acaso pôde causar dano? Pôde acusar; mas pôde condenar? Pôde talvez tirar-lhe algo, mesmo uma unha, ou arrancar um fio de cabelo, se Deus não lhe tivesse dito: “Estende a tua mão (Jó 1,11)? O que significa: “Estende a tua mão”? Dá o poder. Recebeu. O demônio tentou, Jó foi tentado. Tentado embora, venceu, e o tentador saiu vencido. Deus, pois, que permitira ao diabo que tirasse aqueles bens, não abandonara interiormente seu servo, e para superar o diabo fizera da alma de seu servo uma espada para si. Que importância tem isto? Falo do homem. Vencido no paraíso (Gn 3,6), vencedor no estrume. Lá vencido pelo diabo, por intermédio da mulher, aqui vence o diabo e a mulher. Disse: “Falas como uma insensata. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” (Jó 2,10). Como ouvira bem a palavra: “eu sou a tua salvação!”
8 “Cubram-se de vergonha e confusão os que buscam a minha alma”. Olha para os homens. O Senhor diz: “Orai por vossos inimigos” (cf Mt 5,44). Mas no salmo se trata de uma profecia. O dito, em forma optativa, explica-se como tendo sentido profético. Faça-se isto ou aquilo. Nada mais é do que declarar que isto e aquilo haverá de acontecer. Ouvi, por conseguinte, a profecia: “Cubram-se de vergonha e confusão os que buscam a minha alma”. O que significa: “Cubram-se de vergonha e confusão”? Serão envergonhados e confundidos. Assim sucedeu. Muitos foram confundidos salutarmente, muitos envergonhados de terem perseguido a Cristo, passaram para a sociedade de seus membros, por dedicada piedade; e isto não se faria, se não tivessem sido confundidos e envergonhados. Foi, portanto, um bom desejo. Mas, como há duas espécies de vencidos, vencidos de duas maneiras: ou vencidos para se converterem a Cristo, ou vencidos para serem condenados, aqui vemos explicadas as duas espécies, embora de um modo obscuro, que exige bom entendedor. Dos que se convertem, entende-se a palavra: “Cubram-se de vergonha e confusão os que buscam a minha alma. Recuem”. Não precedam, mas sigam; não deem conselho, mas recebam. Pois, Pedro quis preceder o Senhor, quando ele predizia sua futura paixão; quis dar-lhe um conselho aparentemente salutar, o doente procurando aconselhar o salvador. Confirmando o Senhor a predição de sua futura paixão, o que lhe diz Pedro? “Longe de ti, Senhor, tem pena de ti mesmo. Isto jamais te acontecerá!” Qual foi a resposta? “Retrocede, Satanás!” (Mt 16,22.23). Precedendo, és Satanás; seguindo, serás discípulo. Igualmente a estes se diz: “Recuem cheios de rubor os que tramam o mal contra mim”. Quando começarem a ir para trás e seguir, já não planejarão o mal, mas desejarão o bem.
9 5.6E os outros? Porquanto nem todos são vencidos e se convertem e creem. Muitos permanecem pertinazes, muitos mantêm no coração o anelo da precedência; e se não semearam, no entanto concebem, e se encontrarem uma oportunidade, dão à luz. A respeito destes, como continua o salmo? “Sejam como o pó levado pelo vento. Bem diversa será a sorte dos ímpios, poeira que o vento carrega da superfície da terra” (Sl 1,4). O vento é a tentação, a poeira é o iníquo. Quando vier a tentação, a poeira é carregada; não permanece, não resiste. “Sejam como o pó levado pelo vento, quando o anjo do Senhor vier afugentá-los. Seja tenebroso e escorregadio o seu caminho”. Caminho horrível! Quem não tem horror já apenas das trevas? Quem não se acautela de um chão escorregadio? Por onde caminharás nas trevas, num caminho escorregadio? Onde firmarás os pés? São estes dois males os maiores castigos dos homens: trevas, ignorância; terreno escorregadio, luxúria. “Seja tenebroso e escorregadio o seu caminho, quando o anjo do Senhor vier afugentá-los”, a fim de não ficarem de pé. Se alguém estiver nas trevas e em lugar escorregadio, vendo que se mover um pé resvala, por falta de iluminação diante de si, talvez espere até a aurora; mas o anjo do Senhor está ali para afugentá-los. O salmista lhes prediz esses acontecimentos futuros; não desejou que sucedessem. Embora o profeta os tenha predito, sob inspiração do espírito de Deus, como Deus os realiza, por juízo determinado, bom, justo, santo, tranquilo, sem ira, nem zelo amargo, nem inimizade, mas por justiça a punir os vícios, todavia é profecia.
10 7De onde provêm todos estes males? Qual o motivo? Ouve qual a razão: “Por que sem motivo armaram-me um laço traiçoeiro para perder-me”. Voltai a atenção para nossa Cabeça. Assim agiram os judeus; armaram-lhe um laço traiçoeiro para perdê-lo. Para quem armaram o laço traiçoeiro? Para aquele que via os corações dos que o escondiam. Estava no meio deles, assemelhando-se a um ignorante que se enganasse, enquanto eram eles que se enganavam julgando-o iludido.Vivia no meio deles como se estivesse enganado, porque nós haveríamos de viver entre eles, e sem dúvida seríamos enganados. Ele via o traidor e escolheu-o para uma obra necessária. Realizou um grande bem por meio de sua maldade. E no entanto, foi escolhido um dos doze, a fim de que nem no meio daquele número tão pequeno de discípulos faltasse um malvado. Servisse-nos de exemplo para exercermos a paciência, porque era forçoso que vivêssemos no meio de maus. Era necessário que tolerássemos os maus, estando cientes ou não. Apresentou-te um exemplo de paciência para não desanimares, ao começares a viver no meio dos maus. Como aquela escola de Cristo, constituída só de doze não desfaleceu, quanto mais nós devemos ficar firmes, quando acontece na grande Igreja o que foi predito sobre a mistura de bons e maus? Esta escola ainda não via a realização da promessa feita à descendência de Abraão, nem a eira donde haveria de sair a massa destinada a encher o celeiro. Por que, então, não há de tolerar dignamente a palha, enquanto é triturada, até que ela fique limpa na última ventilação? Ouvistes o que há de acontecer no futuro aos maus.
