I. COMENTÁRIO
1 1“Justos, exultai no Senhor”. Exultai, ó justos, não em vós mesmos, porque isto é inseguro; mas no Senhor. “Aos retos convém louvá-lo”. Louvam o Senhor os que a ele se submetem; do contrário, são distorcidos, tortos.
2 2“Celebrai o Senhor com a cítara”. Celebrai o Senhor, oferecendo-lhe vossos corpos como hóstias vivas (Rm 12,1). “Entoai-lhe hinos no saltério de dez cordas”. Vossos membros se deem ao amor de Deus e do próximo, que constam de três e sete mandamentos.
3 3“Cantai-lhe um cântico novo”. Entoai-lhe o cântico da graça da fé. “Cantai-lhe bem com júbilo”. Com alegria, cantai-lhe bem.
4 4“Porque é reta a palavra do Senhor”. A palavra do Senhor é reta, fazendo-vos o que por vós mesmos não podeis fazer. “E há fé em todas as suas obras”. Não pense alguém ter alcançado a fé pelos méritos das obras, ao passo que é com a própria fé que se realizam todas as obras que Deus ama.
5 5“Ele ama a misericórdia e o juízo”. Ama a misericórdia que agora oferece primeiro; e ama o juízo, no qual exige contas do que antes concedeu: “Da misericórdia do Senhor está cheia a terra”. Em todo o orbe, os pecados dos homens são perdoados, pela misericórdia do Senhor.
6 6“Pela palavra do Senhor se firmaram os céus”. Os justos não se firmaram por si mesmos, mas pela palavra do Senhor. “E do sopro de sua boca lhes vem toda a fortaleza”. Do Espírito Santo provém a fé que há neles.
7 7“Como num odre congrega as águas do mar”. Reúne os povos do mundo na confissão dos pecados remidos, para não deslisarem sem freio, devido à soberba. “E em reservatórios encerra os abismos”. Neles guarda como riquezas, seus bens ocultos.
8 8“Tema ao Senhor toda a terra”. Tema-o o pecador, para deixar de pecar. “E reverenciemno”, não por terror de homens ou de qualquer criatura, mas dele mesmo, “reverenciem-no todos os habitantes do universo”.
9 9“Porque ele disse e tudo foi feito”. Não foi outro quem fez as coisas temíveis; mas foi ele que disse e foram feitas. “Ordenou e tudo foi criado”. Mandou por seu verbo, e tudo foi criado.
10 10“O Senhor desfaz os projetos das nações”; não as de seu reino, mas as que procuram seus próprios reinos. “Frustra os pensamentos dos povos” desejosos de felicidade terrena. “E reprova os planos dos príncipes”, que intentam dominar tais povos.
11 11“O conselho do Senhor, porém, permanece eternamente”. O conselho do Senhor, que torna feliz somente quem lhe é submisso, permanece para sempre. “Os desígnios de seu coração pelos séculos dos séculos”. Os desígnios de sua sabedoria não são mutáveis, mas permanentes nos séculos dos séculos.
12 12“Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus”. Somente é feliz a nação pertencente à cidade celeste, que escolheu exclusivamente “seu Deus” por Senhor. “O povo que o Senhor escolheu por herança”. Não por si mesma, mas por um dom de Deus, foi eleita. Possuindo-a, ela não a deixa inculta e infeliz.
13 13“Dos céus olhou o Senhor; viu todos os filhos dos homens”. Através da alma justa, o Senhor viu misericordiosamente a todos os que querem renascer para uma vida eterna.
14 14“Da habitação que preparou para si”; habitação da natureza humana, que preparou para si. “Observou todos os moradores da terra”. Viu, em sua misericórdia todos os que vivem na carne, para presidi-los, governando-os.
15 15“Ele plasmou o coração de cada um”. Ele concedeu espiritualmente dons peculiares a cada coração, a fim de que o corpo não seja todo ele olho, nem todo ele ouvido (1Cor 12,17), mas cada qual a seu modo incorpore-se a Cristo. “Está atento a todas as suas obras”. Para ele são inteligíveis todas as obras humanas.
16 16“Não é pelo grande poder que um rei se salva”. Quem domina a própria carne não se salvará, se presumir muito de sua virtude. “Nem por sua extraordinária força que um gigante se livrará”. Nem se livrará quem luta contra os hábitos de seus maus desejos, ou contra o diabo e seus anjos, se muito confiar em sua fortaleza.
17 17“Enganador é o cavalo para a salvação”. Engana-se quem pensar que é possível obter a salvação desejada por meio dos homens ou entre eles, ou defender-se do mal por uma energia impetuosa. “Com toda a pujança de seu vigor não se livra do perigo”.
18 18“Eis os olhos do Senhor pousados sobre os que o temem”. Se procuras a salvação, aqui tens o amor para com os que o temem. “Os que esperam em sua misericórdia”, os que não confiam em seu próprio valor, e sim em sua misericórdia.
19 19“A fim de livrar-lhes a alma da morte e nutri-los no tempo de fome”, dando-lhes o alimento do verbo e da verdade eterna, que haviam perdido, ao presumirem de suas forças. Por isso, carecem das mesmas forças, por fome da justiça.
20 20“Nossa alma espera com paciência no Senhor”. Por enquanto, aqui na terra, nossa alma espera pacientemente no Senhor, a fim de que, depois, seja saciada com manjares incorruptíveis. “Ele é nosso amparo e protetor”. Amparo ao nos empenharmos em buscá-lo, protetor, ao resistirmos ao adversário.
21 21“Nele, pois, alegrar-se-á o nosso coração”. O nosso coração não se alegrará em nós mesmos, porque sem o Senhor sofremos grande penúria, mas no Senhor. “Em seu santo nome confiamos”. Esperamos chegar até Deus, porque enquanto estávamos longe dele, enviou-nos seu santo nome, através da fé.
22 22“Desça sobre nós, Senhor, a tua misericórdia, conforme em ti pomos a nossa esperança”. Desça, Senhor, sobre nós a tua misericórdia. A esperança não confunde, porque esperamos em ti.
II. SERMÃO I
1 1Nas vigílias em honra de S. Cipriano, mártir. Em Mapala. Este salmo nos exorta a exultarmos no Senhor. Intitula-se: “Davi”. Os componentes da sagrada estirpe de Davi, ouçam sua voz, digam que é sua e exultem no Senhor. Assim começa o salmo: “Justos, exultai no Senhor”. Os injustos exultem neste século e quando ele terminar, terminará também a exultação dos injustos. Os justos, porém, exultem no Senhor, porque o Senhor permanece e sua exultação igualmente permanecerá. Convém, pois, exultar no Senhor, para louvarmos o único que em nada pode nos desagradar. Mas também ninguém há que em tantos pontos desagrade aos infiéis. Podemos formular uma norma brevemente: agrada a Deus aquele a quem Deus apraz. Caríssimos. Não penseis que isto seja fácil. Vedes quantos são os que disputam contra Deus, a quantos suas obras desagrada. Quando o Senhor quer fazer algo contra a vontade humana, uma vez que é o Senhor, sabe o que ele faz, e atende mais a nossa utilidade do que a nossa vontade, aqueles que preferem fazer a sua vontade e não a de Deus, procuram dobrar a Deus, segundo seu arbítrio, e não conformar sua vontade à de Deus. A tais homens infiéis, ímpios, iníquos, tenho vergonha de dizer, mas vou dizer, pois sabeis como é verdade o que digo, preferem o pantomimo a Deus, com toda facilidade.
2 Por isso, disse o salmista primeiro: “Justos, exultai no Senhor”, e como não podemos exultar nele sem louvá-lo, nós louvamos aquele ao qual agradamos tanto mais quanto ele nos apraz. Diz o salmista: “Aos retos convém louvá-lo”. Quais são os homens retos? Os que orientam seus corações segundo a vontade de Deus; e se a fragilidade humana os perturba a equidade divina os consola. Embora individualmente possam querer, devido a seu coração mortal, alguma coisa conveniente no momento a seus interesses, ou negócios, ou necessidades terrenas, logo que entenderem e conhecerem que Deus quer outra coisa, à sua vontade preferem a daquele que é melhor, o querer do onipotente à sua fraca vontade, a vontade de Deus à do homem. Quanto Deus está acima do homem, tanto a vontade dele distancia-se da vontade humana. Daí vem que Cristo, em sua natureza humana, propondo-nos uma regra, ensinando-nos como viver, e comunicando-nos a vida, manifestou certa vontade humana particular, na qual representava também a nossa, uma vez que ele é nossa Cabeça, e a ele pertencemos, como sabeis, na qualidade de membros. Ele disse: “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice”. Era a vontade humana, optando por algo de próprio e como que particular. Mas, queria ser homem reto de coração, de sorte que tudo que pudesse ser nele um tanto curvo tomasse a direção daquele que é sempre reto, e disse: “Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres, Pai” (Mt 26,39). Mas, que mal poderia querer Cristo? Enfim, o que poderia querer diverso da vontade do Pai? A divindade neles é uma só; não podem diferir na vontade. Mas enquanto homem, representando os seus, dos quais tomou o lugar, dizendo: “Tive fome, e me destes de comer” (Mt 25,35), e também ao clamar do alto a Saulo, furioso, e que perseguia os santos, enquanto ninguém o tocava: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9,4), demonstrou ter vontade própria humana. Mostrou-te e corrigiu-te. Diz: Vê a ti mesmo em mim. Como podes querer algo de próprio, diferente daquilo que Deus quer, concede-se isto à fragilidade humana, concede-se à fraqueza humana. É difícil que não te aconteça querer algo de próprio; mas pensa logo naquele que está acima de ti. Ele acima, tu embaixo; ele criador, tu criatura; ele Senhor, tu servo; ele onipotente, tu fraco. Corrige-te, submetendo-te à sua vontade e dizendo: “Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres, ó Pai”. Como estarás separado de Deus, se já queres o que Deus quer? Serás, portanto, reto e te convirá o louvor, porque “aos retos convém louvá-lo”.
