SERMÃO 2
1 Não nos podemos furtar a tão numerosa multidão, mas também não devemos onerar sua fraqueza. Pedimos silêncio e tranquilidade, para que nossa voz, depois do esforço de ontem, encontre forças para ir até o fim. Acredito que V. Caridade hoje compareceu em maior número apenas no intuito de rezar pelos que se ausentam devido a sentimentos alheios e maus. Pois, não falamos de pagãos, nem de judeus, mas de cristãos; nem se trata de catecúmenos, mas de muitos já batizados, de quem não vos diferenciais pelo batismo, mas pelo coração. Pensamos em quantos são hoje nossos irmãos, e contudo lastimamos que procurem vaidades e loucas mentiras, negligenciando sua vocação! Se, por acaso, no circo eles se horrorizam por alguma coisa, logo fazem o sinal da cruz, mas permanecem de pé, trazendo-o na fronte, num lugar de onde deviam se afastar se o trouxessem no coração. Seria mister suplicar a misericórdia de Deus que lhes desse entendimento para condenar estas coisas, sentimento para delas fugir, e misericórdia para perdoar. Oportunamente o salmo que hoje foi cantado é penitencial. Dirigimo-nos também aos ausentes. Vossa memória fará junto deles o papel de nossa voz. Não negligencieis os feridos e debilitados, mas para mais facilmente curá-los, deveis manter-vos com saúde. Corrigi arguindo, consolai discorrendo, oferecei um exemplo vivendo honestamente. Assista-os quem vos assistiu. Pelo fato de que já atravessastes estes perigos, não foi cortada a ponte da misericórdia de Deus. Eles chegarão ao ponto a que chegastes, e passarão por onde passates. Certamente é molesto, sumamente perigoso, ou antes, pernicioso, sem dúvida mortal, pecar conscientemente. Uma coisa é alguém que despreza a voz de Cristo correr para estas vaidades, e outra alguém não saber o que deve evitar. Mas o presente salmo mostra que nem destes se deve desesperar.
2 1.2Este é o teor do título: “Salmo de Davi. Quando veio ter com ele o profeta Natan, depois que se unira com Bersabeia”. Era mulher casada. Devemos falar com dor e tremor; todavia, Deus não quis se calasse o que fez ser escrito. Direi, portanto, não o que quero, mas o que sou impelido a dizer. Proferirei, não exortando à imitação, mas instruindo para incutir temor. O rei e profeta Davi, a cuja estirpe, segundo a carne, pertenceria o Senhor, seduzido pela beleza dessa mulher, desposada a outro, com ela cometeu adultério. Este salmo não o narra, mas alude a isto o título. No livro dos Reis, porém, conta-se tudo por extenso. Ambas as Escrituras são canônicas, ambas sem dúvida alguma devem ser utilizadas pelos fiéis. O pecado foi cometido e isso está escrito. Davi mandou matar o marido de Bersabeia na guerra. Acrescentou um homicídio ao adultério. Depois de cometer este pecado foi-lhe enviado o profeta Natan, da parte de Deus, que o arguiu de tão grande crime.
3 Declaramos o que devem os homens evitar. Ouçamos a quem hão de imitar se tiverem caído. Muitos querem cair com Davi, mas não querem se levantar com ele. Não é exemplo de queda que te é proposto, e sim de como te reerguer se tiveres caído. Cuidado para não cair. A queda dos grandes não deve dar prazer aos menores, mas sirva a sua queda para incutir temor aos que estão abaixo. Foi para isto que foi proposto, que foi escrito, para isto na Igreja frequentemente é lido e cantado. Escutem os que não caíram, a fim de evitar a queda, ouçam os que caíram para se levantarem. Não se calou o pecado de tão grande varão. É anunciado na igreja. Os maus ouvintes escutam e procuram nisso uma defesa de seus pecados. Prestam atenção no modo de defender o pecado que decidiram cometer, ao invés de se precaverem do que não cometeram, e dizem a si mesmos: Se Davi assim agiu, por que não posso também eu? Por esta razão, a alma se torna pior do que Davi, querendo agir assim visto que Davi o fez; seu pecado é pior do que o de Davi. Vou explicar melhor, se puder. Davi não tomara a outro por exemplo, como tu. Caíra por ceder à concupiscência, e não por pretexto de não ser pecado; tu, porém, o propões a ti mesmo como exemplo, porque ele é santo, mas a fim de pecares. Não imitas a sua santidade, mas imitas sua queda. Amas em Davi o que ele mesmo odiou em si. Preparas-te para pecar, decides pecar. Examinas o Livro de Deus para pecar; ouves as Sagradas Escrituras a fim de praticar aquilo que desagrada a Deus. Não foi assim que agiu Davi. Foi repreendido pelo profeta, mas