11 7.8E então, o que fazer? “Sem motivo armaram-me um laço traiçoeiro para perder-me”. O que quer dizer: “Sem motivo”? Nenhum mal lhes fiz, em nada prejudiquei. “Sem razão ultrajaram a minha alma”. Qual o sentido de: “sem razão”? Proferindo mentiras, sem provas. “Caia sobre eles um laço que ignoram”. Magnífica paga, nada de mais justo. Eles esconderam um laço, sem que eu o soubesse; caia sobre eles o laço que desconhecem. Conheço o laço que cairá sobre eles. Qual o laço que lhes sobrevirá? O que eles ignoram. Ouçamos se fala de outro? “Caia sobre eles um laço que ignoram”. Teriam escondido um, e outro lhes sobrevio? Não. Como, então? Cada qual é amarrado com as cordas de seus pecados (cf Pr 5,22). São enganados com aquilo mesmo que empregaram para enganar. Sofrerão dano naquilo mesmo com que se empenharam em prejudicar a outrem. Continua o salmo: “E a armadilha que esconderam os apanhe”. Seria como alguém que preparasse um cálice de veneno para outro, e esquecido disso, o bebesse. Ou como se alguém cavasse uma fossa para o inimigo nela cair à noite, e esquecido do que cavara, andando por aquele caminho, fosse o primeiro a nela cair. Não há dúvida, meus irmãos. Crede, ficai cientes; vede e observai, se há em vós prudência em alto grau: Não há malvado que primeiro não se prejudique a si mesmo. Sabei que a malícia é como o fogo. Queres queimar alguma coisa. O que jogas lá, arde primeiro, porque se não arder, não acende. Se é um facho, leva-o para incendiar alguma coisa. O próprio facho que chegas ao fogo, não arde primeiro para poder incendiar alguma coisa? A malícia, portanto, que parte de ti, a quem devasta primeiro senão a ti mesmo? Onde penetra prejudica o ramo, e onde tem a raiz, não prejudicará? Afirmo que tua malícia pode não prejudicar a outrem; mas é impossível que não prejudique a ti mesmo. Pois, que dano sofreu o santo varão Jó, de quem acima falamos? Conforme se diz em outro salmo: “Agiste dolosamente como navalha afiada” (Sl 51,4). Para que serve uma navalha afiada? Para raspar os cabelos, que são supérfluos. O que fazes àquele a quem queres causar dano? Se perversamente consentir no mal que lhe propões, aquele a quem procuras prejudicar será atingido não por tua malícia, mas pela sua própria; se, porém, ele não tiver malícia, e com o coração puro se submeter àquele que disse: “Eu sou a tua salvação”, atacas externamente, mas não vences o homem interior; tua malícia, contudo, procede de teu íntimo, e antes te aniquila. Estás pútrido interiormente e de lá saiu este verme, que nada deixou inteiro lá dentro. “A armadilha que esconderam os apanhe. Caiam em sua própria rede”. Não é como supunhas talvez, um pouco antes, ao ouvires: “Caia sobre eles um laço que ignoram”, isto é, como se fosse coisa diferente, oculta, inevitável. Qual laço, então? A própria maldade, que esconderam, contra mim. Não sucedeu assim aos judeus? O Senhor venceu a iniquidade deles; foi esta que os venceu. O Senhor ressuscitou por nós, e eles morreram por si mesmos.
12 9Assim sucede aos malvados que querem me prejudicar; e a mim, o que advém? “Minha alma, porém, exultará no Senhor”, que lhe dissera: “Eu sou a tua salvação”, como a alguém que não procura fora outras riquezas, não procura afluência de prazeres e bens terrenos, como quem ama gratuitamente o verdadeiro cônjuge, sem querer receber do outro coisas deleitosas, mas propõe-se deleitar somente nele. O que me será dado de melhor do que o próprio Deus? Deus me ama; Deus te ama. Eis que ele propôs, pede o que queres (cf Mt 7,7). Se o imperador te dissesse: Pede o que queres, por quantos tribunados e condados não anelarias! quantos bens não te proporias receber e dar! Ao te dizer Deus: Pede o que queres, o que hás de pedir? Aguça a mente, põe à mostra a tua avareza, estende e alarga tua ambição, quanto possível. Não foi um qualquer, e sim, o Deus onipotente que disse: Pede o que queres. Se és amante de propriedades, hás de desejar a terra inteira, de sorte que todos os que nasceram sejam teus colonos ou teus escravos. E o que farás quando possuíres toda a terra? Hás de pedir o mar, no qual, no entanto, não podes viver. Nesta avareza os peixes te superam. Mas talvez possuirás as ilhas. Vá avante ainda, pede também o ar, apesar de não poderes voar; amplia a tua ambição até o céu, e declara teus o sol, a lua, as estrelas, porque o criador de tudo te disse: Pede o que quiseres. No entanto nada encontrarás de mais caro, nada acharás de melhor do que o Criador de todas as coisas. Pede aquele que fez, e nele e por meio dele terás tudo o que ele fez. Todas as coisas são caras, porque todas são belas; mas o que há de mais belo do que ele? Todas são fortes; mas o que há de mais forte do que ele? E nada ele quer dar com tanto empenho como a si mesmo. Se encontrares algo de melhor, pede. Se pedires outra coisa, infligir-te-ás injúrias e dano a ti mesmo, antepondo-lhe criatura, enquanto o Criador quer dar-se a si mesmo. Amando-o, disse uma alma: E agora, esta é a “minha parte, Senhor” (Sl 118,57), isto é, tu és a minha porção. Escolham os outros o que querem possuir, façam das coisas a sua porção; minha parte és tu, escolhi-te para mim. E ainda: “O Senhor é a porção de minha herança” (Sl 15,5). Ele te possua, para que tu possuas; serás a sua herdade, a sua casa. Possuirá para teu bem, serás possuído para tua utilidade. Por acaso, podes ser-lhe útil em algum ponto? Não; pois “disse o Senhor: És o meu Deus. Não precisas de meus bens” (Sl 15,2). “Minha alma, porém, exultará no Senhor e terá suas delícias na salvação que dele vem”. Cristo é a salvação que vem de Deus. “Porque meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,30).
