1 1“Salmo cantado por Davi ao Senhor, devido às palavras de Cusi, filho de Jémini”. No segundo livro de Samuel (2Sm 16) é fácil descobrir a história que ocasionou esta profecia. Ali, Cusi, amigo do rei Davi, passou para as fileiras de Absalão, filho deste, que guerreava o pai, a fim de sondar-lhe os planos e revelar o que ele urdia contra o pai, instigado por Aquitofel, o qual traíra a amizade a Davi e dava ao filho, contra o pai, os conselhos que podia. Neste salmo, não se há de levar em consideração a própria história, cujo véu misterioso o profeta adotou; mas, se passamos a Cristo, o véu é retirado (2Cor 3,16). Em primeiro lugar, interroguemos qual o sentido desses nomes. Não faltaram intérpretes que, investigando o sentido espiritual, não o carnal, literal desses nomes, afirmaram que Cusi significa silêncio; Jémini, direita; Aquitofel, ruína do irmão. Com tais interpretações, novamente se nos apresenta o traidor Judas, do qual Absalão é imagem, porquanto seu nome significa paz do pai. Seu pai se manteve em paz para com ele, enquanto ele nutria a guerra no coração, com seus ardis, conforme expusemos no comentário ao salmo terceiro. No evangelho lemos que os discípulos foram chamados filhos de nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 9,14); igualmente foram denominados irmãos, pois disse o Senhor ressuscitado: “Vai a meus irmãos e dize-lhes” (Jo 20,17), e o Apóstolo chama a Cristo de “primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29). Com acerto, ruína do irmão, significado de Aquitofel, como acima dissemos, representa a ruína do discípulo traidor. Por Cusi, que significa silêncio, se entende que nosso Senhor combateu contra aquelas fraudes em silêncio, isto é, em profundo segredo. Devido a este plano secreto, a cegueira sobreveio em parte a Israel, que perseguia o Senhor, e isto até que entrasse a plenitude das nações, e assim se salvasse todo Israel. Tendo penetrado neste profundo segredo e grande silêncio, exclamou o Apóstolo, como que tomado de vertigem diante deste abismo: “Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro” (Rm 11,33.34)? Assim o Apóstolo não tanto faz uma exposição daquele profundo silêncio, antes o propõe à admiração. Ocultando neste silêncio o mistério da venerável paixão, o Senhor transformou a ruína voluntária do irmão, isto é, o abominável crime do traidor, em plano misericordioso e providencial. O Senhor destinou, em sua providência, a ação do traidor que visava perversamente a ruína de um só homem, à salvação de todos os homens. A alma perfeita, portanto, que já é merecedora de conhecer o segredo de Deus, canta o salmo ao Senhor. Canta “devido às palavras de Cusi”, porque mereceu conhecer as palavras daquele silêncio. Para os infiéis e perseguidores aquilo é silêncio e segredo. Para os seus, porém, aos quais foi dito: “Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que seu amo faz; mas eu vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer” (Jo 15,15), para os amigos, não há silêncio, mas palavras de silêncio, isto é, a razão explicada e manifesta daquele silêncio. Tal silêncio, isto é, Cusi, se chama filho de Jémini, a saber, da direita. Não convinha esconder aos santos o que era feito em seu favor. E, no entanto, “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mt 6,3). Canta, portanto, em profecia a alma perfeita, à qual o segredo foi manifestado, “devido às palavras de Cusi”, isto é, ao conhecimento do mesmo segredo. O Deus da direita operou este segredo, favorecendo-o e sendo-lhe propício. Esta a razão por que tal silêncio se chama filho da direita, quer dizer, “Cusi, filho de Jémini”.
2 2.3“Senhor, meu Deus, em ti esperei; salva-me de todos os meus perseguidores e livra-me”. Fala o salmista como alguém já perfeito, e que superou toda a luta e oposição dos vícios, restando-lhe apenas vencer o diabo invejoso: “Salva-me de todos os meus perseguidores, e livra-me para que ninguém qual leão arrebate a minha alma”. Declara o Apóstolo: “O vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando quem devorar” (1Pd 5,8). Por este motivo, havendo dito no plural: “Salva-me de todos os meus perseguidores”, passa para o singular: “para que ninguém qual leão arrebate a minha alma”. Não disse: não arrebatem, sabendo qual o inimigo que persistirá e se oporá violentamente à alma perfeita. “Sem haver quem a resgate ou salve”, quer dizer: não arrebate ele, quando tu não resgatas, nem salvas. Se, por conseguinte, Deus não resgata nem salva, ele arrebata.