não caiu como profeta. Alguns, contudo, escutam de modo salutar, e vendo a queda de um forte medem melhor a sua fraqueza; desejosos de evitar o que Deus condena, com segurança moderam seus olhares. Não fixam os olhos na beleza carnal, imaginando por perversa simplicidade que estão firmes. Não dizem: Olhei com boa intenção, olhei por amizade, com benevolência olhei longamente. Pensam na queda de Davi. Reconhecendo que são pequenos não querem ver o que pode fazê-los cair, pois veem que o grande caiu. Reprimem os olhos da insolência, não se reúnem facilmente com as mulheres dos outros, não se detêm no meio delas, não dirigem os olhos para as sacadas e terraços vizinhos. Pois, Davi viu de longe aquela que o prendeu. A mulher estava longe, mas a concupiscência estava perto. Fora dele estava o que ele via, mas dentro de si tinha o que o faria cair. Faz-se mister precaver-se desta fraqueza da carne, recordando-se do que disse o Apóstolo: “O pecado não impere mais em vosso corpo mortal” (Rm 6,12). Não disse: Não exista, mas: “não impere”. O pecado está aí, quando sentes; mas só impera se consentires. Há de ser refreada e não seguida a deleitação carnal, principalmente quando se estender a objetos ilícitos e alheios. Deve ser domada pela vontade, e não se tornar voluntária. Olha sem receio, se não atinge teus sentimentos. Mas, podes replicar: Fico firme. Acaso és mais forte do que Davi?
4 Tal exemplo serve de aviso, para que ninguém se orgulhe na prosperidade. Muitos receiam a adversidade, mas não temem a prosperidade. No entanto, a prosperidade é mais perigosa para a alma do que a adversidade para o corpo. A prosperidade primeiro corrompe a alma, e depois a adversidade a encontra num estado de fragilidade. Meus irmãos, vigiai atentamente contra a felicidade. Por isso, vede como a palavra de Deus nos previne contra a segurança em nossa felicidade: “Servi ao Senhor com temor e exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11). Com exultação, demos graças; com temor de cair. Davi não pecou enquanto sofria a perseguição de Saul. Quando o santo profeta Davi sofria a inimizade de Saul, quando estava angustiado por suas perseguições, quando fugia por diversas regiões para não cair nas mãos do rei, não desejou a mulher do próximo, nem matou o marido depois de ter cometido adultério com a mulher (cf 1Rs 24,5; 26,9). Na fraqueza de sua tribulação estava tanto mais atento ao que Deus manda quanto mais infeliz se via. Determinadas tribulações são úteis. É útil a ferramenta do médico. Muito mais do que a tentação do diabo. Davi se tornou seguro de si depois de vencer os inimigos; a angústia passou e o orgulho cresceu. Valha-nos, pois, este exemplo para termos receio da felicidade. Diz o salmista: “Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor” (Sl 114,3.4).
5 Mas isto sucedeu. Diria tais coisas aos que não cometeram tal pecado para que guardem vigilantes sua integridade e vendo a queda de um grande, os pequenos sintam medo. Todavia, se alguém houver caído e ouve estas coisas, tendo na consciência uma culpa, preste atenção às palavras deste salmo: verifique o tamanho da ferida, mas não perca a esperança no poder do médico. Cair no desespero por causa do pecado é morte certa. Por conseguinte, ninguém diga: Se cometi algum mal já estou condenado. Deus não perdoa esta espécie de pecados; porque não continuarei a pecar? Gozarei com delícia neste mundo, com lascívia, com desejos impuros; tendo já perdido a esperança de conversão, tenha ao menos o que vejo, uma vez que não poderei ter o que creio. Este salmo, no entanto, como previne os que não caíram, igualmente não quer que desesperem os que pecaram. Quem quer que sejas que pecaste, e hesitas em fazer penitência por teu pecado, desanimado relativamente a tua salvação, escuta Davi a gemer. Não te foi enviado o profeta Natan, mas o próprio Davi. Escuta-o a clamar, e clama com ele; escuta-o a gemer, e geme simultaneamente; escuta-o a chorar, e une as tuas lágrimas às dele; escuta-o emendado, e alegra-te com ele. Se não impediste o pecado, não se encerre para ti a esperança do perdão. A Davi foi enviado o profeta Natan. Observa a humildade do rei. Não repeliu as palavras de ordem; não repeliu: Como ousas falar assim ao rei, que sou? Rei sublime, que ouviu o profeta; o povo humilde ouça a Cristo. 2 Cf. Cesario de Arles Sermo. 155-CC 103, p. 550ss e Pl 47, 1196ss.