13 10“Todos os meus ossos dirão: Senhor, quem a ti se assemelha?” Quem pode proferir algo à altura destas palavras? Penso que basta serem pronunciadas, sem mais explicação. Por que procuras isto ou aquilo? O que há de semelhante a teu Senhor? Ele está diante de ti. “Todos os meus ossos dirão: Senhor, quem a ti se assemelha?” Os injustos me falaram de prazeres, mas nada como a tua lei, Senhor (cf Sl 118,85). Houve perseguidores que disseram: Adora a Saturno, adora a Mercúrio. E obtiveram a resposta: Não adoro a ídolos. “Senhor, quem a ti se assemelha?” Eles têm olhos e não veem; ouvidos e não ouvem (Sl 113,5.6). “Senhor, quem a ti se assemelha?” que fizeste o olho para ver, o ouvido para ouvir? Mas não adoro ídolos, feitos pelo marceneiro. Adora a árvore, o monte; foi o marceneiro quem os fez? Também aqui respondo: “Senhor, quem a ti se assemelha?” Mostram-se-me bens terrenos, mas tu és o Criador da terra. Daí talvez voltem-se os homens para as criaturas superiores, e me digam: Adora a lua, adora a este sol que, com sua luz, como uma grande lâmpada, do céu produz o dia. Também neste caso digo simplesmente: “Senhor, quem a ti se assemelha?” Fizeste a lua e as estrelas, iluminaste o sol para o dia, ornaste o céu. Há muitos seres invisíveis, melhores ainda. Mas talvez também aqui se me diga: Venera os anjos, adora-os. E responderei: “Senhor, quem a ti se assemelha?” Criaste também os anjos. Nada seriam os anjos, se não te vissem. É melhor possuir-te na companhia deles do que cair, fora de ti, adorando-os.
14 “Todos os meus ossos dirão: Senhor, quem a ti se assemelha?” Ó corpo de Cristo, santa Igreja, digam todos os teus ossos: “Senhor, quem a ti se assemelha?” Dos justos foi dito: O Senhor “guarda todos os seus ossos, nenhum deles será quebrado” (Sl 33,21). Quantos ossos dos justos foram quebrados nas perseguições! Enfim, o justo vive da fé, e Cristo justifica o ímpio. Como, porém, justifica, a não ser que creia e confesse? Porque “quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 1,17;4,5;10,10). Por isso, aquele ladrão, apesar de ter sido levado do roubo ao juiz, do juiz à cruz, foi contudo, na própria cruz, justificado; acreditou de coração, e se confessou com a boca. O Senhor não teria dito a um injusto, ainda não justificado: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). Todavia, seus ossos foram quebrados. Pois, quando os soldados foram tirar os corpos, por causa da iminência do sábado, encontram o Senhor já exânime, e não lhe quebraram os ossos (cf Jo 19,33). Quebraram, porém, as pernas dos que viviam, para serem depostos da cruz; mortos de dor, podiam ser sepultados. Por acaso, foram quebrados os ossos do ladrão que perseverou na impiedade na cruz, e não também os daquele que acreditou de coração para obter a justiça, e confessou com a boca, para alcançar a salvação? Onde ficou a realização da palavra: “O Senhor guarda todos os teus ossos, nenhum deles será quebrado” (Sl 33,21), a não ser que se denominem ossos, no corpo do Senhor, todos os justos, firmes de coração, fortes, que não cedem diante de perseguição alguma, nem tentação, para consentir no mal. E como poderiam não ceder diante de tentação alguma? Senão quando os perseguidores disserem: Eis aí aquele deus, vê como é; venha e te ajude. Olha que há em tal monte um grande sacerdote. Talvez sejas pobre, porque aquele deus não te auxilia; pede-lhe e te ajudará. Estás doente, provavelmente porque não lhe suplicas; suplica e hás de sarar. É possível ser este motivo de não teres filhos; pede-lhe e terás. Quem foi um dos ossos do corpo do Senhor há de repetir tais palavras, dizendo: “Senhor, quem a ti se assemelha?” Se quiseres, dá mesmo nesta vida o que desejo; se não quiseres, sê a minha vida, que sempre busco. Como poderei sair da terra de fronte erguida, se adorar a outro deus e te ofender? Talvez morra amanhã; com que coragem irei te ver? Em sua grande misericórdia, o Senhor nos admoestou a vivermos bem, e não revelou o dia de nossa morte, para não confiarmos no futuro incerto. Hoje estou vivo e faço tal coisa; deixarei de fazer, amanhã. E se não tiveres o amanhã? Dize, pois, colocado entre os ossos de Cristo: “Senhor, quem a ti se assemelha? Todos os meus ossos dirão: Senhor, quem a ti se assemelha?”
15 “Arrancas o necessitado das mãos dos prepotentes, e o indigente e o pobre dos espoliadores”. O salmo foi lido hoje até aqui; até aqui devemos explicá-lo, para que nossas palavras não causem fastio, se quisermos falar mais. Por hoje, portanto, é bastante. “Arrancas o necessitado das mãos dos prepotentes”. Quem arranca, a não ser aquele que tem mão forte? Aquele Davi arranca o necessitado das mãos dos prepotentes. Mais forte fora o diabo para prender-te, porque venceu devido a teu consentimento. Mas, o que fez o de mão forte? Ninguém entra na casa de um forte e rouba seus pertences, se primeiro não o amarrar (cf Mt 12,29). O Senhor, por seu magnífico e sagrado poder, amarrou o diabo, desembainhando a espada para fechar-lhe o caminho, e libertar o pobre e o indigente, carente de auxílio (cf Sl 71,12). Qual o teu auxílio, senão o Senhor, a quem dizes: “Senhor, meu auxílio e meu redentor” (Sl 18,15)? Se quiseres presumir de tuas forças, cairás da altura aonde te levou a tua presunção. Se contas com as forças de outrem, ele procurará dominar, não ajudar. O único a ser procurado é aquele que redimiu, libertou, e deu seu sangue para comprar os escravos, que transformou em irmãos seus.