3 4.5Como evidência de que assim nem salva alma já perfeita, que se há de precaver só das insídias muito fraudulentas do diabo, vê como prossegue: “Senhor meu Deus, se fiz tal coisa”. O que é que ele denomina “tal coisa?” Acaso deve-se entender o pecado, em geral, uma vez que não cita a espécie de pecado? Se esta explicação desagrada, aceitemos que “tal coisa” se refere ao que segue, como se perguntássemos: O que significa “tal coisa?” A resposta seria: “Se manchei as mãos com a iniquidade”. Já se torna evidente que se trata de todo pecado ao dizer: “Se paguei com o mal aos que me retribuíram com o mal”. Não pode dizê-lo com toda verdade senão quem for perfeito. Disse o Senhor: “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. Ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,48.45). É perfeito, portanto, quem não paga com o mal aos que lhe retribuem com o mal. Ao orar a alma perfeita, “devido às palavras de Cusi, filho de Jémini”, isto é, devido ao conhecimento do segredo e silêncio que, por nossa salvação, guardou o Senhor propício e misericordioso, tolerando e suportando com a máxima paciência os ardis do traidor, diga o Senhor e esta alma perfeita, expondo a razão do próprio segredo: Por ti, ímpio e pecador, suportei o traidor com profundo silêncio e grande paciência, a fim de que tuas iniquidades fossem lavadas na efusão do meu sangue; acaso não me imitarás, sem pagar o mal com o mal? Percebendo e entendendo o que em seu favor fez o Senhor, e progredindo na perfeição a exemplo dele, diz a alma: “Se paguei com o mal aos que me retribuíam com o mal”, isto é, se não fiz o que me ensinaste por obras, “sucumba sem razão por mãos de meus inimigos”. É com exatidão que não diz: Se paguei com o mal aos que me faziam o mal, mas: “Aos que me retribuíam” com o mal. Quem retribui já recebeu alguma coisa. Paciência maior é não pagar o mal com o mal ao beneficiado que pagou o bem com o mal do que àquele que anteriormente não recebeu benefício algum e quer prejudicar. “Se, portanto, paguei com o mal aos que me retribuíam com o mal”, se não te imitei no silêncio, isto é, na paciência com que agiste em meu favor, “sucumba sem razão por mãos de meus inimigos”. Debalde se jacta quem, sendo homem, quer se vingar de outro homem. Quando às claras procura superar a outrem, ocultamente é vencido pelo diabo; tornou-se fútil, por uma alegria vã e soberba, como se lhe tenha sido impossível ser vencido. O salmista, portanto, entende onde está a vitória maior e onde o Pai, que vê nos lugares ocultos, recompensa. Foi instruído a não pagar com o mal aos que lhe retribuem com o mal, a vencer antes a ira do que a um homem, pelas Sagradas Letras, onde está escrito: “Melhor é quem vence a ira do que o conquistador de uma cidade” (Pr 16,32s, seg. LXX). “Se paguei com o mal aos que me retribuíam com o mal, sucumba sem razão por mãos de meus nimigos”. Parece juramento execratório, a mais grave espécie de juramento; nele diz o homem: Se fiz isto, sofra aquilo. Mas, uma coisa é o ato de jurar na boca de quem jura, e outra no sentido que lhe dá um profeta. Aqui se enuncia o que, na verdade há de ocorrer àqueles que pagam com o mal aos que retribuem com o mal. Não é uma praga com juramento contra si ou contra outrem.
4 6“Persiga o inimigo a minha alma e dela se apodere”. O salmista mais uma vez fala do inimigo no singular, revelando progressivamente quem foi que ele acima denominou leão. Este persegue a alma e se puder enganá-la, dela se apodera. Os homens praticam crueldades até matar o corpo, mas não podem apossar-se da alma depois desta morte sensível; o diabo, contudo se apossa das almas que perseguiu e apanhou. “Esmague minha vida contra o pó”, isto é, pisando transforme a minha vida em pó, alimento do diabo. Ele foi chamado leão, e também serpente, à qual foi sentenciado: “Comerás poeira”; e ao pecador: “Tú és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,14.19). “E reduza a pó a minha glória”. É este o pó que o vento arrasta da superfície da terra, a saber, a jactância vã, inepta, orgulhosa e inconsistente dos soberbos, como um montão de poeira, levantado pelo vento. Com justeza diz aqui o salmista glória, que ele não quer seja reduzida a pó. Quer tê-la sólida, diante de Deus, na consciência, onde não pode haver jactância. “Aquele que se gloria, se glorie no Senhor” (1Cor 1,31). Tal solidez é reduzida a pó se alguém por soberba, desprezando os segredos da consciência, onde somente Deus experimenta o homem, quiser gloriar-se junto dos homens. Daí dizer-se em outra parte: “Deus esmagará os ossos dos que agradam aos homens” (Sl 52,6). Quem aprendeu bem ou experimentou os graus dos vícios a serem superados, entende ser o da vanglória o único ou maior, de que hão de se acautelar os perfeitos. O primeiro vício em que a alma caiu é o último que ela vence. “O princípio de todo pecado é o orgulho”; e: “O princípio do orgulho do homem é renegar a Deus” (Eclo 10,15.14).