3 Se és curvo, louvas a Deus quando tudo te corre bem e blasfemas quando as coisas vão mal. Se este mal é justo, não é mal. É justo, porém, porque vem daquele que nada pode fazer de injusto. Então serás um menino tolo na casa de teu Pai, amando-o se te acaricia, e odiando-o quando te castiga, como se não te preparasse uma herança, quer acariciando, quer castigando. Vê como aos retos convém o louvor, ouve a voz do homem reto a louvar, em outro salmo: “Bendirei ao Senhor em todo o tempo; seu louvor estará sempre em minha boca” (Sl 33,2). “Em todo o tempo” equivale a: “sempre”. E “bendirei” é idêntico a: “seu louvor em minha boca”. Em todo o tempo e sempre, na prosperidade e na adversidade. Pois, se for na prosperidade e não na adversidade, como será em todo o tempo, como será sempre? E, no entanto, ouvimos muitas palavras destas e da parte de muitos. Quando lhes sucede algum evento feliz, exultam, alegram-se, cantam a Deus, louvam a Deus. Não são reprováveis; ao contrário, devemos nos alegrar por causa deles, porque muitos não o fazem nem assim. Mas estes já começaram a louvar a Deus por causa da prosperidade, hão de aprender a reconhecer o Pai quando castiga, e não murmurar contra a mão que corrige, a fim de não permanecerem sempre maus e merecerem ser deserdados, e retificados (o que é reto? Que nada lhes desagrade do que Deus fizer) possam louvar a Deus mesmo na adversidade, dizendo: “O Senhor deu, o Senhor tirou; como foi do agrado do Senhor assim se fez; seja bendito o nome do Senhor” (cf Jó 1,21). A estes retos convém o louvor, pois não estão inclinados a primeiro louvar e em seguida vituperar.
4 Consequentemente, justos e retos, exultai no Senhor, porque vos convém o louvor. Ninguém diga: Que espécie de justo sou eu, ou quando sou justo? Não deveis vos menosprezar, nem desesperar de vós mesmos. Sois homens, feitos à imagem de Deus. Quem vos fez homens assim, por vós igualmente fez-se homem. O sangue do Filho único foi derramado por vós, a fim de que muitos de vós fôsseis adotados por filhos, em vista da herança eterna. Se vos menosprezais por causa da fragilidade terrena, avaliai-vos de acordo com o vosso preço. Pensai bem no que comeis, no que bebeis, em que assentis, ao responderdes: Amém. Acaso vos advertimos para vos tornardes soberbos, e ousardes arrogar-vos alguma perfeição? Mas, ao invés, não deveis vos julgar desprovidos de qualquer justiça. Não vos quero perguntar sobre vossa justiça. Talvez nenhum de vós ouse responder-me: Sou justo. Todavia, interrogovos acerca de vossa fé. Como nenhum ousa dizer: Sou justo, assim ninguém se atreve a afirmar: Não sou fiel. Ainda não pergunto como vives, mas pergunto o que crês. Hás de responder que acreditas em Cristo. Não ouviste a afirmação do Apóstolo: “O justo vive da fé” (Rm 1,17)? Tua fé é tua justiça. Se, de fato, acreditas, tens cautela. Se te acautelas, esforçaste. Deus conhece teu esforço inspeciona tua vontade, considera tua luta contra a carne, exorta a combateres, ajuda a venceres, assiste ao lutares, sustenta ao fraquejares, coroa ao seres vencedor. Portanto: “Justos, exultai no Senhor”. Diria: Exultai, ó fiéis, no Senhor, porque o justo vive na fé. “Aos retos convém louvá-lo”. Aprende a dar graças a Deus na prosperidade e nas tribulações. Aprendei a manter no coração o que todos têm na boca: O que Deus quiser. A linguagem popular muitas vezes é ensinamento salutar. Quem não fala todos os dias: Como Deus quiser? Este será um dos retos que exultam no Senhor, aos quais convém o louvor. A eles se dirige, portanto, o salmo, dizendo: “Celebrai o Senhor com a cítara, entoai-lhe hinos no saltério de dez cordas”. Foi o que cantamos há pouco, em uníssono ensinamo-lo a vossos corações.
5 2A instituição destas vigílias em nome de Cristo não exige a exclusão das cítaras? Eis que o salmista ordena soarem as cítaras: “Celebrai o Senhor com a cítara, entoai-lhe hinos no saltério de dez cordas”. Ninguém volte o coração para instrumentos musicais usados nos teatros. Ordena-se empregar o que já possuímos dentro de nós, conforme declara outro salmo: “Em mim, ó Deus, estão os votos de louvor, que cumprirei” (Sl 55,12). Lembram-se os que estavam aqui ontem qual a diferença entre saltério e cítara. À medida do possível, fizemos a distinção, esforçando-nos para que todos entendessem; sabem os que ouviram se o conseguimos. Agora, é oportuno repetir. Na diversidade dos dois instrumentos vimos representada a variedade dos atos humanos, praticados em nossa vida. A cítara consiste num pedaço de madeira côncavo, semelhante a um tímpano, com uma caixa de ressonância. As cordas se apoiam na madeira e soam quando tocadas. Não falo de um arco que as tocasse. Mas disse que a madeira é côncava, e sobre ela, como ponto de apoio, acham-se esticadas as cordas, de sorte que vibram quando tocadas. O som emitido ressoa melhor na cavidade. A cítara tem a concavidade de madeira na parte inferior, e o saltério na superior. Esta é a diferença. Então, o salmista nos ordena confessar com a cítara, e salmodiar com o saltério de dez cordas. Não fala em cítara de dez cordas, nem neste salmo, nem, se não me engano, em qualquer outra passagem. Leiam e considerem melhor e com mais vagar os leitores, nossos filhos; no entanto, enquanto me lembro, em muitos trechos encontramos saltério de dez cordas; jamais cítara de dez cordas. Lembrai-vos de que a cítara tem a parte sonora em baixo e o saltério em cima. Na vida cá de baixo, isto é, na terrena, temos prosperidade e adversidade, e em ambas devemos louvar a Deus, a fim de que esteja sempre seu louvor em nossa boca, e bendigamos ao Senhor em todo o tempo (Sl 33,2). Existe prosperidade terrena e adversidade terrena; em ambas, Deus há de ser louvado, para tocarmos cítara. Qual é a prosperidade terrena? Consiste em gozarmos de saúde corporal, de abundarem os bens necessários à vida, em conservarmos a incolumidade, em termos abundância dos frutos da terra, em que Deus faça o seu sol nascer sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos (Mt 5,45). Tudo isso é válido para a vida terrena. É ingrato quem não louvar a Deus por tudo isso. Acaso não pertencem a Deus, porque são bens terrenos? Ou será outro o doador, uma vez que são concedidos também aos maus? A misericórdia de Deus é múltipla, paciente, longânime. Manifesta melhor o que reserva aos bons, quando mostra quanto dá igualmente aos maus. Efetivamente, as adversidades derivam da parte inferior, da fragilidade do gênero humano, constando de dores, doenças, angústias, tribulações, tentações. Em toda a parte louve a Deus quem toca a cítara. Não dê atenção ao fato de serem coisas inferiores, e sim que não podem ser regidas e governadas senão por aquela Sabedoria que atinge de um extremo a outro com força, e dispõe de tudo com suavidade (Sb 8,1). A Sabedoria não governa só as coisas celestes e abandona as terrenas. Não se lhe diz: “Para onde me afastarei de teu espírito, e aonde fugirei de tua face? Se subir ao céu lá estás; se descer ao inferno, ali estás presente” (Sl 138,7.8)? Onde não se encontra quem está em toda parte? “Celebrai, pois, o Senhor com a cítara”. Se tens abundância de algum bem terreno dá graças ao doador! Se te falta, ou se sofres algum dano, toca a cítara com segurança. Não se retira o doador, embora te seja tirado o dom. Mesmo assim, diria, toca a cítara com firmeza; seguro a respeito de teu Deus, tange as cordas do coração e diz, como uma cítara a soar bem, da parte inferior: “O Senhor deu, o Senhor tirou; como foi de seu agrado assim se fez; seja bendito o nome do Senhor” (Jó 1,21).