SERMÃO II
1 Demos nossa atenção ao restante do salmo, suplicando a nosso Deus e Senhor nos conceda são entendimento e o fruto de boas ações. Creio que V. Caridade se recorda até que ponto explicamos, no dia de ontem. Iniciamos hoje do mesmo versículo. Reconhecemos aqui a voz de Cristo; voz da Cabeça e do corpo de Cristo. Ao ouvires referência a Cristo, não separes o esposo da esposa, e subentende aquele grande sacramento: “Serão dois em uma só carne” (Ef 5,31). Se são dois numa só carne, por que não em uma só voz? A Cabeça não passou por provações que o corpo também não suporte; ou até, a Cabeça padeceu para servir de exemplo ao corpo. Pois, o Senhor sofreu voluntariamente, e nós, coagidos; sofreu por comiseração e nós, por nossa condição mortal. Daí vem que sua paixão voluntária é a consolação de que necessitamos. Quando talvez sofremos tais coisas, olhemos para nossa Cabeça, a fim de que advertidos por seu exemplo, digamos a nós mesmos: Se para ele foi assim, por que não para nós? Como foi para ele, também é para nós. Por mais que o inimigo se enfureceu, pôde ir só até a morte corporal; nem mesmo pôde aniquilar o corpo do Senhor, porque ele ressuscitou ao terceiro dia. No fim do mundo realizar-se-á em nós o que nele se fez ao terceiro dia. É diferida a esperança de nossa ressurreição; acaso é abolida? Reconheçamos aqui, portanto, caríssimos, as palavras de Cristo, e separemo-las das palavras dos ímpios. São vozes do corpo que padece neste mundo perseguição, angústias, tentações. Uma vez, porém, que muitos aqui sofrem, também pelos seus pecados e crimes, com grande vigilância faz-se mister distinguir a causa do sofrimento, e não a pena em si. Um criminoso pode sofrer castigo semelhante ao do mártir, mas por motivo diferente. Pregados na cruz estavam três homens (cf Lc 23,33): um Salvador, o segundo a salvar, o terceiro a ser condenado; a pena era igual para todos, mas a causa ímpar.
2 11.12 Profira, portanto, nossa Cabeça: “Surgiram testemunhas iníquas, interrogando-me sobre o que não sei”. Digamos nós à nossa Cabeça: Senhor, o que é que ignoravas? Podias ignorar alguma coisa? Não conhecias até o coração dos que perguntavam? Não viste de antemão suas fraudes? Não te entregaste bem ciente em suas mãos? Não havias vindo para sofrer? O que, então, não sabias? Ele ignorava o pecado; não conhecia o pecado, porque não o cometia e não porque não o julgasse. É uma maneira de falar de todos os dias. Por exemplo: Não sabe parar, isto é, não pára. E: Não sabe prestar um benefício, porque não o presta. Não sabe prejudicar, porque não prejudica. Alheio à obra, alheio à consciência; alheio à consciência, parece também alheio ao conhecimento. Em geral se diz que Deus não sabe, como a arte não conhece erro; pela arte, contudo, se julgam os objetos conhecidos. Ao interrogarmos a este respeito nossa Cabeça, segundo a verdade de seu evangelho nos há de responder, quando dissermos: Senhor, o que ignoravas? De que falta de conhecimento pudeste ser interrogado? Responderá: Ignorava os pecados, era interrogado acerca de iniquidades. Se não crêdes que eu ignorava as iniquidades, está no evangelho, porque ignoro os próprios iníquos, aos quais direi no fim do mundo: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade” (Mt 7,23). Então não conhecia aqueles que ele condenava? Ou poderia condenar com justiça, sem conhecer bem a causa? Todavia, bom conhecedor, não mentiu, dizendo: “Nunca vos conheci”, isto é, não vos incorporastes a mim, não aderistes às minhas regras; sois vícios, enquanto eu sou a própria arte que não tem defeito, e com a qual todos podem aprender a não cometer erros. “Surgiram testemunhas iníquas, interrogando-me sobre coisas que não sei”. O que mais ignorava Cristo do que blasfemar? Sobre isto era interrogado pelos perseguidores, e como dizia a verdade, julgaram que ele havia blasfemado (Mt 26,65). Por quem? Por aqueles dos quais se diz a seguir: “Retribuíam-me o bem com o mal. Desolação para a minha alma!” Eu trouxe a fecundidade, e eles retribuíam com a desolação. Trouxe a vida, e eles, a morte; as honras, e eles as injúrias; trouxe a medicina, e eles as feridas. Só retribuíam com desolação. O Senhor maldisse a esterilidade da árvore, onde não encontrou o fruto que procurava (cf Mt 21,19). Havia folhas, mas não frutos; palavras, não ações. Vê a multiplicidade de palavras, e a esterelidade em obras: Pregas que não se deve furtar, e furtas; que não se cometa adultério e o cometes (cf Rm 2,21.22). Tais eram os que interrogavam a Cristo sobre o que ele ignorava.