6 3Escuta, portanto, estas palavras, e repete com ele: “Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia”. Quem suplica grande misericórdia confessa sua enorme miséria. Procurem menor misericórdia os que pecaram por ignorância. “Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia”. Socorre ao gravemente ferido, com teus enérgicos medicamentos. Grave é minha doença, mas refugio-me no Onipotente. Perderia a esperança por causa de meu ferimento mortal se não encontrasse tão grande médico. “Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia; e com a abundância de tuas comiserações apaga a minha iniquidade. Apaga a minha inquidade” corresponde a “Piedade de mim, ó Deus”. E “a abundância de tuas comiserações” equivale a “segundo a tua grande misericórdia”. Muitas misericórdias porque é grande a misericórdia; e desta grande misericórdia derivam as muitas comiserações. Olhas os que desprezam para corrigi-los, voltas-te para os ignorantes para ensinar-lhes, atendes os pecadores para perdoá-los. Cometeu pecados por ignorância? Alguém os cometera, praticando muitos males: “Mas obtive misericórdia, porque agi por ignorância” (1Tm 1,13). Davi não pôde dizer: “Agi por ignorância”. Não ignorava que grande pecado era tocar na mulher do próximo, e ainda matar o marido que desconhecia o fato, e por isso nem podia se encolerizar. Mas, conseguem a misericórdia do Senhor os que agem por ignorância, enquanto os que pecam conscientemente obtêm não qualquer uma, mas uma grande misericórdia.
7 4“Lava-me cada vez mais de minha injustiça”. Por que razão: “cada vez mais”? Porque estava muito manchado. Cada vez mais lava os pecados de quem está ciente, enquanto lavas os pecados de quem está na ignorância. Nem assim deve-se desesperar de tua misericórdia. “E purifica-me de meu pecado”. Por mérito de quem? Ele é médico e oferece a graça; é Deus, oferece o sacrifício. O que darás para seres purificado? Vê a quem hás de invocar. Invocas o justo, que odeia o pecado, pelo fato mesmo de ser justo. Pune o pecado, se é justo. Não podes subtrair de Deus a sua justiça. Implora a misericórdia, mas espera a justiça. É próprio da misericórdia perdoar o pecador e peculiar à justiça castigar o pecado. E então? Buscas a misericórdia e o pecado ficará impune? Responderá Davi, responderão os decaídos, responderão com Davi para merecerem a mesma misericórdia que ele, e digam: Não, Senhor, meu pecado não ficará impune. Conheço a justiça daquele cuja misericórdia procuro. Não ficará impune, mas não quero que tu me castigues, porque me arrependo de meu pecado. Peço que perdoes, porque reconheço meu pecado.