6 Ao considerares, porém os dons superiores de Deus, a saber, que preceitos te deu, que doutrina celeste te ensinou, o que te ordenou do alto, daquela fonte da verdade, toma o saltério, salmodia ao Senhor no saltério de dez cordas. Pois, os preceitos da Lei são dez. Nos dez preceitos da Lei tens o saltério. É coisa perfeita. Ali tens o amor de Deus em três mandamentos e o do próximo em sete. Em verdade, sabes, pois o Senhor o disse, que “desses dois preceitos dependem a Lei e os profetas” (Mt 22,40). Deus te fala do alto: “O Senhor teu Deus é um só”. Eis a primeira corda. “Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus”. Aqui tens a segunda corda. Observa o dia do sábado, não carnalmente, nem com prazeres judaicos. Eles abusam do ócio para cometer a maldade. Melhor seria, de fato, cavar a terra o dia todo do que dançar o dia inteiro. Tu, porém, pensando no repouso diante de teu Deus, e fazendo tudo por causa deste repouso, abstêm-te de toda obra servil. Todo aquele que comete pecado é réu de pecado (Jo 8,34); antes fosse escravo de um homem e não do pecado! Estas três coisas pertencem ao amor de Deus, a saber, unidade, verdade, deleite. Há uma espécie de deleite no Senhor, o do verdadeiro sábado, do verdadeiro repouso. Daí a palavra: “Deleitate no Senhor e ele te dará o que pedir teu coração” (Sl 36,4). Quem é que assim se deleita, senão aquele que fez tudo o que deleita? Nesses três mandamentos se trata do amor de Deus, em sete outros, do amor do próximo. Não faças a outrem o que não queres que te façam. “Honra teu pai e tua mãe”, porque queres ser honrado por teus filhos. “Não cometas adultério”, porque não queres que em tua ausência tua mulher cometa adultério. “Não mates”, porque também não queres ser morto. “Não furtes”, porque não queres ser roubado. “Não levante falso testemunho”, porque abominas aquele que levante falso testemunho contra ti. “Não desejes a mulher do próximo”, porque também não queres que outro deseje a tua. “Não cobices as coisas alheias” (Ex 20,12-17; Dt 5,6-21), porque desagrada-te que alguém cobice o que é teu. Reprime a tua língua, se te desgosta quem te prejudica. Tudo isto é mandamentos de Deus, dados pela Sabedoria. E soaram do alto. Toca o saltério, cumpre a Lei que o Senhor teu Deus não veio abolir, mas cumprir (Mt 5,17). Farás por amor o que não podias cumprir por temor. Quem não faz o mal por temor, preferia praticá-lo se fosse lícito, pois então se não lhe é dado o poder, continua a querer. Não faço, diz alguém. Por quê? Porque tenho medo. Ainda não amas a justiça, ainda és escravo; torna-te filho. Mas, de um bom escravo torne-se um bom filho. Por enquanto, não faças por temor, aprende a não fazer por amor. A justiça possui certa beleza. O castigo te leve a desistir. A justiça tem bela forma, quer ser vista, inflama o amor. Por causa dela os mártires, desprezando o mundo, derramaram seu sangue. O que amavam, quando renunciavam a estes bens todos? Por acaso não amavam? Ou vos dizemos isto para não amardes? Quem não ama, esfria-se, enrijece. Ame-se, mas aquela beleza que reclama os olhos do coração. Ame-se, todavia aquela beleza que, ao ser louvada a justiça, inflama os ânimos. Pronunciam-se algumas palavras, emitem-se sons, de toda a parte se diz: Bom! Ótimo! O que viram eles? Viram a justiça, que embeleza o velho curvado. Se está andando um ancião, apesar de justo, nada existe em seu corpo que atraia o amor, e no entanto é amado por todos. Ama-se o que não é visível; ou antes, ama-se o que vê o coração. Agrade-vos, portanto, e pedi ao Senhor que vos agrade. “O Senhor, pois, dará a suavidade, e nossa terra produzirá seu fruto” (Sl 84,13), de sorte que cumprireis por caridade o que é difícil cumprir por temor. Por que afirmo que é difícil? Para o espírito ainda não é possível. Se não é levado pelo amor a cumprir o preceito, mas é impelido pelo temor, preferiria que a ordem não existisse. Não furtes, teme a geena. Preferirias que não existisse a geena, onde serias metido. Quando começa alguém a amar a justiça, a não ser quando prefere que não haja furto, mesmo que não houvesse inferno, onde os ladrões fossem lançados? Isto se chama amar a justiça.
7 E como é a justiça? Quem a pintou? Que beleza tem a sabedoria de Deus? Ela faz belas todas as coisas que agradam aos olhos. Para vê-la e atingi-la, os corações têm de ser purificados. Professemo-nos amantes dela. Ela nos orna para não lhe desagradarmos. E quando os homens nos censuram acerca daquilo que é aprazível àquele que amamos, como os temos na conta de nada, desprezamos, não fazemos caso deles! Os lúbricos e condenáveis amantes de mulheres, quando suas amadas os ornam conforme agrada a seus olhos, não fazem conta dos que os aborrecem, achando que lhes basta agradar aos olhos das que amam. E muitas vezes desagradam aos homens honestos, ou antes, sempre lhes desagradam e eles são repreendidos pelos de juízo sadio. Teu cabelo não está bem cortado, diz o homem sensato ao adolescente lascivo. Não ficam bem tais adornos. O jovem sabe que aqueles cabelos agradam a não sei a quem; fica aborrecido com quem o repreende com boas razões, e conserva o que agrada a perversas intenções. Considera-te inimigo, porque proíbes a torpeza. Foge de teus olhos, e não considera absolutamente a regra de justiça que o censura. Se, pois, eles não dão importância aos censores verdadeiros, para terem uma beleza falaz, nós naqueles pontos em que agradamos à sabedoria de Deus, devemos dar atenção aos zombadores injustos, que não têm olhos para ver o que amamos? Com tais pensamentos, os retos de coração confessem ao “Senhor com a cítara, entoem-lhe hinos no saltério de dez cordas”.
8 3“Cantai-lhe um cântico novo”. Despi tudo o que é velho. Conheceis o cântico novo. Homem novo, Novo Testamento, cântico novo. O cântico novo não pertence a homens velhos. Só o aprendem os homens novos, renovados pela graça, de sua velhice, e já pertencentes ao Novo Testamento, que é o reino dos céus. Por ele suspira todo o nosso amor e canta um cântico novo. Cante o cântico novo, não com a língua, mas com a vida. “Cantai-lhe um cântico novo. Cantai-lhe bem”. Cada qual pergunte a si mesmo como há de cantar a Deus. Cantai-lhe, mas bem. Ele não quer ter os ouvidos a doer. Canta bem, irmão. Se alguém te disser, na presença de um bom músico: Canta de maneira que ele aprecie. Se não és instruído na arte musical tremes, de medo de desagradar ao artista. O artista critica em ti o que um inexperto não percebe. Quem há de se oferecer para cantar bem diante de Deus, que ouve, julga o cantor, tudo examina? Quando poderás apresentar-te com tanta arte e finura no canto que em nada firas ouvidos tão perfeitos? Mas, eis que ele te dá um estilo para cantar. Não procures palavras, como se pudesse explicar em que Deus se compraz. Canta “com júbilo”. Cantar bem a Deus é cantar com júbilo. O que quer dizer: cantar com júbilo? Entender, não poder explicar com palavras o que se canta no coração. Pois, aqueles que cantam na colheita, na vinha, em algum trabalho pesado, começando a exultar de alegria por meio das palavras dos cânticos e estando repletos de tanta alegria que não podem exprimi-la, deixam as sílabas das palavras e emitem sons jubilosos. O júbilo é som significativo de que o coração está concebendo o indizível. E diante de quem é conveniente tal júbilo senão diante do Deus inefável? Inefável é aquilo de que é impossível falar. E se não podes falar e não deves calar, o que resta senão jubilar? O coração rejubila sem palavras e a imensidão do gaúdio não se limita a sílabas. “Cantai-lhe bem com júbilo”.
9 4“Pois é reta a palavra do Senhor, e há fé em todas as suas obras”. Reta é a palavra mesmo naquilo que desagrada aos que não são retos. “E há fé em todas as suas obras”. Em tuas obras haja fé, porque o justo vive da fé (Rm 1,17), e a fé opera pela caridade (Gl 5,6). Em tuas obras haja fé, porque acreditando em Deus tornas-te fiel. Como pode haver fé nas obras de Deus, como se Deus vivesse da fé? Vemos que também Deus é fiel, e não são nosas palavras que o dizem. Ouve as do Apóstolo: “Deus é fiel: não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar”. Ouvistes. Deus é fiel. Ouvi também outra passagem: “Se com ele sofremos, com ele reinaremos. Se nós o renegamos, também ele nos renegará. Se lhe somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar-se a si mesmo” (2Tm 2,11.13). Aí está. Deus é fiel. Mas distingamos entre Deus fiel e homem fiel. O homem fiel é o que acredita em Deus que promete; Deus é fiel oferecendo ao homem o que prometeu. Retenhamos a garantia de um devedor fidelíssimo, porque temos quem nos prometa, cheio de misericórdia. Não lhe demos de empréstimo coisa alguma, de sorte a tê-lo por devedor. É dele que recebemos tudo o que lhe ofertamos, e dele provém todo o bem que há em nós. Todos os bens de que fruímos vêm dele. “Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e para ele” (Rm 11,34-36). Nada lhe demos, portanto; e o temos por devedor. Como é devedor? Porque prometeu. Não lhe dizemos: Senhor Deus, devolve o que recebeste, mas: Paga o que prometeste. “Pois é reta a palavra do Senhor”. Qual o significado de: “É reta a palavra do Senhor?” Não te engana. Tu também não o enganes; ou antes, não te anganes a ti mesmo. Quem pode enganar o onisciente? Mas, “a iniquidade mentiu a si mesma” (Sl 26,12). “Pois é reta a palavra do Senhor, e há fé em todas as suas obras”.
10 5“Ele ama a misericórdia e o juízo”. Faze isto, porque ele também o fez. Dê atenção à misericórdia e ao juízo. Agora é tempo da misericórdia; o do juízo virá depois. Por que é tempo da misericórdia? Agora chama os refractários, perdoa os pecados aos convertidos, é paciente para com os pecadores até que se convertam. Seja quando for que se convertam, esquece-se do passado, promete as coisas futuras. Exorta os preguiçosos, consola os aflitos, ensina aos esforçados, ajuda os combatentes. Não abandona o lutador que clama por ele. Fornece o necessário para o sacrifício e ele mesmo doa o que o pode aplacar. Não nos escape, irmãos, não passe em vão o tempo favorável da misericórdia. O juízo virá. Haverá então remorso, mas já inútil. “Dirão entre si, arrependidos, com gemidos de angústia”; assim está escrito claramente no livro da Sabedoria: “Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviu riqueza e arrogância? Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,3.8.9). Repitamos agora: tudo isso passa como sombra. Digamos, com aproveitamento: Passam, para não termos de dizer inutilmente: “Passaram”. Agora, pois, é tempo de misericórdia; então será o do juízo.