5 7“Ergue-te, ó Senhor, em tua ira”. Por que, então, aquele que afirmamos ser perfeito provoca Deus à ira? Não seria, ao invés, perfeito aquele que ao ser apedrejado disse: “Senhor, não lhes imputes este pecado” (At 7,59)? Ou não é contra os homens que o salmista pede isso, e sim contra o diabo e seus anjos, que se apoderaram dos pecadores e dos ímpios? Não é cruel, portanto, mas misericordioso quem reza contra alguém, para que o Senhor que justifica o ímpio (Rm 4,5) o tire da posse do diabo. Se o ímpio é justificado, de ímpio faz-se justo e passa de posse do diabo a templo de Deus. Como constitui castigo tirar de alguém o domínio de um objeto cobiçado, denomina-se ira de Deus contra o diabo a pena de subtrair-lhe os que estavam sob seu jugo. “Ergue-te, ó Senhor, em tua ira”. Aqui parece dizer de modo humano e obscuro: “Ergue-te”, como se Deus estivesse dormindo, quando permanece incógnito em seus segredos. “Exalta-te nos confins de meus inimigos”. Chama de “confins” a própria posse, onde quer seja exaltado Deus e não o diabo, isto é, honrado e glorificado, ao serem os ímpios justificados e louvarem a Deus. “Levanta-te, Senhor meu Deus, segundo o preceito que estabeleceste”, isto é, apresenta-te humildemente, porque preceituaste a humildade. Sê tu o primeiro a cumprir o que mandaste, para que a teu exemplo os vencedores da soberba não sejam possuídos pelo diabo, que persuadiu à soberba contra o teu preceito, dizendo: “No dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses” (Gn 3,5).
6 8“A assembleia das nações te cercará”, em duplo sentido. A assembleia das nações pode estar constituída de fiéis ou de perseguidores. Ambas se formaram através da mesma humildade de nosso Senhor. Desprezando-o, a multidão dos perseguidores o cercou. Desta multidão se disse: “Por que as nações se agitaram e os povos tramaram em vão” (Sl 2,1)? A multidão dos fiéis, porém, cercou-o por sua humildade, de modo que se pode dizer com toda verdade: “A cegueira atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios” (Rm 11,25), e “Pede-me e dar-te-ei as nações por herança, e como propriedade os confins da terra” (Sl 2,8). “Volta às alturas por causa dela”, por causa desta assembleia, volta para o alto. O Senhor voltou, quando ressurgiu e subiu ao céu. Assim glorificado, comunicou o Espírito Santo, que não podia ser dado antes de sua glorificação, conforme se lê no evangelho: “Não fora dado o Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado” (Jo 7,39). Tendo regressado, pois, ao alto, por causa da assembleia das nações, enviou o Espírito Santo. Dele repletos, os pregadores do Evangelho encheram de igrejas o orbe da terra.
7 É possível ainda interpretar: “Ergue-te, ó Senhor, na tua ira. Levanta-te nos confins de meus inimigos”, do seguinte modo: Ergue-te em tua ira, e não te entendam os meus inimigos. Assim, “Levanta-te” significaria: Coloca-te no alto, para não seres entendido, referindo-se ao supramencionado silêncio. Igualmente em outro salmo fala-se desta exaltação: “Subiu sobre um querubim e voou. Das trevas fez um esconderijo” (Sl 17,11.12). Nesta exaltação, isto é, neste escondimento, enquanto os que te hão de crucificar não te entenderão merecidamente, devido a seus pecados, a assembleia dos fiéis te cercará. Em sua própria humildade, o Senhor foi exaltado, a saber, não foi entendido. A isso se refere a frase: “Levanta-te, Senhor meu Deus, segundo o preceito que estabeleceste”; quer dizer, ao te apresentares humildemente, eleva-te para que os meus inimigos não te conheçam. Os pecadores são inimigos do justo e os ímpios, do homem piedoso. “E a assembleia dos povos te cercará”, isto é, pelo fato mesmo de não te conhecerem os que te crucificaram, os povos em ti acreditarão e assim a assembleia dos povos te cercará. Mas a continuação, se de fato for este o seu sentido, causa mais dor pelo que já se começa a perceber do que alegria pelo que se entende. Segue-se, de fato: “Volta às alturas, por causa dela”, desta assembleia do gênero humano que enche as igrejas. Volta às alturas, isto é, novamente deixa de ser entendido. O que significa, então: “por causa dela”, senão que também esta te há de ofender, de sorte a predizeres, com verdade: “Mas quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra” (Lc 18,8)? O mesmo se afirma dos falsos profetas, os hereges: “Pelo crescimento da iniquidade, o amor de muitos esfriará” (Mt 24,12). Quando, pois, também nas igrejas, naquela assembleia de povos e nações, onde foi amplamente divulgado o nome dos cristãos, tamanha será a abundância dos pecados já em grande parte percebida, não se prediz aqui a fome da palavra prenunciada por outro profeta? (Am 8,11). Acaso não volta Deus às alturas por causa deste acúmulo de pecados, que rejeita a luz da verdade, de modo que por nenhum ou por bem poucos, dos quais se disse: “Feliz aquele que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 10,22), é mantida e percebida a fé sincera, purificada da mancha de todas as opiniões depravadas? Não é sem razão que se diz: “por causa desta assembleia volta às alturas”, isto é, retira-te novamente para a profundidade de teus segredos, também por causa desta assembleia de povos que tem o teu nome, mas não pratica o que fazes.