3 13“Eu, porém, quando molestado, vestia-me de cilício. Extenuava com o jejum a minha alma; revolvia minha prece no meu peito”. Aprendemos, irmãos, porque pertencemos ao corpo de Cristo, somos membros de Cristo (1Cor 12,27). Somos advertidos de que em todas as nossas tribulações, não devemos cogitar como responder aos inimigos, e sim como tornarmos a Deus propício, pela oração, e principlamente, como não sermos vencidos pela tentação; em seguida, que também aqueles que nos perseguem se convertam, voltando ao estado saudável da justiça. Não há maior, nem melhor modo de agir durante a tribulação do que afastar-se do ruído exterior, e abrigar-se no íntimo do espírito (cf Mt 6,6); ali invocar a Deus, onde ninguém vê quem geme e quem socorre; fechar a porta do recinto para preservar-se de todo o incômodo vindo de fora, humilhar-se na confissão do pecado, exaltar e louvar a Deus que corrige e consola; é atitude que convém de todo modo manter. Efetivamente, isto se refere ao corpo, isto é, a nós; mas o que encontramos de semelhante em nosso Senhor Jesus Cristo? Olhando e examinando com todo cuidado o evangelho, não descobrimos que, em paixão ou tribulação alguma, o Senhor se tenha revestido de cilício. Lemos, é verdade, que ele jejuou, depois do batismo; nunca lemos, porém, ou ouvimos referência a um cilício. Jejuou quando os judeus ainda não o perseguiam, mas o diabo o tentava (cf Mt 4,1). Não digo que o Senhor jejuou quando o interrogavam sobre o que ele ignorava, e quando lhe retribuíam o bem com o mal, acossando, perseguindo, prendendo, flagelando, ferindo, matando; contudo, irmãos, em todas essas ocasiões, se com piedosa curiosidade levantarmos um pouco o véu, e examinarmos com o olhar do coração atento o cerne desta Escritura, veremos que o Senhor também o fez aqui. É provável que denomine cilício a sua carne mortal. Por que cilício? Por causa da semelhança da carne de pecado. Diz o Apóstolo: “Deus, enviando o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado na carne” (Rm 8,3), isto é, seu Filho vestiu-se de cilício, para condenar com o cilício os cabritos. Não me refiro a que não existia pecado no Verbo de Deus, nem mesmo na alma santa e na mente humana, que o Verbo de Deus, sua Sabedoria, unira a si na unidade da pessoa; mas nem no próprio corpo havia pecado algum. O Senhor tinha apenas a semelhança da carne pecadora, porque a morte provém do pecado (cf Rm 5,12), e na verdade aquele corpo era mortal. Pois, se não fosse mortal, não morreria; se não morresse, não ressurgiria; se não ressurgisse, não nos mostraria um exemplo de vida eterna. A morte denominou-se, portanto, pecado, como se fala de língua grega, língua latina, não designando o órgão corporal, mas o que se faz através do órgão carnal. Pois, a língua é um de nossos membros, entre os demais, como os olhos, o nariz, os ouvidos, etc.; a língua grega, porém, é constituída de palavras gregas; não quer dizer que as palavras são uma língua, mas que as palavras são proferidas com a língua. Dizes a respeito de alguém: conheço a sua face, falando do membro do corpo. Dizes igualmente: Reconheço a mão deste ausente; não a mão do corpo, mas a escrita feita pela mão, que é do corpo. Assim, portanto, o Senhor se fez pecado, porque foi feito no meio do pecado pois assumiu a carne da mesma massa que merecera a morte, por causa do pecado. Resumindo: Maria, filha de Adão, morreu por causa do pecado, Adão morreu por causa do pecado, e a carne do Senhor, provinda de Maria, morreu para apagar os pecados. Deste cilício se revestiu o Senhor. Não foi reconhecido, porque se escondia sob o cilício. “Eu, porém, disse ele, quando molestado, vestia-me de cilício”, isto é, eles se encarniçavam, eu me escondia. Se ele não quisesse se esconder, não poderia morrer; efetivamente, mostrou por um instante uma gota de seu poder (se podemos chamar de gota), quando quiseram prendê-lo; ele apenas interrogou: Quem procurais? E retrocederam e caíram os soldados (cf Jo 18,4.6). Não teria diminuído tamanho poder em sua paixão, se não se tivesse escondido sob o cilício.
4 “Eu, porém, vestia-me de cilício, extenuava com o jejum a minha alma”. Ainda, se entendemos o que é cilício, o que será o jejum? Cristo queria comer quando procurava fruto da figueira, e teria comido se encontrasse (cf Mc 11,13)? Queria Cristo beber, quando disse à mulher samaritana: “Dá-me de beber” (Jo 4,7)? Ao dizer na cruz: “Tenho sede” (Jo 19,28)? De que tinha Cristo fome, de que tinha sede, senão de nossas boas obras? Quanto àqueles que o crucificavam e perseguiam, uma vez que neles não encontrara boa obra alguma, ele jejuava. Desolação para sua alma! Pois, qual não foi seu jejum, visto que mal encontrou um só ladrão para provar, na cruz? Os apóstolos haviam fugido e se escondido no meio da multidão. E aquele Pedro, que prometera seguir o Senhor até a morte, já negara três vezes, já chorara, escondia-se no meio da turba, e ainda temia ser reconhecido. Finalmente, vendo-o morto, todos haviam perdido a esperança de salvação. Encontrou-os sem esperança, depois da ressurreição, e falou-lhes, encontrando-os pesarosos e chorosos, sem nada mais esperar. Pois, nestas condições estavam alguns que falaram com ele, quando este lhes perguntou: “Que palavras são essas que trocais?” Falavam a respeito dele. Responderam: “Tu és o único forasteiro em Jerusalém que ignora o que nossos sacerdotes e príncipes fizeram a Jesus, o Nazareno, que foi poderoso em obras e em palavras, como o crucificaram e mataram? Nós esperávamos que fosse ele quem iria redimir a Israel” (Lc 24,18-21). O Senhor teria permanecido em grande jejum, se não reconfortasse aqueles que iria ingerir. Pois, ele os refez, consolou, confirmou, e converteu-os em seu corpo. Foi, portanto, também este o jejum de nosso Senhor.