11 Não deveis pensar, irmãos, que estas duas coisas possam em Deus se separar de algum modo. Às vezes, parecem contrárias entre si. Quem é misericordioso, não mantém o julgamento, e quem é tenaz a respeito do juízo, esquece-se da misericórdia. Deus é onipotente, e não omite o juízo quando exerce a misericórdia, nem perde a misericórdia durante o juízo. Pois, ele se compadece, considera a sua imagem, a nossa fragilidade, o nosso erro, a nossa cegueira e nos chama. Aos que se convertem a ele perdoa os pecados, mas não perdoa aos que não se arrependem. Ele é misericordioso para com os injustos? Acaso desiste do juízo, ou não deve julgar diversamente convertidos e não convertidos? Parece-vos justo que trate igualmente o convertido e o não convertido? Que seja recebido de modo idêntico o que confessa e o que mente, o humilde e o soberbo? Mantém Deus, portanto, o juízo e a misericórdia. Terá, contudo, também misericórdia no último juízo para com aqueles aos quais há de dizer: “Tive fome, e me destes de comer” (Mt 25,35). Por esta razão diz-se na epístola de um apóstolo: “O juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia” (Tg 2,13). E: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7). Portanto, no juízo final haverá também misericórdia, mas não sem um critério. Se haverá misericórdia, não para qualquer um, mas para aquele que exerceu a misericórdia, esta será justa, porque não indistinta. É certamente misericórdia o perdão dos pecados, é misericórdia a concessão da vida eterna. Vê o juízo: “Perdoai e vos será perdoado; dai e vos será dado” (Lc 6,37-38). Certamente, “vos será dado, e vos será perdoado” são efeitos da misericórdia. Mas, se dali estivesse ausente o juízo, não se teria dito: “Com a medida com que medis sereis medidos” (Mt 7,2).
12 Ouviste como Deus exerce a misericórdia e o juízo; exerce também tu a misericórdia e o juízo. Seria só a Deus que eles pertencem, sem importarem ao homem? Se não coubessem ao homem, o Senhor não teria dito aos fariseus: “Omitis as coisas mais importantes da Lei: a justiça e a misericórdia” (Mt 23,23). Portanto, competem também a ti a misericórdia e o juízo. Não penses que cabe a ti a misericórdia, o juízo não. Às vezes ouves a causa de dois homens, um dos quais é rico, e o outro pobre. Acontece que a causa do pobre é má e boa a do rico. Se não és instruído nas coisas do reino de Deus, julgas agir bem se, de certa maneira compadecido do pobre, esconderes e disfarçares a sua maldade e quiseres justificá-lo, para parecer boa a sua causa; e se a sentença injusta for criticada, respondes que tiveste misericórdia: Sei, estou ciente, mas é pobre e merece misericórdia. Então exerceste a misericórdia e arruinaste a justiça? Retrucas: E se mantivesse a justiça, não teria perdido a misericórdia? Haveria de proferir sentença contra o pobre, que não tinha com que pagar? Ou se tivesse e pagasse, mas depois não tivesse com que viver? Fala o teu Deus: “Não serás parcial com o desvalido no seu processo” (Ex 23,3). De resto, é fácil dizer que não se deve favorecer o rico; é evidente a todos, e oxalá todos o praticassem! No primeiro caso está o engano: querer agradar a Deus, favorecendo o pobre no processo, e dizendo a Deus: Protegi o pobre. Ao invés, devias manter ambas as coisas, a misericórdia e o juízo. Em primeiro lugar, que misericórdia praticaste para com ele, favorecendo sua iniquidade? Poupaste a bolsa, e feriste o coração. Aquele pobre continuou sendo iníquo; e tanto mais iníquo quanto te viu, um homem justo, favorecer a sua iniquidade. Foi-se embora injustamente auxiliado, e junto de Deus continuou condenável. Qual a misericórdia usada para com aquele que fizeste injusto? Foste mais cruel do que misericordioso. Mas perguntas, o que devia fazer? Julgar primeiro conforme a causa, arguindo o pobre, convencendo o rico. A um julgar, a outro pedir. Se aquele rico te visse mantendo a justiça, sem erguer a cabeça do pobre mal intencionado, mas censurando-o com justiça, como merecia sua culpa, não se inclinaria à misericórdia, conforme teu pedido, estando contente com teu modo de julgar? Irmãos, apesar de estar faltando ainda um bom trecho do salmo para explicar, devo atender às forças físicas e espirituais dos vários ouvintes. Ao nos alimentarmos de um mesmo trigo, a fim de evitar o fastio, variam-se os sabores. Por hoje, basta.
SERMÃO II (Na igreja de S. Cipriano. Quarta-feira)
1 É laborioso tanto ouvir, quanto anunciar a palavra da verdade. De bom grado, irmãos, enfrentamos tal trabalho, lembrados da sentença do Senhor e de nossa condição. Desde os primórdios do gênero humano, ouviu o homem, não de parte de um homem falaz, nem do diabo sedutor, mas da própria verdade, da boca de Deus: “Com o suor de teu rosto comerás teu pão” (Gn 3,19). Em consequência disto, se nosso pão é a palavra de Deus, suemos à escuta dela, para não morrermos de inanição. Poucos versículos da primeira parte deste salmo foram tratados na solenidade das vigílias recentemente realizadas; ouçamos o restante.
2 A parte final, que há pouco cantamos, começa da seguinte maneira: “Da misericórdia do Senhor está cheia a terra. Pela palavra do Senhor se firmaram os céus”, quer dizer, “falou o Senhor e os céus foram consolidados”. O salmista havia dito acima: “Cantai bem com júbilo”, isto é, cantai de modo inefável, sem palavras. “Pois reta é a palavra do Senhor, e há fé em todas as suas obras”. Nada promete que não conceda. Fez-se ele fiel devedor; sê tu cobrador avaro. Em seguida tendo dito: “Há fé em todas as suas obras”, acrescentou por que é assim: “Ele ama a misericórdia e o juízo”. Quem ama a misericórdia se compadece. Quem é compadecido pode prometer e não dar, se pode dar mesmo sem prometer? Evidentemente se ama a misericórdia, importa que dê o que promete, e se ama o juízo, convém que exija contas do que deu. Daí dizer o Senhor a determinado servo: “Por que, então, não confiaste o meu dinheiro a um banco? À minha volta eu o teria recuperado com juros” (Lc 19,23). Por isso, vos advertimos. Compreendamos o que acabamos de ouvir. O mesmo Senhor diz em outro trecho do evangelho: “Eu a ninguém julgo. A palavra que eu proferi é que o julgará no último dia” (Jo 8,15; 12,48). Não se escuse quem não quer ouvir, como se nada fosse exigido pelo Senhor. Terá de dar contas pelo fato mesmo de não querer receber quando era oferecido. Uma coisa é não poder receber, outra não querer; a primeira tem a desculpa de ser necessário, a segunda é culpa voluntária. Por esta razão, “há fé em todas as suas obras. Ele ama a misericórdia e o juízo”. Acolhe a misericórdia, teme o juízo. Quando ele vier para as contas, não exija de tal modo que nos demita sem nada. Pois, ele exige contas; prestadas essas, dá a eternidade. Recebei, irmãos, a misericórdia, recebamos todos. Nenhum de nós durma no momento de receber, para não ser acordado em má hora de prestar contas. Acolhei a misericórdia, clamanos Deus, como se diz no tempo de fome: Tomai esse trigo. Se ouvisses isto em tempo de fome, certamente estimulado pela necessidade, correrias rapidamente, indo de cá para lá, procurando onde receber o que foi oferecido: Tomai. E tendo encontrado, até quando esperarias? Que espaço de tempo deixarias passar? Assim também agora foi dito: Recebei a misericórdia. Pois Deus “ama a misericórdia e o juízo”. Quando a receberes, utiliza-a bem, para prestares contas exatas no juízo daquele que agora te oferece antes a misericórdia, neste tempo de fome.
3 5Não quero que me digas: De onde a recebo? Para onde devo ir? Recorda-te de que cantaste: “Da miseri-córdia do Senhor está cheia a terra”. Onde ainda não é pregado o evangelho? Onde se cala a palavra de Deus? Onde cessa a salvação? É preciso que queiras receber. Os celeiros estão repletos. Esta plenitude e abundância te esperaram e não vieste; então, elas vieram para junto de ti, adormecido. Não foi anunciado: Levantem-se, ó povos, e vinde para um só lugar. Mas foi pregado às gentes onde estavam, para que se cumprisse a profecia: “Prostrar-se-ão diante dele, cada um em seu lugar” (Sf 2,11).
4 6“Da misericórdia do Senhor está cheia a terra”. E os céus? Ouve o que sucede nos céus. Lá não se precisa de misericórdia, porque não há miséria. Na terra abunda a miséria humana e superabunda a misericórdia do Senhor. A terra está cheia de miséria humana e a terra está repleta da misericórdia do Senhor, mas, nos céus, porquanto não há miséria, não se precisa de misericórdia; então não se precisa do Senhor? Todas as coisas necessitam do Senhor, tanto as infelizes, como as felizes. Sem ele, o infeliz não tem alívio; sem ele, o feliz não tem governo. Por conseguinte, no intuito de que não excluas os céus ao ouvires: “Da misericórdia do Senhor está cheia a terra”, escuta que também os céus precisam do Senhor: “Pela palavra do Senhor se firmaram os céus”. Eles não deram solidez a si mesmos, nem prestaram a si próprios a firmeza. “Pela palavra do Senhor se firmaram os céus e do sopro de sua boca lhes vem toda a fortaleza”. Não tinham coisa alguma proveniente de si mesmos, recebendo apenas um suplemento da parte do Senhor. “Do sopro de sua boca lhes vem” não uma parte, mas “toda a fortaleza”.