8 9Mas, quer seja esta ou a anterior exposição a mais adequada, sem prejuízo de outra melhor ou igual, prossegue-se com acerto: “O Senhor julga os povos”. Quer haja regressado às alturas, ao subir ao céu depois da ressurreição, porque de lá há de voltar a julgar os vivos e os mortos, quer volte às alturas quando o conhecimento da verdade abandona os cristãos pecadores, a sentença: “O Senhor julga os povos” é exata, porque a respeito da vinda do Senhor está escrito: “Mas quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra” (Lc 18,8)? “O Senhor julga os povos”. Quem é o Senhor senão Jesus Cristo? “O Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento” (Jo 5,22). Em vista disto, observe-se como não teme o dia do juízo a alma que reza com perfeição, e com desejo confiante diz na oração: “Venha a nós o teu reino” (Mt 6,10). “Julga-me, Senhor, segundo a minha justiça”. No salmo anterior, o enfermo implorava mais a misericórdia de Deus do que lembrava qualquer mérito seu, porque o Filho de Deus veio chamar os pecadores à penitência (Lc 5,32). O salmista acima dissera, portanto: “Salva-me, Senhor, por tua misericórdia” (Sl 6,5), não por causa de meus méritos. Aqui, foi chamado, manteve e observou os preceitos recebidos e ousa dizer: “Julga-me, Senhor, segundo a minha justiça, e conforme a inocência que há em mim”. Verdadeira inocência, que nem o inimigo prejudica; por isso, com razão suplica ser julgado conforme sua inocência, porque afirmou com verdade: “Se paguei com o mal aos que me retribuíam com o mal”. Quanto ao acréscimo “em mim”, pode-se subentender não só a inocência, mas também a justiça, sendo este o sentido: Julga-me, Senhor, segundo a minha justiça, e segundo a minha inocência, justiça e inocência estas em mim existentes. O acréscimo revela que a alma é justa e inocente, não em si mesma, mas por ação de Deus, que esclarece e ilumina. Desta alma declara outro salmo: “Senhor, farás brilhar a minha lâmpada ” (Sl 17,29); e a respeito de João assevera: “Ele não era a luz, mas veio para testemunhar a luz” (Jo 1,8). “João foi o facho que arde e ilumina” (Jo 5,35). A luz, na qual as almas, como lâmpadas, se acendem, não brilha com fulgor alheio, mas com o seu, a própria verdade. Por isso se diz: “Segundo a minha justiça e segundo a inocência que há em mim”, como se a lâmpada que arde e ilumina dissesse: Julga-me pela chama que há em mim; não aquela que me faz existir, mas a que me faz brilhar, acesa em ti.