8 5“Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim”. Não deixei para trás o que fiz, não olho os outros, esquecido de mim mesmo, não tento retirar o argueiro do olho de meu irmão, quando tenho uma trave nos meus (cf Mt 7,3). Meu pecado está a minha frente, não nas costas. Estava atrás de mim quando me foi enviado o profeta, e me propôs a parábola da ovelha do pobre. Disse o profeta Natan a Davi: “Um homem rico possuía ovelhas em grande número. Um pobre, seu vizinho, tinha só uma pequena ovelha. Ele a criara junto de si e a alimentava com a sua comida. Um hóspede veio à casa do homem rico, que nada quis tirar de seu rebanho. Tomou a ovelhinha do pobre e a preparou para sua visita. De que é digno?” Davi, então, irado proferiu a sentença. De fato, o rei sem saber em que laço caíra, proferiu sentença de morte para o rico, que devia devolver a ovelha ao quádruplo (cf 2Rs 12,2- 6). Sentença muito severa, no entanto, justíssima. Mas seu pecado ainda não estava diante dele. Achava-se atrás dele o que cometera. Ainda não reconhecia sua iniquidade, e por isto não perdoava a alheia. O profeta, contudo, que para tal fora enviado, tirou o pecado de suas costas, e colocou-o diante de seus olhos, para que visse que proferia sentença tão severa contra si mesmo. Transformou a língua dele num bisturi para cortar e curar a ferida que ele tinha no coração. Igualmente, assim agiu o Senhor para com os judeus, quando lhe apresentaram a mulher adúltera, propondo-lhe uma cilada, mas quem nela caiu foram eles mesmos. Disseram: “Esta mulher foi surpreendida em adútério. Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, porém, que dizes?” Eles tentavam apanhar a Sabedoria de Deus numa cilada ambivalente. Se o Senhor mandasse matá-la, perderia a fama de mansidão; se ordenasse que a despedissem livre, incorreria na calúnia de ser censor da lei. Sua resposta foi a seguinte: Não disse: Matai; não disse: Soltai, mas: “Quem dentre vós não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”. É justa a lei que ordena se mate uma adúltera; mas esta lei justa pede ministros inocentes. Ponderai quem é que apresentais, mas atendei também no que sois. “Eles, porém, ouvindo isso, saíram um após outro. Ficaram a adúltera e o Senhor”, restaram a mulher ferida e o médico, a grande miséria e a grande misericórdia. Os que a apresentaram encheram-se de vergonha, mas não pediram perdão; a que fora levada perante o Senhor confundiu-se e foi curada. Disse-lhe o Senhor: “Mulher, ninguém te condenou? Disse ela: Ninguém, Senhor. Disse, então Jesus: Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais” (Jo 8,4-11). Por acaso, Cristo agiu contra a sua Lei? Pois, o Pai não dera a Lei sem o Filho. Se por ele foram feitos o céu, a terra e tudo o que eles contêm, como a Lei seria promulgada sem o Verbo de Deus? Nem Deus, nem o imperador agem contra as suas próprias leis quando dão perdão aos faltosos que confessarem. Moisés é ministro da Lei, mas Cristo é promulgador da Lei. Moisés manda apedrejar, enquanto é juiz, ao invés, Cristo, como rei, dá o perdão. Deus, portanto, dela se compadeceu em sua grande misericórdia, conforme ela aqui roga, pede, exclama, lamenta. Isto não quiseram fazer os que apresentaram a adúltera. Reconheceram o médico, porque lhe mostraram o ferimento, mas não procuraram dele o remédio. Desta maneira agem muitos que não se envergonham de pecar, mas têm vergonha de fazer penitência. Oh! Incrível loucura! Não te coras da ferida, e tens vergonha das faixas? Porventura não é mais fétida e pútrida quando está descoberta? Refugia-te, portanto, junto do médico, faze penitência, dizendo: “Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim”.
9 6“Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti”. Qual o sentido desta palavra? Não fora diante dos homens que Davi cometeu adultério e matou o marido desta mulher? Todos não souberam do ato de Davi? Por que então: “Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti”? Porque és o único sem pecado. Só é justo para punir aquele que em nada merece ser castigado; é justo censor pois não tem em si algo de repreensível. “Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado”. É difícil, irmãos, saber a quem são dirigidas estas palavras. O salmista fala, em verdade, a Deus, e é claro que Deus Pai não foi julgado. O que significa: “Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado”? Ele vê que o futuro juiz deve ser primeiro julgado, o justo julgado pelos pecadores, e nisto mesmo seria vencedor, porque não havia nele o que julgar. Somente entre os homens pôde dizer com verdade o homem Deus: Se encontraste pecado em mim, declarai-o (cf Jo 8,46). Mas existiria algo de oculto aos homens, e estes não descobriam o que de fato havia, porque não era evidente? Em outra passagem afirma o perspicaz examinador de todos os pecados: “O príncipe do mundo vem”. Declara: “O príncipe do mundo vem”, o príncipe da morte, a infligir a morte aos pecadores, pois, a morte entrou no mundo pela inveja do diabo (cf Sb 2,24). “O príncipe do mundo vem” (disse o Senhor, quando a paixão estava próxima); “contra mim ele nada pode”, não encontrará pecado algum, nada que mereça a morte, nem condenação. Seria como se lhe dissesse alguém: Então, por que hás de morrer? Prossegue: “Mas o mundo saberá que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos! Partamos daqui!” (Jo 14,30.31). Sofro, diz ele, sem merecer pelos que merecem a morte, para torná-los dignos de minha vida, pois indignamente sofro a morte em seu favor. O profeta Davi diz então a este que não tem pecado algum: “Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado”. Superas todos os homens, todos os juízes, e quem se reputa por justo, diante de ti é injusto. Tu somente julgas com justiça, tu que foste injustamente julgado, que tens o poder de entregar a tua vida e poder de novamente retomá-la (cf Jo 10,18). Vences, portanto, ao seres julgado. Superas a todos os homens; és mais do que todos eles, que por ti foram feitos.