5 “E vertia a minha prece em meu regaço”. Neste versículo existe, efetivamente, uma grande cavidade, e conceda-nos o Senhor que se não nos torne impenetrável. O regaço representa certo segredo. Foi-nos recomendado, irmãos, de fato, que vertêssemos nossa oração em nosso regaço, onde Deus vê, onde Deus ouve, onde nenhum olho humano penetra, onde nada percebe senão aquele que nos socorre. Ali orou Susana. Sua voz era imperceptível para os homens; contudo, foi ouvida de Deus (cf Dn 13,35.44). Isto nos é aconselhado, com razão; mas temos de entender em nosso Senhor algo a mais, porque também ele orou. Não descobrimos no evangelho um cilício, segundo a letra; nem um jejum, no tempo da paixão, literalmente; por este motivo expusemos a questão alegoricamente e em parábola, conforme nos foi possível. Além disso, ouvimos sua oração na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” (Sl 21,2). Mas também nós estávamos ali. Pois, quando o Pai o abandonou, se ele nunca se afastou do Pai? Lemos também que Jesus orou sozinho no monte, que pernoitou em oração (cf Mt 14,23; Lc 6,12); mesmo no tempo da paixão. Portanto, “vertia a minha prece no meu regaço”. Ignoro o que de melhor posso desenvolver acerca do Senhor; agora é isto que me ocorre. Talvez posteriormente uma explicação melhor pode ocorrer-me a mim ou a um outro mais capaz. “Vertia a minha prece em meu regaço”, entendo: ele quer dizer que tinha o Pai em seu regaço. “Pois era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo” (2Cor 5,19). Tinha em si mesmo aquele a quem havia de suplicar; não estava longe, porque ele próprio dissera: “Estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,10). Mas como a oração compete mais ao homem, enquanto Verbo não suplica, mas é ele que atende a oração. Não procura socorro, mas com o Pai ajuda a todos. Qual, senão, o sentido do versículo: “Vertia a minha prece no meu regaço”, senão que em mim a humanidade interpela a divindade?
6 14“Comprazia-me como se tratasse de um amigo e irmão; humilhava-me em pranto e tristeza”. Olha para seu corpo. Vejamo-nos aqui. Quando nos alegramos na oração, quando nossa mente se pacifica, não devido à prosperidade deste mundo, mas por causa da luz da verdade, quem percebe tal luz, sabe o que digo, vê, reconhece ser conforme foi dito: “Comprazia-me como se tratasse de um amigo e irmão”. Então a alma agrada a Deus, estando junto dele. “É nele, com efeito, que temos o movimento e o ser” (At 17,28), como se tratasse de um irmão, parente, amigo. Se, porém, não é um daqueles que possa alegrar-se, iluminar-se, aproximar-se, aderir, e vê-se longe dali, faça conforme o versículo seguinte: “Humilhava-me em pranto e tristeza”. Estando próximo, disse: “Como se tratasse de um irmão, assim se comprazia”, estando distante e longe, disse: “Humilhava-me em pranto e tristeza”. Quem chora, senão quem deseja e não tem? E por vezes em um só homem acontece as duas coisas, uma vez aproxima-se e outra afasta-se. Aproxima-se pela luz da verdade, vai para longe pela névoa da carne. Não é, irmãos, localmente que nos aproximamos de Deus, que está em toda parte e não é circunscrito por lugar algum. Nem localmente dele nos afastamos. Aproximar-se dele é tornar-se-lhe semelhante; afastar-se é fazer-se dessemelhante. Ao veres duas coisas quase iguais, não dizes: Aproximar-se daquela? E quando te são mostradas coisas diferentes, embora estejam num só lugar, e às vezes sustentadas na mesma mão, dizes: Uma está muito longe de parecer-se com a outra, não localmente, mas devido à desigualdade? Se, portanto, queres te aproximar, sê semelhante; se não queres assemelhar-te, tu te afastas. Se és semelhante, alegra-te; se dessemelhante, geme, para que o gemido excite o desejo, ou antes o desejo suscite o gemido, e por este te aproximes, quando começavas a te afastar. Pedro não se acercou do Senhor, ao dizer: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16)? Depois, ele mesmo se distanciou ao dizer: “Longe de ti, Senhor! Isto jamais te acontecerá” (Mt 16,22)! Finalmente, o que disse o Senhor que estava perto daquele que se acercava? “Bemaventurado és tu, Simão, filho de Jonas”. Quando estava longe e diferente, disse: “Para trás, Satanás”. Ao aproximar-se: “Não foi carne ou sangue que te revelaram isto, e sim o meu Pai que está nos céus”; ele te cercou com sua luz, e brilhas por ela. Quando, de longe, opôs-se à futura paixão do Senhor, em prol de nossa salvação, replicou-lhe o mesmo Senhor: “Não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens” (Mt 16,17.13). Com razão, certo salmo une as duas coisas: “Eu disse no meu êxtase: Fui rejeitado do alcance de teus olhos” (Sl 30,23). Não diria em êxtase, se não estivesse próximo; êxtase, efetivamente, é um arroubo de mente. Elevou sua alma acima de si mesma, e aproximou-se de Deus; mas de novo lançado por terra pelo peso da carne e devido a certa névoa, recorda-se de onde estava, e vendo onde está, disse: “Fui rejeitado do alcande de teus olhos. Portanto: Comprazia-me como se tratasse de um amigo e irmão”; isto conceda o Senhor que se realize em nós. Quando tal não acontece, ao menos faça-se o seguinte: “Humilhava-me em pranto e tristeza”.
7 15“Alegraram-se, e contra mim juntaram-se”. Eles estavam alegres e eu triste. Porém agora ouvimos no Evangelho: “Bem-aventurados os que choram”. Se são bem-aventurados os que choram, serão infelizes os que riem. “Alegraram-se e contra mim se mancomunaram; amontoaram-se açoites sobre mim, e ignoraram”. Porque me perguntavam as coisas eu ignorava, também eles ignoraram a quem interrogavam.