9 10“Consuma-se, porém, a maldade dos pecadores. Consuma-se”, complete-se, conforme a palavra do Apocalipse: “O justo pratique ainda a justiça e o sujo continue a sujar-se” (Ap 22,11). Parece maldade consumada a dos que crucificaram o Filho de Deus; maior ainda, todavia, é a dos que não querem viver retamente e odeiam os preceitos da verdade, pelos quais morreu o Filho de Deus. “Consuma-se”, pois, “a maldade dos pecadores”; chegue ao cúmulo, a fim de que venha o justo juízo. Mas como não foi dito somente: “O sujo continue a sujar-se”, mas também: “O justo pratique ainda a justiça”, acrescenta-se: “Mas guiarás o justo, ó Deus, que sondas os corações e os rins”. Como pode o justo ser guiado senão no seu interior? Pois, mesmo o que era admirável no começo da era cristã (os santos ainda eram oprimidos pela perseguição dos mundanos) agora (depois que o nome de cristão atingiu posição tão elevada) aumentou a hipocrisia, quer dizer, a simulação daqueles que sob o nome de cristãos preferem agradar mais aos homens do que a Deus. Como, pois, é orientado o justo no meio de tamanha confusão, causada pela simulação, senão quando Deus sonda os corações e os rins, vendo os pensamentos de todos? Estes são designados pela palavra coração e os prazeres, pelo termo rins. Com razão atribui-se aos rins o deleite nas coisas terrenas e temporais, porque no homem é a parte inferior, onde se localiza a volúpia da geração carnal, pela qual nesta vida atribulada e cheia de alegria falaz, se transmite a natureza humana, pela sucessão da prole. Se Deus, portanto, sonda nosso coração, e vê que está o nosso tesouro lá (Mt 6,21), isto é, nos céus, se também sonda os rins e verifica que não cedemos à carne e ao sangue, mas nos deleitamos no Senhor, ele guia o justo, em sua presença, na própria consciência, onde ninguém divisa alguma coisa, exceto ele, que enxerga o pensamento e o deleite de cada um. O fim visado pelos desejos é o deleite: cada qual preocupa-se e cogita como obter o prazer. Quem sonda nosso coração, vê nossas preocupações; igualmente quem sonda os rins, vê a finalidade de nossos cuidados, isto é, o deleite. Quando verifica que nossas preocupações não se inclinam para a concupiscência carnal, nem para a concupiscência dos olhos, nem para a ambição mundana, que passam como sombras (1Jo 2,16,17), mas que se elevam às alegrias dos bens eternos, invioláveis, imutáveis, Deus, que sonda os corações e os rins, guia o justo. Nossas obras, em atos e palavras, podem ser conhecidas dos homens; mas só Deus, que sonda os corações e os rins, sabe com que ânimo são feitas e aonde, por meio delas, desejamos chegar.
10 11“Justo auxílio me vem do Senhor, que salva os retos de coração”. Dois são os objetivos da medicina: primeiro, curar a doença; segundo, conservar a saúde. Quanto ao primeiro, pronunciou-se o salmo precedente: “Tem piedade de mim, Senhor, estou enfraquecido” (Sl 6,3); quanto ao segundo, declara o presente salmo: “Se manchei as mãos na iniquidade, se paguei com o mal aos que retribuíam com o mal, sucumba sem razão nas mãos de meus inimigos”. Naquele, o doente suplica ser libertado; neste, o são pede não ser contaminado. O primeiro reza: “Salva-me por tua misericórdia”; o segundo pede: “Julga-me, Senhor, segundo a minha justiça”. Aquele quer remédio para escapar da doença, este suplica socorro para não recair. Diz aquele: “Salva-me, Senhor, por tua misericórdia”; este declara: “Justo auxílio me vem do Senhor que salva os retos de coração”. Tanto aquela oração como esta salva; mas aquela opera a mudança da doença para a saúde; esta preserva a própria saúde. Naquela, portanto, o auxílio é misericordioso, porque o pecador nenhum mérito possui e almeja ser justificado, acreditando naquele que justifica o ímpio (Rm 4,5); nesta, porém, trata-se de auxílio justo, porque concedido a um justo. Naquela peça, pois, o pecador, segundo declarou: “Estou enfraquecido, salva-me, Senhor, por tua misericórdia”. Nesta, conforme sua afirmação: “Se paguei com o mal aos que me retribuíam com o mal”, o justo diga: “Justo auxílio me vem do Senhor, que salva os retos de coração”. Se ele oferece remédio que cura nossas doenças, quanto mais não dará o que nos conserva sadios? Porque “Cristo morreu por nós quando éramos ainda pecadores. Quanto mais, então, agora, justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5,8.9)?