10 7“Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado. Eis que fui concebido em iniquidade”. Seria como se dissesse: São vencidos os que fizeram como tu, Davi. Não é pequeno mal, pequeno pecado, cometer adúltério com homicídio. Que acontece aos que desde o nascimento, desde que saíram do seio de sua mãe, nada fizeram de semelhante? Também a estes imputas alguns pecados, de sorte que o Senhor supere a todos, ao começar a ser julgado? Davi faz o papel de todo o gênero humano, pondera os vínculos de todos, considera a propagação da morte, nota a origem da iniquidade, e diz: “Eis que fui concebido em iniquidade”. Por acaso nascera Davi de um adultério? Nascera de Jessé, homem justo e de sua esposa (1Rs 16,18). Por que razão diz que foi concebido em iniquidade, senão porque contraiu o pecado original de Adão? A própria necessidade da morte liga-se ao pecado. Ninguém nasce sem contrair a culpa, a pena. Diz em outra passagem o profeta: “Ninguém é puro em tua presença, nem a criança de um dia de vida sobre a terra” (Jó 14,4 sg. LXX). Mas, sabemos que no batismo de Cristo os pecados são perdoados, e que este batismo vale para a remissão dos pecados. Se as crianças são inteiramente inocentes, porque as mães correm para a igreja quando elas adoecem? Que pecado apaga aquele batismo, a que se refere aquele perdão? Vejo a criança inocente a chorar, não a se encolerizar. Que lava o batismo? Que dívida se paga com aquela graça? Apaga-se a propagação do pecado. Se aquela criança pudesse falar, te diria, e se já tivesse o entendimento que possuía Davi, te responderia: O que observas em mim, que sou uma criança? É verdade que não vês pecados que tenha cometido, mas fui concebido em iniquidade e “em pecado me gerou minha mãe”. Isento deste vínculo da concupiscência carnal, nasceu Cristo não de um varão, mas de uma virgem que concebeu por obra do Espírito Santo. Dele não se pode dizer que foi concebido em iniquidade; não se pode dizer: Sua mãe o gerou em pecado. A ela foi dito: “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra” (Lc 1,35). Por conseguinte, não se diz que os homens são concebidos em iniquidades e em pecado são gerados pelas mães porque seria pecado a união dos cônjuges, mas porque a geração se produz numa carne sujeita à pena devida ao pecado. O castigo da carne é a morte, e de fato nela é inerente a própria mortalidade. Daí decorre que o Apóstolo não afirma que o corpo há de morrer, mas que está morto. Diz ele: “O corpo está morto, pelo pecado, mas o espírito é vida, pela justiça” (Rm 8,10). Como, então, nasceria sem o vínculo do pecado quem é concebido e gerado de um corpo morto pelo pecado? A casta união conjugal não é culpada, mas o pecado original acarreta a merecida pena. O marido não é mortal enquanto tal, mas devido ao pecado. O Senhor também era mortal, mas não por causa de algum pecado. Aceitou a pena que merecíamos, e assim apagou a nossa culpa. Com razão, portanto, todos morrem em Adão, mas em Cristo todos são vivificados (cf 1Cor 15,22). “Eis porque”, diz o Apóstolo, “por meio de um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque nele todos pecaram” (Rm 5,12). Está bem delimitada a questão: Em Adão todos pecaram. Excetua-se apenas a criança inocente que não nasceu com o pecado de Adão.