5 Vede bem, irmãos. As mesmas obras são do Filho e do Espírito Santo. Não passemos por cima desta questão, tendo em vista alguns que distinguem iniquamente e confundem com turbulência. Ambas as atitudes são más. Uns confundem, discernindo mal entre a criatura e o Criador. Sendo o Criador o Espírito de Deus, eles o enumeram entre as criaturas. Eles distinguem, mas confundem; sejam confundidos para se converterem. Ouve agora que uma só é a obra do Filho e do Espírito Santo. O Verbo é certamente Filho de Deus, e o Espírito de sua boca é o Espírito Santo. “Pela palavra do Senhor se firmaram os céus”. Qual o significado de: se firmaram, senão que têm uma força estável e firme? “Do sopro de sua boca lhes vem toda a fortaleza”. Poder-se-ia também dizer: Pelo Espírito de sua boca se firmaram os céus, e do Verbo do Senhor lhes vem toda a fortaleza. “Toda a fortaleza” é idêntico a “se firmaram”. Isto é a obra do Filho e do Espírito Santo. Acaso sem o Pai? Quem, pois, obra através de seu Verbo e de seu Espírito, senão aquele de quem é o Verbo e o Espírito? Esta Trindade é, portanto, um só Deus. A este adora quem sabe adorar, e a ele encontra em toda a parte quem se converter. Não é procurado por adversários; mas ele chama os adversários para encher de graça os convertidos.
6 Efetivamente, irmãos, deixemos de lado aqueles céus superiores, desconhecidos de nós que lutamos na terra, e procuramos conhecê-los um pouco através de conjecturas humanas; deixemos, pois, aqueles céus que dificilmente entendemos e no entanto esforçamo-nos por saber como se sobrepõem uns aos outros, ou quantos são, de que maneira se distinguem, que habitantes os ocupam, qual o governo que os rege, como ali, num só hino indefectível, todos glorificam a Deus. Lá é nossa pátria, da qual talvez nos esquecemos em nossa longa peregrinação. Pois é nossa a palavra do salmo: “Ai de mim, porque minha peregrinação muito se prolongou” (Sl 119,5). Torna-se-me difícil portanto, tratar daquele céu, se não impossível; para vós é difícil de entender. Quem me ultrapassa no conhecimento de tais coisas, desfrute do que encontrar lá onde me precedeu, e reze por mim para que possa segui-lo. Por enquanto, deixando de lado aqueles céus, devo dissertar aqui um pouco sobre aqueles céus próximos de nós, os santos apóstolos de Deus, pregadores do verbo da verdade. Destes céus caiu a chuva sobre nós, a fim de que pelo mundo todo fossem abundantes as colheitas da Igreja. Embora o trigo, neste intervalo, absorva a chuva juntamente com o joio, contudo não estarão em comum no mesmo celeiro.
7 Portanto, tendo sido dito: “Da misericórdia do Senhor está cheia a terra”, se perguntares: Como está repleta a terra da misericórdia do Senhor? Em primeiro lugar, foram enviados céus que espalhassem a misericórdia do Senhor sobre a terra, sobre toda a terra. Vê o que se diz em outra parte sobre estes céus: “Narram os céus a glória de Deus e proclama o firmamento as obras de suas mãos”. Céus e firmamento aqui se identificam. “O dia ao dia profere a palavra, e a noite à noite anuncia a ciência”. Não cessam, não se calam. Mas onde pregaram, e até onde chegaram? “Não são linguagens, nem discursos, sons imperceptíveis”. Refere-se ao fato de que as línguas de todos foram faladas em um só lugar (At 2,4). Falaram as línguas de todos, cumpriram o dito: “Não são linguagens, nem discursos, sons imperceptíveis”. Mas, pergunto, o som em todas as línguas até onde chegou, o que encheu? Ouve a continuação: “Seu som repercutiu por toda a terra, e em todo o orbe as suas palavras” (Sl 18,2-5). De quem, senão dos céus que narram a glória de Deus? Pois, se em toda a terra repercutiu seu som, indique-nos o Senhor que os enviou o que eles nos pregaram. Na verdade, ele indica. Indica fielmente, porque mesmo antes que se realizassem, predisse as realidades futuras aquele em cujas obras há fé. Ressuscitou dos mortos: seus discípulos tocaram-lhe os membros e o reconheceram. Disse-lhes: “O Messias devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia e em seu nome ser proclamada a conversão para a remissão dos pecados”. De onde e até onde? “A todas as nações, a começar por Jerusalém” (Lc 24,46.47). Que maior misericórdia, irmãos, esperamos todos do Senhor, do que o perdão de nossos pecados? Sendo a remissão dos pecados a grande misericórdia do Senhor e tendo ele predito que esta remissão dos pecados seria proclamada a todas as nações, “da misericórdia do Senhor está cheia a terra”. De que encheu-se a terra? Da misericórdia do Senhor. Por que razão? Porque em toda a parte Deus perdoa os pecados, porque mandou céus que dariam chuva para a terra.
8 E como ousaram estes céus avançar com firmeza, como homens cheios de fraqueza se tornaram céus, senão porque “pela palavra do Senhor se firmaram os céus?” Donde as ovelhas, no meio de lobos, hauriram tanta força, a não ser porque “do sopro de sua boca lhes veio toda a fortaleza?” Disse o Senhor: “Eis que eu vos envio como ovelhas entre lobos” (Mt 10,16). Ó Senhor cheio de misericórdia! Certamente assim ages para encheres a terra de tua misericórdia. Se tu és tão misericordioso que enches a terra de misericórdia, vê quem envias, vê aonde envias. Aonde envias, digo, e a quem envias? A ovelhas no meio de lobos. Se um só lobo for enviado ao meio de inumeráveis ovelhas, quem lhe resistirá? Quanto não perturbaria, a não ser que logo se sacie? Pois, devoraria, tudo. Envias seres fracos ao meio de outros cruéis? Envio, diz o Senhor, porque se tornam céus e fazem cair chuva sobre a terra. Como podem se tornar céus homens fracos? “Mas do sopro de sua boca lhes vêm toda a fortaleza”. Eis que os lobos vos prenderão e vos entregarão e conduzirão à presença de governadores por causa de meu nome. Armai-vos. Com vossa força? Longe disso. “Não fiqueis preocupados em saber o que haveis de falar. Não sereis vós que estareis falando naquela hora, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós” (Mt 10,19.20), porque “do sopro de sua boca lhes vem toda a fortaleza”.
9 Isto se realizou. Os apóstolos foram enviados, sofreram angústias. Nós que agora ouvirmos estas coisas, sofremos tantas angústias quantas eles padeceram para semear? Não. Será, então, infrutífero nosso trabalho? Não. Vejo-vos comprimidos na multidão, mas também vós vedes nosso suor. “Se com ele sofremos, com ele reinaremos” (2Tm 2,12). Tudo isso se realizou. Celebramos as memórias dos mártires, que eram destas ovelhas enviadas ao meio de lobos. Este lugar, quando o corpo do bem-aventurado mártir foi ferido, estava cheio de lobos. Uma só ovelha aprisionada venceu tantos lobos, e a ovelha morta encheu o lugar de outras ovelhas. Então o mar enfurecia-se, com os vagalhões enormes dos perseguidores, e o céu de Deus achava-se sobre uma terra árida e seca. Agora, porém, por causa do que padeceram aqueles que abriram as fileiras, o nome de Cristo foi glorificado; este se apoderou das próprias potestades, caminhando sobre as ondas encapeladas dos abismos. E uma vez que isto aconteceu, agora mesmo os que, ainda incrédulos, observam nossas reuniões, celebrações, solenidades, louvores já manifestos e públicos de nosso Deus, pensais que não se afligem, não rangem os dentes? Agora cumpre-se a predição: “O pecador verá e se irritará”. Mas, que importa se ele se irrita? Ó ovelha, não tenhas medo do lobo. Não receies suas ameaças, seus gritos. Encoleriza-se; mas o que se segue: “Rangerá os dentes e se consumirá” (Sl 111,10).
10 7-9Visto que agora a restante água salgada do mar não ousa enfurecer-se contra os cristãos, com surdo murmúrio corrói-se a si mesma, e a salmoura encerrada em invólucro mortal se irrita, vede a continuação: “Como num odre congrega as águas do mar”. Antes o mar encapelava suas ondas livremente, agora encerrado em peitos mortais, é amargo. Isto é obra do vencedor, que impôs ao mar limites, a fim de que, baixando a maré, as ondas se quebrassem. Ele reuniu como num odre as águas do mar; a pele mortal encobriu os pensamentos amargos. Receando, portanto, por sua pele, escondem dentro de si o que não ousam manifestar. Pois, a amargura continua a mesma. Odeiam, detestam. Mas se o furor era então manifesto, agora é oculto; que direi senão: “Rangerá os dentes, e se consumirá?” Avance, pois, a Igreja, caminhe. Abriu-se a via, nossa estrada, defendida pelo imperador. Vamos ardorosos pelo caminho das boas obras. Tal é o nosso caminhar. E se aparecerem as angústias das tentações onde não esperávamos, estando já congregadas como num odre as águas do mar, compreendamos que o Senhor assim age para nosso ensinamento, a fim de sacudir nossa enganosa segurança, baseada nas coisas temporais, e dirigir-nos para seu reino, pondo nossos desejos em seu lugar. Tais desejos nascem das tribulações que nos afetam daqui e dali. Levemos aos ouvidos do Senhor sons afinados, como de trombetas dúcteis. Por isto também foi dito no salmo: Louvemos a Deus com trombetas dúcteis (Sl 97,6). A trombeta dúctil é batida com o martelo. Igualmente o coração cristão batido com os golpes das tribulações tende para Deus.