11 “Justo auxílio me vem do Senhor, que salva os retos de coração”. Dirige o justo, Deus, que sonda os corações e os rins, por justo auxílio salva os retos de coração. Mas, se ele sonda corações e rins, sua salvação atinge os retos de coração, e não de rins; porque os pensamentos maus se acham no coração perverso e os bons no coração reto; os deleites pecaminosos, contudo, referem-se aos rins, porque são inferiores e terrenos; os bons, todavia, não são atinentes aos rins, mas ao próprio coração. Por este motivo, não se pode falar de retos devido os rins, como se fala de retos de coração, pois onde já está o pensamento, está o deleite, o que não é possível senão ao se pensar nas coisas divinas e eternas. Disse o salmista: “Tu me deste alegria ao coração, após as palavras: Está assinalada em nós, Senhor, a luz de tua face” (Sl 4,7). Pois as fantasias acerca dos bens temporais que a alma cria, agitada por esperanças vãs e caducas, embora tragam frequentemente, por imaginações fúteis, alegria tresloucada e insana, tal deleite não deve ser atribuído ao coração e sim aos rins. Aquelas imaginações todas derivam de realidades inferiores, isto é, terrenas e carnais. Assim, Deus que sonda corações e rins, se descobre no coração pensamentos retos e nenhum deleite nos rins, oferece justo auxílio aos retos de coração; neles os pensamentos puros se associam aos deleites elevados. Por isso, em outro salmo, tendo dito: “Além disso, até de noite meus rins me censuraram”, acrescenta uma palavra sobre o auxílio: “Via sempre o Senhor diante de mim. Porque está à minha direita, não serei abalado” (Sl 15,7-8). O salmista mostra que sofre da parte dos rins apenas sugestões, não deleitações. Se as tivesse, estaria na verdade abalado. Declarou, contudo: “O Senhor está à minha direita, não serei abalado”, e acrescentou logo: “Por isso se alegrou meu coração” (ib. 9). Os rins puderam excitar, mas não lhe causar prazer. Não foi, portanto, nos rins que houve deleitação, mas lá onde Deus, contra as excitações dos rins, cuidou de estar à direita, isto é, no coração.
12 12“Deus, justo juiz, forte e longânime”. Qual Deus é juiz senão o Senhor que julga os povos? Ele é justo, pois recompensa a cada um segundo as obras. Ele é forte, porque, sendo poderosíssimo, tolerou mesmo os ímpios perseguidores, em vista de nossa salvação. É longânime, porque logo após a ressurreição não arrastou ao suplício os perseguidores, mas suportou-os a fim de que um dia se convertessem da impiedade à salvação; e ainda suporta, convidando os pecadores à penitência e reservando o último castigo para o juízo derradeiro. “Não anda irado todos os dias”. Talvez seja mais expressivo dizer: “anda irado” do que: “se irrita”. Assim é que encontramos em traduções gregas. A ira com que Deus pune não está nele, mas no espírito de seus servos, obedientes aos preceitos da verdade. Por meio destes emitem-se ordens de punir os pecados, também aos ministros inferiores, denominados anjos da ira, aos quais apraz o castigo inflingido aos homens, não por causa da justiça, que não possuem, mas por sua malícia. “Deus”, portanto, “não anda irado todos os dias”, isto é, não reúne todos os dias os seus ministros para exercerem vingança, pois agora a paciência de Deus convida à penitência; no fim dos tempos brandirá a espada, quando os homens por sua dureza e coração impenitente houverem acumulado ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus (Rm 2,5).
13 13“Se não vos converterdes, brandirá a espada”. Pode-se entender que o próprio homemSenhor é a espada de dois gumes, isto é, duplamente afiada, que na primeira vinda não brandiu, mas escondeu de certo modo na bainha da humildade. Brandirá, porém, na segunda vinda, quando há de vir para julgar os vivos e os mortos, no esplendor manifesto de sua glória e fará fulgurar a luz para os justos e o terror para os ímpios. Pois, em outras traduções, em vez de “brandirá a espada” acha-se: “Fará cintilar sua espada de dois gumes”. Julgo que tal expressão alude de modo muito adequado à última vinda do Senhor na glória. De sua pessoa entende-se na verdade o que lemos em outro salmo: “Livra dos ímpios, Senhor, a minha alma, a tua espada, dos inimigos de tua mão (Sl 16, 13). Retesou o arco e o ajustou”. Não se passe em silêncio, sem mais, o tempo dos verbos. À espada liga-se o futuro: “brandirá; ao arco”, o passado: “retesou”, e seguem-se verbos no pretérito.