11 8“Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria. Amaste a verdade”, isto é, não deixaste impunes os pecados, nem mesmo daqueles a quem perdoaste. “Amaste a verdade”. Concedeste misericórdia, contudo conservaste a verdade. Perdoas àquele que confessa; perdoas, mas ao penitente. Assim se preserva a misericórdia unida à verdade. Misericórdia porque o homem é libertado; verdade porque o pecado é punido. “Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria”. Por que motivo “recônditas”? Por que “incertas”? Porque até a estes Deus perdoa. Nada de tão oculto, nada de tão incerto. Diante desta incerteza, os ninivitas fizeram penitência. Declararam, disseram a si mesmos que deviam pedir misericórdia, apesar das ameaças do profeta, apesar de seu aviso: “Ainda três dias, e Nínive será destruída”. Perguntaram-se uns aos outros: “Quem sabe? Talvez Deus volte atrás, arrependase e se compadeça”. Estavam na incerteza, pois diziam: “Quem sabe?” Na dúvida, fizeram penitência e mereceram misericórdia segura. Prostraram-se com lágrimas, jejuns, cilício e cinza, gemeram, choraram e Deus os poupou (Jn 3,4-10). Nínive ficou de pé, ou foi destruída? Os homens veem de um modo e Deus de outro. Penso que se cumpriu o que o profeta predissera. Pondera o que foi Nínive, e vê que foi destruída, derrubada relativamente ao mal, edificada no tocante ao bem, assim como Saulo, o perseguidor, foi derrubado e ergueu-se Paulo, o pregador (cf At 9,4). Quem não diria que à nossa cidade seria uma felicidade ser destruída de sorte que todos os insensatos deixassem suas futilidades, e acorressem à igreja contritos, pedindo a misericórdia de Deus em relação a seus pecados passados? Não diríamos: Onde está aquela Cartago? Como não é mais o que fora, foi destruída; mas se ela se tornou o que não era, foi edificada. Por esta razão é que foi dito a Jeremias: “Eu te constituo para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar” (Jr 1,10). Daí também aquela palavra do Senhor: “Sou eu quem fere e torno a curar” (Dt 32,39). Fere, extrai a podridão do crime, cura a dor da ferida. Assim fazem os médicos, que cortam, extraem, curam. Armam-se para ferir, usam o bisturi para curar. Mas como os pecados dos ninivitas eram grandes, eles disseram: “Quem sabe?” Essa incerteza Deus tirara de seu servo Davi. Ao responder ele, ao profeta que estava em sua presença e o arguía: “Pequei”, logo ouviu do profeta, isto é, do Espírito de Deus que estava no profeta: “O Senhor perdoa a tua falta” (2Rs 12,13). Ele lhe revelou as coisas incertas e recônditas de sua sabedoria.
12 9“Aspergir-me-ás com o hissopo e serei purificado”. Sabemos que o hissopo é uma erva insignificante, mas medicinal; suas raízes aderem às pedras. Daí se tirou a comparação, o símbolo da purificação do coração. Também tu firma-te na raiz do amor, a tua pedra. Sê humilde, unida a teu Deus humilde, para que sejas sublime em teu Deus glorificado. Serás aspergido com o hissopo; a humildade de Cristo te purificará. Não desprezes a erva; ao invés, atende à virtude do medicamento. Direi ainda alguma coisa que costumamos ouvir dos médicos, ou experimentar nos doentes. Diz-se que o hissopo é apto a purificar os pulmões. Os pulmões costumam assinalar a soberba. Dali parte o inchaço, o hálito. Foi dito de Saulo, o perseguidor, como sendo Saulo soberbo, que partira para prender os cristãos, respirando morticínio (cf At 9,1). Respirava morticínio, desejava derramar sangue, tinha os pulmões não purificados. Escuta-o agora, humilde porque foi purificado por meio do hissopo: “Aspergir-meás com o hissopo e serei purificado: lavar-me-ás e ficarei mais alvo do que a neve”, isto é, purificar-me-ás. Diz o profeta: “Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornarse-ão alvos como a neve” (Is 1,18). É destes fiéis que Cristo tece a veste sem mancha nem ruga (cf Ef 5,27). Por este motivo, a sua veste no monte, que brilhou ficando alva como a neve (cf Mt 17,2), representava a Igreja purificada de toda mácula de pecado.