11 Lembremo-nos, irmãos, de que mesmo agora, enquanto estão reunidas como num odre as águas do mar, Deus tem como nos emendar, quando precisamos de correção. Por isto prossegue o salmo: “Em reservatórios encerra os abismos”. Reservatórios de Deus são os segredos de Deus. Ele conhece o coração de todos. Sabe o que dar por certo tempo, de onde tirá-lo, quanto poder há de conceder aos maus contra os bons, mas para julgar os maus e educar os bons. Sabe como agir aquele que em reservatórios encerra os abismos. Faça-se, por conseguinte, o que segue: “Tema ao Senhor toda a terra”. Uma alegria soberba não se glorie com temerária exultação, dizendo: Já está congregada como num odre a água do mar. Quem me fará mal? Quem ousará prejudicar-me? Não sabes que o Senhor em reservatórios encerrou os abismos? Não sabes que teu pai tem de onde tirar o necessário para te castigar? Ele, de fato, tem para teu ensinamento reservatórios do abismo, educando-te para os tesouros dos céus. Em vista disto, volta ao temor, tu que já andavas seguro de ti. Exulte a terra, mas tema. Exulte! Por quê? Porque da misericórdia do Senhor a terra está cheia. Tema! Por que motivo? Porque de tal modo congregou, como num odre as águas do mar, que encerrou em reservatórios os abismos. Realizaram-se nela, portanto, ambas as coisas formuladas brevemente em outra passagem: “Servi ao Senhor com temor e exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11).
12 “Tema ao Senhor a terra e reverenciem-no todos os habitantes do universo”. Não temam a outrem em lugar dele. “Reverenciem-no todos os habitantes do universo”. Uma fera se enfurece? Teme a Deus. Uma serpente prepara o bote? Teme a Deus. Um homem te odeia? Teme a Deus. O diabo te ataca? Teme a Deus. Toda a criatura está subordinada àquele a quem deves temer. “Porque ele disse e tudo foi feito, ordenou e tudo foi criado”. Assim continua o salmo. Tendo dito: “Reverenciem-no todos os habitantes do universo”, para que o homem não se entregasse ao temor de qualquer outra coisa, e afastando-se do temor de Deus, tivesse medo de uma criatura em vez de temer a Deus, abandonasse o Criador, adorando a criatura, confirmou-nos no temor de Deus. De certo modo, disse-nos, exortou-nos: Por que hás de ter medo de alguma coisa terrestre ou celeste, ou marítima? “Ele disse e tudo foi feito, ordenou e tudo foi criado”. Quando aquele que disse e tudo foi feito, ordenou e tudo foi criado, manda, as coisas se movem, e quando manda, elas param. Igualmente a malícia dos homens pode ter, proveniente dela mesma, desejo de prejudicar, mas não tem o poder, se ele não o der. “Não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13,1), é sentença bem definida do Apóstolo. Ele não disse: Não há desejo que não venha de Deus. Há cobiça, que não provém de Deus. Mas como a cobiça a ninguém prejudica se ele não permitir, “não há poder que não venha de Deus”. Por isso, o homem-Deus, ao comparecer perante um homem disse: “Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto” (Jo 19,11). Um julgava, outro ensinava. O julgado ensinava, para julgar aqueles a quem ensinara: “Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto”. O que significa isto? O homem tem poder apenas quando o recebe do alto? O próprio diabo, ousou acaso tirar uma só ovelhinha do santo homem Jó, sem ter dito antes a Deus: “Estende a tua mão”, isto é, dá o poder. O diabo queria, mas Deus não permitia. Quando Deus permitiu, ele pôde; por conseguinte, não foi ele que pôde, e sim quem o permitiu. Por isso, bem instruído, o próprio Jó não disse, como costumamos relembrar: O Senhor deu e o diabo tirou, mas: “O Senhor deu, e o Senhor tirou; como foi de seu agrado assim se fez” (Jó 1,11.21); e não, como aprouve ao diabo. Vede, irmãos, que com tanto trabalho comeis o pão útil e salutar; cuidai de não temer senão o Senhor. A Escritura ordena que fora dele não temais a ninguém. Em consequência, tema toda a terra ao Senhor, que em reservatório encerrou os abismos. Reverenciem-no todos os habitantes do universo. “Porque ele disse e tudo foi feito, ordenou e tudo foi criado”.
13 10Já não há reis maus; eles tornaram-se bons. Acreditaram também eles, e trazem na fronte o sinal da cruz de Cristo, sinal mais precioso do que qualquer pedra de seu diadema. Foram aniquilados os reis perseguidores. Mas, quem fez isto? Talvez foste tu, para te orgulhares? “O Senhor desfaz os projetos das nações, frustra os pensamentos dos povos e reprova os planos dos príncipes”. Quando eles disseram: Tiremo-los da terra; se o fizermos extinguir-se-á o nome de cristãos; sejam mortos, torturados, sofram tais e tais tormentos. Disseram palavras como estas, e no meio delas cresceu a Igreja. “Frustra os pensamentos dos povos e reprova os planos dos príncipes”.
14 11O conselho do Senhor, porém, permanece eternamente; os desígnios de seu coração pelos séculos dos séculos”. Há repetição. A palavra anterior: “conselho” equivale a: “desígnios do coração”. E supra disse: “permanece eternamente” e depois: “pelos séculos dos séculos”. A repetição confirma. Não penseis, irmãos, que disse: “desígnios do coração” como se Deus se assentasse para pensar o que fazer, e procurasse conselho para fazer ou não fazer alguma coisa. São tuas, ó homem, essas delongas. O Verbo de Deus é veloz. Que demora pode existir na deliberação daquele Verbo que é um só e tudo abrange? Mas denominam-se desígnios de Deus para entenderes, e segundo a tua maneira de ser ousares elevar o coração ao menos a palavras adaptadas a tua fraqueza, porque a realidade é grande demais para ti. “Os desígnios de seu coração permanecem pelos séculos dos séculos”. Quais são os pensamentos de seu coração e quais o desígnios do Senhor que permanecem eternamente? Foi contra quais desígnios que “as nações se agitaram e os povos tramaram em vão” (Sl 2,1)? Efetivamente, quando o Senhor frustra os pensamentos dos povos e reprova os planos dos príncipes. E como, por conseguinte, o conselho do Senhor permanece eternamente, senão porque nos conheceu de antemão e nos predestinou (cf Ef 1,4)? Quem pode anular a predestinação de Deus? Ele nos viu antes da criação do mundo, fez-nos, corrigiu-nos, enviou-nos seus mensageiros, redimiu-nos; este seu conselho permanece eternamente, este desígnio perdura pelos séculos dos séculos. Os povos tumutuaram então abertamente, agitando-se enfurecidos; agora acalmem-se, reclusos e encerrados, como num odre; tiveram audácias sem entraves, e tenham agora pensamentos cruéis e amargos. Quando poderão destruir o que Deus pensou e permanece eternamente?
15 12Qual o significado de tudo isso? “Feliz a nação”. Quem não ficará atento ao ouvir isto? Pois, todos amam a felicidade e em consequência são perversos os que querem ser maus, sem se tornarem infelizes. Sendo a desgraça inseparável companheira da maldade, estes perversos não apenas tencionam ser maus sem serem infelizes, o que é impossível, mas ainda querem ser maus, tendo em vista não serem infelizes. O que significa minha afirmação: Querem ser maus sem serem infelizes? Considerai um pouquinho. Todos os malfeitores sempre querem ser felizes. Comete-se um furto. Perguntas qual o motivo. Por causa da fome, pela necessidade. Portanto, quer escapar da miséria, faz-se mau; e com isto fica mais miserável, porque é malvado. Visando a afastar a infelicidade e alcançar a felicidade, todos fazem o bem ou o mal, sempre procurando ser felizes. Quer vivam mal, quer vivam bem, querem ser felizes; mas não conseguem todos ser o que querem. Todos querem ser felizes, porém, sê-lo-ão apenas os que se resolverem a ser justos. Alguém, por exemplo, quer ser feliz para praticar o mal. Com quê? Pelo dinheiro, a prata, o ouro, os edifícios, as terras, as casas, os escravos, as pompas do mundo, as honras passageiras e perecíveis. Com algumas posses pretendem ser felizes. Procura saber o que deves ter para ser feliz. Serás de fato melhor sendo feliz do que sendo infeliz. Não é possível que o pior te faça melhor. És homem; pior do que tu é tudo o que desejas para ser feliz. Ouro, prata, ou qualquer bem material que ambicionas adquirir, possuir, usufruir são inferiores a ti. Tu és melhor, és mais forte; e em verdade buscas tornar-te melhor, ao desejares ser feliz, porque és infeliz. De fato, é melhor ser feliz do que ser infeliz. Queres melhorar; e procuras, insistes em buscar neste intuito o que é pior do que tu. Seja o que for que procurares na terra é pior do que tu. Assim deseja cada um a seu amigo, assim formula seus votos: Passe bem, que melhores, ficaremos contentes com tuas melhoras. Quer também para si o que deseja ao amigo. Recebe, portanto, um conselho fiel. Queres te tornar melhor. Eu sei, todos sabemos, todos queremos. Procura o que é melhor do que tu, a fim de te tornares melhor.