14 14“Nele preparou armas mortíferas e fez setas para os ardorosos”. A meu ver, arco são as Sagradas Escrituras, onde a força do Novo Testamento, uma espécie de nervos, dobrou e domou a dureza do Antigo Testamento. Daí, quais setas, são enviados os apóstolos, ou lançados os divinos anúncios. Tais setas foram feitas “para os ardorosos”, a fim de que, feridos, ardessem no amor divino. Que outra espécie de seta feriu aquela que diz: “Introduzime na adega, colocai-me entre os unguentos, cercai-me de doçuras, porque estou ferida de amor” (Ct 2,4, seg. LXX)? Seriam diferentes as setas que inflamam aquele que, desejoso de voltar a Deus e regressar desta peregrinação, pede auxílio contra as línguas enganosas, e é interrogado: “Qual será a tua paga, o teu castigo, ó lingua enganadora? Aguçadas setas de poderosos, com carvões devoradores” (Sl 119, 3.4). Quer dizer, ferido e inflamado por elas, arderás de tanto amor pelo reino dos céus que desprezarás as línguas dos opositores e dos que querem desviar-te desse propósito e rirás de suas perseguições, dizendo: “Quem me separará do amor do Cristo? A tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada? Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura, nem a profundeza, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,35.38-39). Desta sorte, fez setas para os ardorosos: pois nas traduções gregas assim se encontra: “Fez setas para os ardorosos”. Nos exemplares latinos, porém, na maioria vê-se: “ardentes”. Mas quer ardam as próprias setas, quer façam arder, o que não fariam se elas mesmas não ardessem, o sentido não muda.
15 Mas, como o salmista afirma que o Senhor preparou no arco não somente setas, como também “armas mortíferas”, pode-se perguntar o que são tais armas mortíferas. Acaso os hereges? Pois estes, projetando-se do mesmo arco, isto é, das mesmas Escrituras, assaltam as almas, não para inflamá-las de caridade, mas para matá-las, envenenando-as, o que é bem merecido. Assim, esta disposição é igualmente atribuível à divina Providência; não que ela suscite pecadores, mas porque esta tudo reconduz à ordem, depois que eles pecaram. Os que leem com má intenção, por causa do pecado e como castigo do mesmo, necessariamente entendem mal. Pela morte desses, quais espinhos, os filhos da Igreja católica são despertados e progridem no entendimento das divinas Escrituras. “É preciso que haja até mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados” (1Cor 11,19), isto é, entre os homens, porque Deus os vê com toda clareza. Ou acaso dispôs Deus as mesmas setas e armas mortíferas para a perdição dos infiéis e fez setas ardentes, ou as fez para os ardorosos, tendo em vista exercitar os fiéis? Não é falsa a afirmação do Apóstolo: “Para uns, odor que da vida leva à vida; para outros, odor que da morte leva à morte. E quem estaria à altura de tal missão” (1Cor 2,16)? Não é de admirar, pois, se os próprios apóstolos são armas mortíferas para os seus perseguidores e setas de fogo para inflamar os corações dos fiéis.
16 15Depois desta disposição, virá o justo juízo. A respeito deste, o salmista se exprime de maneira a entendermos que a cada um se torna suplício o seu próprio pecado e a sua iniquidade se converte em castigo. Não pensemos que venha o castigo da tranquilidade e luz inefável de Deus, e sim que ele de tal maneira dispõe acerca dos pecados que os prazeres do pecador se transformam em instrumentos de Deus para punir. “Eis que gera injustiça”. O que havia o pecador concebido para gerar a injustiça? “Concebeu o trabalho”. Daí, pois, a palavra: “Comerás o teu pão em trabalhos” (Gn 3,17); e também: “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo. O meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28.30). O trabalho não pode ser abolido, a menos que ame cada um só o que não lhe pode ser tirado contra a vontade. Pois, se amamos o que a contragosto podemos perder, forçoso é sofrermos miseravelmente por causa disso. E para o obtermos, em meio às angústias e tribulações terrenas, enquanto deseja cada um arrebatá-las e passar à frente dos outros, ou extorqui-las de alguém, planejam-se injustiças. Com razão, portanto, e em perfeita ordem se afirma que quem concebeu o trabalho deu à luz a injustiça. O que é que dá à luz senão aquilo que foi gerado, embora não tenha gerado aquilo que concebeu? Pois, não nasce o que foi concebido; mas é concebido o sêmen, nasce o que é formado do sêmen. O trabalho é, por conseguinte, o germe da iniquidade; o pecado, porém, é a conceição do trabalho, a saber, aquele primeiro pecado, a apostasia cometida contra Deus (Eclo 10,14). Gerou, portanto, a injustiça quem concebeu o trabalho. “E pariu a iniquidade”. Iniquidade é o mesmo que injustiça. Deu, pois, à luz o que gerou. Qual a continuação?
17 16“Abriu uma fossa, escavou-a”. Abrir uma fossa é, nas coisas terrenas, como se fosse na terra preparar uma armadilha para aquele a quem o injusto quer enganar. Abre-se tal fossa quando alguém consente na má sugestão das ambições terrenas. Escava-se quando, após o consentimento, se insiste em perpetrar a fraude. Mas, como é possível que a iniquidade prejudique o justo contra quem age, e não tanto o coração do injusto donde procede? Quem comete desfalque, por exemplo, enquanto visa a causar dano a outrem, abre em si a ferida da avareza. Quem é tão louco que não percebe a enorme diferença entre o que sofre prejuízo monetário e o que é lesado na inocência? “Cairá na fossa que abriu”. É idêntico ao que diz outro salmo: “O Senhor dá-se a conhecer quando faz justiça. O pecador ficou preso nas obras de suas mãos” (Sl 9,17).