8 16 1“Puseram-me à prova, insultaram-me com escárnio”, a saber, zombaram de mim, insultaram-me. Trata-se da Cabeça e do corpo. Prestai atenção, irmãos, à glória da Igreja atualmente; considerai os opróbios do passado, ponderai como outrora em toda a parte os cristãos eram afugentados, e em toda a parte descobertos, injuriados, feridos, mortos, lançados às feras, queimados, para alegria dos seus adversários. Aconteceu à Cabeça e também ao corpo. Pois, como sucedeu ao Senhor na cruz, assim também aconteceu a seu corpo em todas as perseguições passadas; nem faltam também agora as perseguições deles. Onde quer que se encontre um cristão, constuma-se atacar, atormentar, zombar, chamá-lo de estúpido, incapaz, sem coração, inábil. Façam o que quiserem. Cristo está no céu. Façam o que quiserem. Ele honrou seu suplício, já fixou sua cruz em todas as frontes. Permite que o ímpio ataque, mas não permite que fique encarniçado. Contudo, por aquilo que sua língua profere, entende-se o que tem no coração. “Contra mim rangeram os dentes”.
9 17“Senhor, quando o verás? Livra a minha alma da astúcia deles, e dos leões a minha única”. Em nossa opinião, ele tarda, e por isto foi dito: “Quando o verás?” isto é, quando veremos a vingança contra aqueles que nos insultam? Quando o juiz, vencido pelas importunações daquela viúva atenderá (cf Lc 18,3)? Nosso juiz, contudo, não difere por aborrecimento e sim por amor a nossa salvação; com razão, e não por impotência; não por lhe ser impossível socorrer já, mas para que o número dos nossos possa se completar, até o fim. No entanto, o que pedimos em nossos anelos: “Senhor, quando o verás? Livra a minha alma da astúcia deles, e dos leões a minha única”, isto é, a minha Igreja dos poderes cruéis.
10 18Enfim, queres saber quem é aquela única? Lê o que segue: “Confessar-te-ei, Senhor, na grande Igreja; louvar-te-ei no meio de multidão compacta”. Verdadeiramente, “na grande Igreja, confessar-te-ei; louvar-te-ei no meio de multidão compacta”. Realiza-se, de fato, a confissão em toda multidão, mas não em todas Deus é louvado; toda a multidão ouve a nossa confissão, mas o louvor de Deus não se encontra na multidão inteira. Nesta multidão toda, isto é, na Igreja, espalhada por toda a terra, há palha e trigo; a palha voa, o trigo permanece; por isso, “Louvar-te-ei no meio da multidão compacta”. No meio desta multidão compacta, que o vento da tentação não carrega, Deus é louvado. Pois, no meio da palha é sempre blasfemado. Se alguém observa as palhas, o que diz? Eis como vivem os cristãos, eis o que fazem; e cumprese o que foi escrito; “Por vossa causa o nome de Deus está sendo blasfemado entre os gentios” (Is 52,5; Rm 2,24). Iníquo, invejoso, és inteiramente palha, olhas a eira, e dificilmente descobres os grãos. Procura e hás de achar um povo compacto, para louvares a Deus. Queres achar? Sê um deles. Pois, se fores dos tais, dificilmente não te parecerão todos eles semelhantes a ti. “Medindo-se a si mesmos segundo a sua medida”, diz o Apóstolo, não entendem a palavra: “Louvar-te-ei no meio da multidão compacta”.
11 19-21“Não me ultrajem meus pérfidos adversários”. Ultrajam-me por causa da palha que tenho. “Que me odeiam gratuitamente”, isto é, aqueles a quem não dani- fiquei. “E fazem acenos com os olhos” maldosamente, os hipócritas, os fingidos. “Pois, eles na verdade me diziam palavras de paz”. O que significa: “Fazem acenos com os olhos”? Mostram no rosto o que não trazem no coração. Quais são os que “fazem acenos com os olhos? Pois, eles em verdade me diziam palavras de paz, mas com ira planejavam fraudes. Escancararam a boca contra mim”. Primeiro, fazendo acenos com os olhos, aqueles leões procuravam arrebatar e devorar; começavam com lisonjas, proferindo palavras de paz, mas com ira planejavam fraudes. Quais as palavras pacíficas? “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não dás preferência a ninguém. É lícito pagar imposto a César, ou não?” (Mt 22,16-18). Diziam-me palavras de paz. E então? Tu não os conhecias e eles te enganavam, fazendo acenos com os olhos? Ao contrário, o Senhor os conhecia e por isso respondeu: “Hipócritas! Por que me pondes à prova?” Depois, escancararam a boca contra mim, clamando… “Crucifica-o, crucifica-o!” (Lc 23,21) “Disseram: Ah, ah, ah! Vimos com os nossos olhos”. Aqui, já insultando: “Ah, Ah! faze-nos uma profecia, Messias” (Mt 26,68). Como era simulada a paz deles, quando o experimentavam acerca da moeda do tributo, era igualmente injurioso o seu louvor. “Disseram: Ah, ah, ah! Vimos com os nossos olhos”. A saber, os teus feitos, teus milagres. Eis aí o Cristo. Se ele é o Cristo, “que desça agora da cruz e creremos nele. A outros salvou, a si mesmo não pode salvar!” (Mt 27,42). “Vimos com os nossos olhos”. Aí está o resultado de toda a sua jactância, declarando-se Filho de Deus (cf Jo 19,7). O Senhor, porém, continuava sofrendo na cruz; não havia perdido seu poder, mas demonstrava sua sabedoria. Em que seria grandioso descer da cruz, se podia depois ressurgir do sepulcro? Mas parecia ceder aos que o insultavam. Era conveniente que ao ressuscitar aparecesse aos seus, e não a eles, como um grande sinal, porque a ressurreição significava vida nova, e a vida nova seria conhecida dos amigos, não dos inimigos.
12 22“Viste, Senhor, não silencies”. Que sentido tem a palavra: “não silencies”? Julga. A respeito do juízo, diz certa passagem: “Guardei silêncio”, acaso sempre me calarei (cf Is 42,14)? E sobre as delongas do juízo, diz-se ao pecador: “Fizeste isto, e calei-me, imaginas que eu seja iníquo como tu”? (Sl 49,21). Como se cala quem falou pelos profetas, quem fala por própria boca no evangelho, quem fala pelos evangelistas, quem fala por nós quando dizemos a verdade? Como então? Cala-se quanto ao juízo, não relativamente aos mandamentos, à doutrina. De certo modo o profeta deseja este juízo, e prediz: “Viste, Senhor, não silencies”, isto é, não calarás, necessariamente julgarás. “Senhor, não te afastes de mim”. Enquanto o juízo não chega, não te afastes de mim, conforme prometeste: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!” (Mt 28,20).