13 10Mas por que o hissopo figura a humildade? Ouve o versículo seguinte: “Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria e exultarão os ossos humilhados. Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria”. Alegrar-me-ei ao ouvir-te. Não falarei contra ti. Pecaste. Por que te defendes? Queres falar. Sofre, ouve, atende à voz divina, não te perturbes, não te firas mais ainda. Cometeste pecado. Não te defendas, mas procura a confissão, não a defesa. Se te apresentas como defensor de teu pecado, serás vencido. Não patrocinaste um inocente. Não te será útil tua defesa. Quem és tu para te defenderes? És apto para te acusares. Não digas: Nada fiz. Ou: Que grande pecado cometi? Ou: Os outros fizeram o mesmo. Se ao pecares dizes que nada cometeste, nada serás, nada receberás. Deus está disposto a dar-te o perdão. Tu te fechas para teu prejuízo. Ele está pronto a dar. Não oponhas o obstáculo da defesa, mas abre o peito para a confissão. “Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria”. O Senhor me dê a possibilidade de dizer o que penso. São mais felizes os que ouvem do que os que falam. Quem está aprendendo faz-se humilde; o mestre deve se esforçar para não se tornar soberbo, para não deixar que se insinue o desejo de agradar como não deve, a fim de que não desagrade a Deus, quem quer agradar aos homens. Grande tremor sente quem ensina, meus irmãos, grande é o tremor que temos enquanto falamos. Crede no que há em nosso coração, que não podeis ver. Conhece-o aquele que pode se aplacar. Seja-nos ele propício, pois é com grande temor que vos falamos. Quando o ouvimos interiormente sugerindo e ensinando, sentimo-nos seguros, alegramo-nos tranquilos. Estamos subordinados ao mestre, procuramos sua glória, louvamo-lo enquanto ensina. Sua verdade deleita-nos interiormente, onde ninguém faz ou ouve ruído. Ali disse o salmista estar sua alegria e sua exultação. “Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria”. Ouve pois é humilde. Quem ouve, quem ouve de verdade, quem ouve bem, ouve humildemente. A glória pertence àquele a quem o ouvinte escuta. Após haver dito: “Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria”, mostra imediatamente o efeito desta audição: “E exultarão os ossos humilhados”. Os ossos foram humilhados. Os ossos do ouvinte não demonstram orgulho, nem inchaço, o qual é vencido apenas por aquele que fala. Por conseguinte, João Batista, o varão humilde e grande, em comparação do qual não houve maior entre os nascidos de mulher, de tal forma se humilhou que se declarou indigno de desatar as correias das sandálias de seu Senhor (cf Mt 11,11; Mc 1,7); deu glória a seu mestre e com isto se tornou seu amigo. Quando era considerado como sendo o Cristo (cf Sl 3,15) e poderia por isso encher-se de soberba e se projetar, disse: “Quem tem a esposa é o esposo, mas o amigo do esposo, que está presente o ouve” (Jo 3,29). Não foi ele que disse ser o Cristo, mas poderia ter aceitado o erro dos homens que assim pensavam, e além disso, queriam prestar-lhe esta honra; mas ele rejeitou a falsa honra para encontrar a verdadeira glória. Vê a humildade que obteve ao ouvir o esposo: “Ficou de pé a ouvir”; não caiu e falou. Está de pé e ouve que ele prestou à palavra de onde lhe veio o júbilo e a alegria? “Está de pé e ouve, e é tomado de alegria à voz do esposo. Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria e exultarão os ossos humilhados”.
14 11“Desvia a tua face de meu pecado e apaga todas as minhas iniquidades”. Os ossos humilhados já exultam, já fui purificado com o hissopo, e tornei-me humilde. “Desvia a tua face”, não de mim, mas “de meus pecados”. Em outra passagem, efetivamente, diz: “Não desvies de mim a tua face” (Sl 26,9). Quem não quer que a face de Deus se desvie de si procura que ele a desvie de seus pecados. Dá atenção ao pecado do qual Deus não aparta sua face; se ele observa, condena. “Desvia a tua face de meus pecados e apaga todas as minhas iniquídades”. Preocupa-se com aquele grande pecado; mas presume ainda mais sejam apagadas todas as suas iniquidades. Presume da mão do médico, daquela grande misericórdia de que tratou no princípio do salmo: “Apaga a minha iniquidade”. Deus desvia a sua face e assim apaga; desviando a face, apaga os pecados, dando atenção anota. Ouviste que ele apaga, desviando a face, ouve agora o que há de fazer quando presta atenção. “Mas a face do Senhor volta-se contra os malfeitores, para apagar da terra a memória deles” e não os pecados. Aqui, porém, como roga o salmista? “Desvia a tua face de meus pecados”. É bom rezar assim. O próprio salmista, porém, não desvia a face de seus pecados, pois afirma: “Reconheço a minha iniquidade”. Com justeza rezas, e rezas bem para que Deus desvie a sua face de teu pecado, se tu mesmo não apartas a tua: se, porém, pões os teus pecados nas costas, Deus volta para eles a sua face. Tu deves colocar teu pecado em tua presença, se queres que Deus dele aparte a sua face. E assim rezarás com segurança porque ele há de ouvir.