16 Contempla agora o céu e a terra. Não te agrada a beleza dos seres corporais, querendo que eles te façam feliz. Encontra-se na alma o que procuras. Queres ser feliz: procura o melhor em tua própria alma. És composto de dois elementos: a alma e o corpo; dos dois o melhor chama-se alma. O melhor pode fazer teu corpo melhor, porque o corpo está sujeito à alma. Pode, portanto, teu corpo ficar melhor através de tua alma. Sendo ela justa, posteriormente será imortal também teu corpo. Pela iluminação da alma, o corpo merece a incorrupção, de sorte que a restauração da parte inferior se faz pela superior. Se pois o bem de teu corpo está em tua alma, porque é melhor do que o corpo, ao procurares o bem, procura o que há melhor do que tua alma. Mas, o que é tua alma? Atenção. Não aconteça que desprezando tua alma, considerando-a algo de vil e abjeto, vás atrás de bens insignificantes para fazê-la feliz. Em tua alma acha-se a imagem de Deus; a mente humana a contém. Recebeu-a, mas inclinando-se para o pecado a empalideceu. Quem a formara veio reformá-la; porque foi pelo Verbo que foram feitas todas as coisas, e pelo Verbo se imprimiu esta imagem. Veio o próprio Verbo, conforme diz o Apóstolo: “Transformai-vos, renovando a vossa mente” (Rm 12,2). Resta apenas que procures o que há de melhor do que tua alma. O que, senão o teu Deus? Nada encontras de melhor do que a tua alma; porque quando tua natureza for perfeita, igualar-se-á aos anjos. Acima, só o Criador. Eleva-te até ele; não percas a esperança, não digas: É demais para mim. Talvez seja mais difícil obteres o ouro que ambicionas. Talvez não consigas o ouro, por mais que queiras. Quando quiseres, porém, terás a Deus, porque antes que o quissesses veio a ti e chamou-te quando voluntariamente te opunhas, e quando te converteste, atemorizou-te, e quando atemorizado confessaste, consolou-te. Quem tudo te concedeu, que te fez para existires, que dá aos teus companheiros, mesmo se forem maus, o sol, a chuva, os frutos, as fontes, a vida, a saúde, e tantas consolações, guarda para ti alguma coisa, exclusivamente para ti. O que é que reserva para ti, senão a si mesmo? Pede outra coisa, se encontrares melhor. Deus se reserva para se dar a ti. Avaro, porque ambicionas o céu e a terra? Melhor é o criador do céu e da terra. Hás de vê-lo e possuí-lo. Porque te esforças por obter aquela quinta e passando por ela dizes: Como é feliz o que a possui? Assim falam muitos que passam por ela; e no entanto, os transeuntes podem balançar a cabeça e suspirar, mas com isso podem possuí-la? É o tilintar da cobiça, da maldade; mas não cobices as coisas alheias (cf Dt 5,21). Feliz o dono desta quinta, desta casa, deste campo. Reprime a iniquidade, ouve a verdade: “Feliz a nação que tem”. O quê? Já sabeis o que vou dizer. Por conseguinte, desejai para possuírdes; finalmente sereis felizes. Somente assim sereis felizes: um bem maior do que vós, vos tornará melhores. Diria, Deus que te fez é melhor do que tu. “Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus”. Ama-o, apossa-te dele. Quando o quiseres, te-lo-ás gratuitamente.
17 “Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus”. Nosso Deus! De quem ele não é Deus? Efetivamente, não é de todos de igual modo. É mais nosso, que vivemos dele como de um pão nosso. Seja ele nossa herança, nossa propriedade. Será temerário fazer de Deus nossa posse, sendo ele o Senhor, o Criador? Não é temeridade; é desejo afetuoso e doce esperança. Diga a alma, diga com inteira segurança: Tu és o meu Deus, que dizes a nossa alma: “Eu sou a tua salvação” (Sl 34,3). Diga, diga com segurança. Não é injúria; ao contrário, injúria será se não o disser. Queria possuir um arvoredo para ficar feliz? Ouve o que a Escritura afirma sobre a sabedoria: “É uma árvore de vida para os que a possuem” (Pr 3,18). Eis como declara que a sabedoria é nossa propriedade. Mas tendo em vista que não consideres a sabedoria, uma vez que a Escritura a denomina tua posse, inferior a ti, acrescenta logo: “Segura para os que nela se apoiam como no Senhor” (ib). Eis que o teu Senhor se fez para ti um báculo. É apoio seguro porque ele não sucumbe. Afirma, pois, com certeza, que é tua “propriedade”. A Escritura disse: “os possuidores”; livrou-te da dúvida e encheu de confiança. Fala com segurança, ama com segurança, espera com segurança. Sejam tuas também as palavras do salmo: “O Senhor é a porção de minha herança” (Sl 15,5).
18 Seremos, pois, felizes, possuindo a Deus. Como? Nós o possuiremos, e ele não nos possuirá? Donde, então, vem a palavra de Isaías: “Senhor, toma posse de nós” (Is 26,13, seg. LXX)? Possui, portanto, e é possuído; tudo isso por causa de nós. Nós o possuímos para ser felizes por meio dele. Não é de igual modo para ser feliz que ele nos possui. Possui e é possuído, apenas para nos fazer felizes. Nós o possuímos, e ele nos possui. Nós o cultuamos e ele nos cultiva. Nós o cultuamos como Deus e Senhor; ele nos cultiva como terra sua. Ninguém duvida que o cultuamos; mas quem nos indica que ele nos cultiva? Aquele que disse: “Eu sou a verdadeira vide, vós os ramos, e meu Pai é o agricultor” (Jo 15,1.5). Neste salmo temos as duas afirmações: ambas as coisas nos são indicadas. Já disse que nós o possuímos: “Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus”. De quem é esta propriedade? Daquele homem. E esta? Daquele outro. E esta, de quem é? digamos: de Deus, digamos de quem é. Costuma-se responder, ao perguntarmos a respeito de terrenos e campos vastos e amenos: o dono desta propriedade é um senador. Tal e tal é o seu nome. E dizemos: É um homem feliz. Assim se perguntarmos: De quem ele é Deus? Há uma nação feliz que o possui, pois o Senhor é o Deus dela. Deus não é o Senhor desta nação como aquele senador possui suas terras, e não é possuído por elas. Daí vem que para sermos dele, devemos labutar. Possuímo-nos mutuamente. Ouvistes dizer que uma nação o possui: “Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus”. Ouvi que também ele a possui: “O povo que o Senhor escolheu por herança”. Feliz o povo por ser sua propriedade, feliz herança por causa de seu possuidor! “O povo que o Senhor escolheu por herança”.
19 13“Dos céus olhou o Senhor, viu todos os filhos dos homens”. Todos, aqui, na acepção de todos daquele povo que conserva a herança, ou que a constitui. Pois, todos eles são herança de Deus. E o Senhor olhou do céu a todos eles, e os viu aquele que disse: “Eu te vi, quando estavas sob a figueira” (Jo 1,48). Viu-o porque dele se compadeceu. Muitas vezes, ao pedirmos misericórdia a alguém, dizemos: Olha por mim. E o que dizes de quem te despreza? Nem me olha. Há, portanto, um olhar compadecido, que não é olhar de quem castiga. Este olhar relativamente aos pecados é de aversão. O pecador não quer que eles sejam vistos e diz: “Aparta tua face de meus pecados” (Sl 50,11). Não quer seja visto aquilo que deseja ver perdoado. Diz: “Aparta tua face de meus pecados”. Aparta o rosto de teus pecados; mas não te verá? Daí dizer outro salmo: “Não desvies de mim a tua face” (Sl 26,9). Aparta o rosto de teus pecados, mas não de ti. Olhe-te, compadeça-te de ti, socorra-te. “Dos céus olhou o Senhor, viu todos os filhos dos homens”, pertencentes ao Filho do homem.
20 14“Da habitação que preparou para si”, preparada para si. Ele nos viu através dos apóstolos, viu-nos através dos pregadores da verdade, viu-nos através dos anjos que nos enviou. Todos eles são sua casa, todos sua habitação, porque todos são céus que narram a glória da Deus. “Dos céus viu todos os filhos dos homens. Da habitação que preparou para si observou todos os moradores da terra”. São eles, são seus, os daquela feliz nação, que tem o Senhor por seu Deus; aquele povo que o Senhor escolheu por herança, porque ele está em todas as terras e não só numa parte delas. “Observou todos os moradores da terra”.
21 15“Ele plasmou o coração de cada um”. Com as mãos de sua graça, com as mãos de sua misericórdia formou os corações, plasmou os nossos corações, plasmou um a um, dando-nos individualmente um coração, sem, contudo, romper a unidade. Como os membros foram formados um a um, têm suas funções peculiares e, no entanto, vivem na unidade do corpo. A mão faz o que o olho não faz, o ouvido pode o que nem o olho nem a mão podem fazer. Todos, porém, agem na unidade. Apesar de serem diversas as funções das mãos, dos olhos e dos ouvidos, eles não se opõem. Assim tembém no corpo de Cristo cada um dos homens, como membros, tem dons próprios, porque aquele que escolheu o povo para sua herança, formou separadamente seus corações. “Porventura todos são apóstolos? Todos profetas? Todos doutores? Todos têm o dom das curas? Todos falam línguas? Todos as interpretam? A um, o Espírito dá a mensagem da sabedoria, a outro, a palavra da ciência, a outro, o mesmo Espírito dá a fé, a outro o dom das curas” (1Cor 12,29.30.8.9). Por quê? Porque fez os seus corações, um a um. Como são diversas as funções de nossos membros, mas a saúde é uma só, assim entre os membros de Cristo, há dons diferenciados, mas a caridade é uma só. “Ele plasmou o coração de cada um”.
22 “Entende todas as suas obras”. O que quer dizer: “entende?” Vê o que há de mais secreto e íntimo. Reza o salmo: “entende o meu clamor” (Sl 5,2). Não há necessidade de vozes para um pedido atingir os ouvidos de Deus. Sua visão oculta se chama inteligência. Usou de expressão mais forte do que se dissesse apenas: Vê todas as suas obras. Se não pensarias que ele vê estas obras quando tu as vês. O homem vê as obras pelo movimento do corpo, Deus, porém, vê no coração. Como ele vê interiormente, foi dito: “Entende todas as suas obras”. Se dois homens derem esmolas aos pobres, um procurando a recompensa celeste, e o outro o louvor dos homens, tu vês idêntica ação nos dois, Deus, porém, percebe duas ações diferentes. Ele entende interiormente e interiormente conhece, vê os fins e as intenções. “E entende todas as suas obras”.
23 16“Não é pelo grande poder que um rei se salva”. Junto de Deus todos se salvam, todos em Deus. Seja Deus tua esperança, seja Deus tua força, seja Deus tua firmeza, tua súplica seja ele, teu louvor seja ele, o fim em que repouses seja ele, o auxílio nos trabalhos seja ele. Ouve uma verdade: “Não é pelo grande poder que um rei se salvará, nem pela extraordinária força que um gigante se livrará”. Gigante é o soberbo que se orgulha contra Deus, como sendo algo em si mesmo e por si mesmo. Sua força extraordinária não o salva.