13 23“Levanta-te, Senhor, atende a meu juízo”. A que juízo? Por que estás atribulado, atormentado por trabalhos e dores? Mas, muitos malvados não sofrem também estes males? A que juízo? És justo, porque sofres tais coisas? Não! Como, então? “A meu juízo”. Como prossegue o salmista? “Atende a meu juízo, meu Deus e meu Senhor, em favor de minha causa”. Ele não atende para meu castigo, mas em prol de minha causa; não naquilo que o ladrão tem de comum comigo, mas porque são “bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça” (Mt 5,10). Esta causa é distinta. Pois a pena é semelhante para bons e maus. Por isso, não é a pena que faz os mártires, mas a causa. Se a pena fizesse o mártir, todas as minas de metal estariam cheias de mártires, todas as cadeias arrastariam mártires, todos os que são passados a fio da espada seriam coroados. Portanto, distinga-se a causa. Ninguém diga: Sou justo porque sofro. Uma vez que o Senhor, primeiro a sofrer, padeceu pela justiça, acrescentou-se como importante distinção: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça”. De fato, muitos que têm uma causa boa perseguem; e outros que têm um causa má, sofrem perseguição. Se a perseguição não pudesse ter uma finalidade boa, não diria o salmo: “Perseguia aquele que ocultamente falava mal do próximo” (Sl 100,5). Enfim, irmãos, um pai bom e justo não persegue um filho devasso? Persegue seus vícios, não a ele mesmo; não aquele que ele gerou, mas o que o filho mesmo acrescentou. O médico, de fato, que se aplica a restituir a saúde, não se arma muitas vezes com um ferro? Mas contra a ferida, não contra o homem. Corta para curar; no entanto, enquanto ele corta o doente sente dor, clama, resiste, e se acaso estiver fora de si pela febre, até bate no médico; nem por isto ele desiste de tratar o doente, faz o que sabe que deve fazer, não dá importância às maldições e injúrias. Não se acordam os que estão em grave sono letárgico para que não morram? E os doentes suportam isto de filhos muito queridos; e o filho não será querido, se não for incômodo ao pai adormecido. Acordam-se os letárgicos, amarram-se os frenéticos, mas ambas as coisas por amor. Ninguém diga, portanto: Sofro perseguição; não discuta o castigo, mas experimente a causa, para não suceder que a causa não seja aprovável e ele seja enumerado entre os iníquos. Por conseguinte, com que vigilância e bondade aqui recomendou o salmista: “Senhor, atende a meu juízo”, não a meus castigos, “meu Deus e meu Senhor, em favor de minha causa”.
14 24“Julga-me, Senhor, segundo a minha justiça”, isto é, conforme minha causa. Não segundo a minha pena, mas “segundo a minha justiça, Senhor meu Deus”, julga-me.
15 24-26“Não zombem de mim meus inimigos. Não pensem no coração: Ah, ah, eram os anseios de nossa alma”, isto é: fizemos o que pudemos, matamos, afastamos. “Não digam”: Mostra que eles nada fizeram. “Não digam: Nós o devoramos”. Daí declararem os mártires: “Se o Senhor não estivesse conosco, talvez nos devorassem vivos” (Sl 123,1.3). O que quer dizer: “nos devorassem”? Fariam com que passássemos para seu corpo. Absorves o que introduzes em teu corpo. O mundo quer te absorver; absorve-o tu, assimila-o a teu corpo, mata e come. Pedro recebeu tal ordem: “Mata e come” (At 10,13). Mata neles o que eles são, faze-os iguais a ti. Se, ao invés, eles te persuadirem a praticar a impiedade, serás absorvido por eles. Não é quando te perseguem que és absorvido por eles, mas quando te persuadem a ser como eles. “Nem digam: Nós o devoramos”. Absorve tu o corpo dos pagãos. Por que razão refiro-me ao corpo dos pagãos? Ele quer te absorver. Faze-lhes o mesmo que eles querem te infligir. Talvez o bezerro de ouro tenha sido esmigalhado, misturado com água, e dado a beber, para que o corpo dos ímpios fosse absorvido por Israel (cf Ex 32,20). “Simultaneamente sintam pejo e vergonha os que se alegram com meus males. Confundam-se e ruborizem-se” para que os absorvamos, envergonhados e confusos. “Os que falam malignamente contra mim”, se correm, fiquem confundidos.
16 27.28E o que dizes tu, Cabeça e membros? “Exultem e rejubilem os que querem a minha justiça”, que aderirem a meu corpo, “E digam sempre os que desejam a paz a seu servo: Seja glorificado o Senhor. E a minha língua celebrará a tua justiça, todos os dias o teu louvor”. Qual a língua que aguenta o dia inteiro cantar o louvor de Deus? Agora mesmo o sermão foi um pouco mais comprido, e ficastes cansados. Quem permanece o dia inteiro a louvar a Deus? Sugiro um remédio, para louvares a Deus o dia inteiro, se quiseres. Seja o que for que fizeres, faze-o bem, e louvaste a Deus. Quando cantas um hino, louvas a Deus; o que faz tua língua se tua consciência também não louvar? Paraste de cantar um hino e sais para tomar a refeição? Não te embriagues e louvaste a Deus. Vais embora para dormir? Não te levantes para fazer o mal, e louvaste a Deus. Estás negociando? Não defraudes, e louvaste a Deus. Cultivas um campo? Não abras um pleito, e louvaste a Deus. Prepara-te com a inocência em tuas obras a louvar a Deus o dia inteiro.
1 A primeira parte do versículo 16 será comentada no Com. do Sl. LVII, 20,30ss.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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