18 17“Seu trabalho recair-lhe-á na cabeça e a sua maldade descer-lhe-á sobre a fronte”. O pecador não quis fugir do pecado, mas tornou-se escravo dele, conforme declara o Senhor: “Quem comete o pecado, é escravo” (Jo 8,34). Sua iniquidade, portanto, estará sobre ele, e a esta o pecador se submete, porque não pôde dizer ao Senhor como os inocentes e retos: “Minha glória. Exaltas a minha cabeça” (Sl 3,4). Assim, ficará em posição inferior, de sorte que a iniquidade fique por cima e sobre ele descerá. Pesa sobre ele, onera-o, não lhe permite voar ao repouso dos santos. Tal acontece se no perverso a razão for serva e a concupiscência dominar.
19 18“Confessarei ao Senhor, pela sua justiça”. Não se trata aqui da confissão de pecados. Quem assim se exprime, mais acima asseverava com toda verdade: “Se manchei minhas mãos na iniquidade”. Mas, trata-se de confissão da justiça de Deus, a respeito da qual assim falamos: Na verdade, Senhor, tu és justo, ao protegeres os justos de tal modo que por ti mesmo os iluminas, e dispões acerca do pecador de sorte que fique assim punida a malícia que é deles, não tua. Essa declaração louva tanto o Senhor que nada podem as blasfêmias dos ímpios, os quais, procurando escusar os próprios crimes, não querem atribuir os pecados à sua própria culpa, isto é, não querem que a culpa seja sua. Por tal motivo, encontram meios de acusar a sorte, ou o fado, ou o diabo, a cujas tentações podemos não consentir, conforme quis nosso Criador; ou inventam que existe outra natureza, não oriunda de Deus, esses infelizes hesitantes e errados, ao invés de louvarem a Deus, pedindo que os perdoe. Não convém seja perdoado senão aquele que confessa: Pequei. Quem vê, pois, Deus classificar os méritos das almas de tal maneira que, dando a cada um o que é seu, não se altere absolutamente a beleza do universo, em tudo dá louvor a Deus. Esta confissão não é própria de pecadores e sim de justos. Não se trata de confissão de pecados quando o Senhor diz: “Eu te confesso, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas ao sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Também diz o Eclesiástico: “Confessai o Senhor por todas as suas obras. Assim direis em seu louvor: Todas as obras do Senhor são magníficas” (Eclo 39,14.16). É possível assim interpretar este salmo se alguém, com mente piedosa, auxiliado pelo Senhor, distinguir entre os prêmios dos justos e os suplícios dos pecadores, e como que através destas duas espécies de pessoas, o universo criado por Deus é ornado de maravilhosa beleza, de poucos conhecida. Disse o salmista: Confessarei ao Senhor pela sua justiça, como alguém que não sabe terem sido as trevas feitas por Deus, no entanto, terem sido por ele dispostas em ordem. Pois Deus disse: “Faça-se a luz! E a luz foi feita” (Gn 1,3). Não disse: Façam-se as trevas e as trevas foram feitas; contudo, as dispôs em ordem. Por isso se diz: “Separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz dia, e às trevas noite” (ib 4,5). Eis a distinção: fez uma coisa e a pôs em ordem; não fez a outra, no entanto, a ordenou igualmente. Já no profeta se acha que as trevas significam o pecado: “A tua noite resplandecerá como o dia pleno” (Is 58,10) e o Apóstolo declara: “O que odeia o seu irmão está nas trevas” (1Jo 2,11), e principalmente: “Deixemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12). Não quer dizer que as trevas tenham uma natureza. Toda natureza, enquanto tal, forçosamente é um ser. O ser, porém, pertence à luz; o não ser, às trevas. Quem, portanto, abandona quem o criou e se inclina para a criatura, o nada, entenebrece por causa deste pecado; todavia não perece inteiramente, mas ocupa ínfimo lugar. O salmista, após ter proferido: “Confessarei o Senhor”, para não julgarmos ser confissão de pecados, acrescentou no final: “E cantarei salmos ao nome do Senhor, o Altíssimo”. Salmodiar relaciona-se à alegria; a penitência dos pecados, à tristeza.
20 Pode-se também aplicar este salmo à pessoa do homem-Senhor, se relacionarmos as expressões humildes nele empregadas e nossa fraqueza, que ele assumiu.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
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