24 17.18Mas se tiver um cavalo grande, forte, válido, veloz? Poderá livrá-lo com rapidez de um perigo eminente? Não se engane. Ouça o que segue: “Enganador é o cavalo para a salvação”. Entendeste o que foi dito: “Enganador é o cavalo para a salvação?” Teu cavalo não te garante a salvação. Se garantir, está mentindo. Se Deus quiser, serás libertado. Se não quiser, cairás de mais alto, caindo do cavalo. Não julgues por ter sido dito: “Enganador é o cavalo para a salvação”, porque o justo é falaz relativamente à salvação, como se os justos mentissem, prometendo salvação. Não está escrito: equitativo (aequus), referente a equidade, mas cavalo (equus), animal quadrúpede. Assim está no códice grego (yppos). Os maus jumentos, os homens que procuram ocasião para mentir são censurados, ao dizer a Escritura: “A boca mentirosa mata a alma” (Sb 1,11). E ainda: “Destróis o mentiroso” (Sl 5,7). Que significa então: “Enganador é o cavalo para a salvação?” O cavalo engana quando promete salvação. Acaso fala o cavalo e promete salvação a alguém? Ao vires um cavalo bem formado, vigoroso, veloz, tudo isso parece te prometer salvação; mas engana, sem a proteção divina, porque “enganador é o cavalo para a salvação”. Em figura, cavalo também pode representar qualquer grandeza deste século, qualquer honra à qual ascendes orgulhosamente. Quanto mais subires, julgas falsamente que te achas não só no alto, mas ainda em maior segurança. Não sabes que pode te jogar no chão, e que será tanto mais grave escorregar quanto mais no alto estiveres. “Enganador é o cavalo para a salvação. Com toda a pujança de seu vigor não se livra do perigo”. E como há alguém de se livrar? Não pela força, não pelo vigor, não pela honra, não pela glória, não por meio do cavalo. Como, então? Para onde ir? Onde encontrar a salvação? Não procures muito tempo, nem muito longe. “Eis os olhos do Senhor pousados sobre os que o temem”. A estes ele olha de sua habitação. “Eis os olhos do Senhor pousados sobre os que o temem e esperam em sua misericórdia”, e não em seus méritos, não em seu valor, não em sua força, não em seu cavalo, e sim em sua misericórdia.
25 19“A fim de livrar-lhes a alma da morte”. O Senhor promete a vida eterna. Mas, o que acontece em nossa peregrinação? Acaso abandona? Vê a continuação do salmo: E a fim de “nutri-los no tempo de fome”. Tempo de fome é agora; depois será o de saciedade. Quem não nos abandona na fome, neste tempo corruptível, como não nos saciará ao nos tornarmos imortais? Mas, enquanto dura o tempo de fome temos de tolerar, suportar, perseverar até o fim. Já devemos percorrer tudo, porque o caminho é plano, e temos de pensar no que haveremos de levar. Ainda, talvez, os espectadores no anfiteatro estão fora de si e sentados ao sol; nós, se estamos de pé, estamos contudo à sombra e nossos espetáculos são mais úteis e belos. Vejamos coisas belas, e sejamos vistos por aquele que é belo. Contemplemos mentalmente o que dizem os vários sentidos das Sagradas Escrituras e alegremo-nos com tal espetáculo. Quem é o nosso espectador? “Eis os olhos do Senhor pousados sobre os que o temem e esperam em sua misericórdia, a fim de livrar-lhes a alma da morte e nutri-los no tempo de fome”.
26 20Mas para suportarmos a peregrinação enquanto dura a fome, e esperamos alimento no caminho para não desfalecermos, o que nos é imposto ou como devemos viver? “Nossa alma espera com paciência no Senhor”. Confiante, há de esperar naquele que promete com misericórdia e dá com misericórdia e verazmente. E o que faremos até que ele dê? “Nossa alma espera com paciência no Senhor”. E se não perseverarmos na paciência? Absolutamente não; vamos perseverar, porque “ele é nosso amparo e protetor”. Ajuda na luta, protege do calor, não te abandona; tolera por tua vez, persevera. “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (cf Mt 24,13).
27 E o que te sucederá, se permaneceres paciente até o fim? Qual a recompensa de tua tolerância? Para que sofres durante tanto tempo padecimentos tão duros? “Nele, pois, alegrarse-á o nosso coração. Em seu santo nome confiamos”. Espera aqui, para te alegrares lá; sofre aqui fome e sede para te banqueteares lá.
28 22Ele nos exortou a tudo, encheu-nos da alegria da esperança, propôs-nos o que devemos amar e aquilo em que e de que apenas podemos presumir. Depois disto, vem uma oração breve e salutar: “Desça sobre nós, Senhor, a tua misericórdia”. Qual o merecimento? “Conforme em ti pomos a nossa esperança”. Fui cansativo para muitos de vós. Eu o senti. Para outros, porém, o sermão terminou muito depressa. Isto também percebi. Perdoem os fracos aos mais fortes, e os mais fortes rezem pelos mais fracos. Somos todos membros de um só corpo. De nossa Cabeça vem a força vital; nela está nossa esperança, nela nossa fortaleza. Não hesitemos em exigir a misericórdia do Senhor nosso Deus; ele quer absolutamente que a reclamemos. Não se aborrecerá ao ser rogado, nem se perturbará de forma alguma, como alguém a quem pedes o que ele não tem, ou possui em pequena quantidade e receia dar o que pode fazer-lhe falta. Queres saber como Deus te dará a misericórdia? Pratica a caridade. Vejamos se acaba enquanto dás. Como não será a opulência nas culminâncias, se pode ser tão grande em sua imagem?
29 Exortamo-vos, portanto, irmãos, especialmente a esta caridade, não só entre vós, mas também para com os de fora, quer sejam ainda pagãos que não acreditem em Cristo, quer separados de nós, e que apesar de confessarem ter fé na Cabeça de igual modo, apartam-se do corpo. 1Condoemo-nos por causa deles, irmãos, como sendo nossos irmãos. Queiram ou não, são nossos irmãos. Deixariam de ser nossos irmãos se não rezassem mais: “Pai nosso”. O profeta disse a respeito de alguns: “Àqueles que nos dizem: Não sois nossos irmãos, respondei: Sois nossos irmãos” (Is 66,5, sg LXX). Ponderai acerca de quem pôde dizer isto. Acaso de pagãos? Não; não os denominamos nossos irmãos, segundo as Escrituras e o modo de falar da Igreja. Então sobre os judeus que não acreditaram em Cristo? Lede os escritos do Apóstolo. Observai. Se o Apóstolo fala de irmãos, sem acréscimo, quer dar a entender só os cristãos. Declara: “O irmão ou a irmã não estão ligados em tais casos” (1Cor 7,15). Estava falando sobre o matrimônio, e denomina irmão e irmã ao cristão ou à cristã. Diz ainda: “Por que julgas teu irmão? E tu, por que o desprezas” (Rm 14,10)? E em outro lugar: “Sois vós que cometeis injustiça e defraudais, e isto contra vossos irmãos” (1Cor 6,8): Estes, portanto, que agora dizes: Não sois nossos irmãos, chamam-nos de pagãos. Por isso também querem nos rebatizar, afirmando que não temos o que eles dão. Daí é consequente seu erro de negarem que somos seus irmãos. Mas por que razão nos disse o profeta: “Dizei-lhes: Sois nossos irmãos”, a não ser por reconhecermos terem eles o que não reiteramos? Por conseguinte, eles, não reconhecendo nosso batismo, negam que somos seus irmãos; nós, porém, não reiteramos o batismo deles, mas reconhecendo ser o nosso, declaramos: “Sois nossos irmãos. Podem dizer: Por que nos procurais, o que quereis de nós? Respondamos: “Sois nossos irmãos”. Retruquem: Ide embora, nada temos a ver convosco. Mas, nós, ao contrário, temos o que tratar convosco. Confessamos um só Cristo, devemos estar num só corpo, sob uma só Cabeça. Respondem eles: Por que me procuras, se estou perdido? Grande absurdo, grande loucura. Porque me procuras se estou perdido? Por que haveria de procurar senão porque estás perdido? Se estou perdido, diz ele, como sou teu irmão? Para que se possa dizer-me a teu respeito: “Teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado” (Lc 15,32). Nós vos conjuramos, irmãos, pelas entranhas da caridade, de cujo leite nos nutrimos, de cujo pão nos fortificamos; por Cristo, nosso Senhor, por sua mansidão, nós vos conjuramos. É tempo de empregar para com eles a maior caridade, abundante misericórdia, pedindo a Deus por eles. Que ele enfim lhes dê sobriedade para se arrependerem, e verem que nada têm absolutamente a dizer contra a verdade. Não lhes resta senão a fraqueza da animosidade, tanto maior quanto imagina ter forças maiores. Apresentai o cerne de vossa caridade para com eles, diante de Deus. Conjuro-vos em favor dos fracos, daqueles que têm gosto carnal, dos que são animais e carnais, e no entanto, são nossos irmãos, que celebram os mesmos mistérios. Se não celebram conosco, todavia são os mesmos. Respondem Amém; não conosco, contudo um só Amém. No concílio2 fizemos algo em prol de sua salvação, mas hoje o tempo não é suficiente para vô-lo explicar. Por isso, exortamo-vos a vos reunirdes bem animados e em maior número (convidai os nossos irmãos que agora estão ausentes), amanhã, na basílica de Tríclia.
1 Os donatistas
2 Provavelmente se refere à conferência com os donatistas, realizada em Cartago, no ano de 411, anotam os Maurinos.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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