15 12“Cria em mim, ó Deus, um coração puro”. Cria, não quer dizer, faze algo de novo. Mas orava como um penitente que cometera algo que diminuíra sua inocência; por isso diz: “Cria, e renova em minhas entranhas um espírito reto”. Minha ação debilitara e curvara a retidão de meu espírito. Foi dito em outro salmo: “Mantiveram curva a minha alma” (Sl 56,7). Quando o homem se torna propenso às concupiscências terrenas, curva-se de certa maneira; quando se ergue para as coisas do alto, seu coração se torna reto e passa a considerar a bondade de Deus. Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração (cf Sl 72,1). Em consequência disso, irmãos, ouvi. Às vezes, Deus repreende por causa do pecado aquele a quem há de perdoar no século futuro. Pois, ao próprio Davi, ao qual fora dito pelo profeta: “O Senhor perdoou a tua falta” (2Rs 12,13), sobrevieram alguns castigos de que Deus o ameaçara, por causa do pecado. Seu filho Absalão fez-lhe cruenta guerra e humilhou muito o pai (cf 2Rs 12,13). Davi passou os dias na dor, na tribulação de sua humilhação, de tal modo submisso a Deus que confessava serem justos os castigos e que ainda nada do que sofria era imerecido. Já possuía um coração reto e agradava-lhe Deus. Ouvia com paciência um homem a injuriá-lo e a lançar pesadas maldições contra ele; era dos adversários, um soldado que apoiava seu filho impiedoso. Enquanto ele lançava maldições contra o rei, um dos companheiros de Davi, encolerizado, quis feri-lo, mas Davi o impediu. Como o fez? Dizendo: “Amaldiçoe, se o Senhor lhe ordenou que o fizesse” (2Rs 16,5.10). Reconhecendo a sua culpa, aceitou o castigo, sem procurar a própria glória. Louvava o Senhor por causa do bem que possuía, louvava-o devido ao que sofria, bendizia-o em todo tempo, tendo sempre seu louvor nos lábios (cf Sl 33,2). Assim agem os que são retos de coração, mas não os perversos, que se consideram certos e que Deus está errado. Se praticam o mal alegram-se; se sofrem algum mal blasfemam. Além disso, se passam por tribulação e suportam um castigo, dizem em seu coração perverso: Ó Deus, que te fiz? De fato, a Deus nada fizeram; tudo foi contra eles mesmos. “E renova em minhas entranhas um espírito reto”.
16 13“Não me expulses de tua presença. Desvia a tua face de meus pecados; e não me expulses de tua presença”. Teme a sua face, contudo a invoca. “Não me expulses de tua presença, nem me retires o teu santo espírito”. Pois, o Espírito Santo está naquele que confessa. Já é um dos dons do Espírito Santo desagradar-te o que fizeste. Os pecados agradam ao espírito imundo, mas causam desprazer ao Santo. Portanto, embora ainda peças perdão, de outro lado, por te desagradar o mal que cometeste, te unes a Deus. Então, desagrada-te o mesmo que a ele. Já são dois para acabar com tua febre: tu e o médico. Uma vez que não é possível haver confissão e castigo do pecado no homem, provenientes de si mesmo, vem de um dom do Espírito alguém se penitenciar e ter horror do pecado. O salmo não diz: Dá-me teu santo espírito, mas: “não retires de mim. Nem me retires o teu santo espírito”.
17 14“Restitui-me a alegria de tua salvação”. Restitui a alegria que eu tinha e perdera com o pecado. “Restitui-me a alegria de tua salvação”, a saber, de teu Cristo. Pois, quem ficou curado sem seu auxílio? Mesmo antes de nascer de Maria, no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (cf Jo 1,1). Os santos pais acreditavam na futura encarnação do mesmo modo que nós nela acreditamos, depois de realizada. Variaram os tempos, não a fé. “Restitui-me, depois de tua salvação e sustenta-me com o espírito principal”. Alguns viram neste trecho uma referência a Deus Trino, executando-se a encarnação; pois está escrito: “Deus é espírito” (Jo 4,24). Parece que a um ser que não é corpo só lhe resta ser espírito. Alguns, portanto, são de opinião de que aqui se trata da Trindade 1 : “espírito reto” aludiria ao Filho, “espírito santo” seria o Espírito Santo, e “espírito principal” seria o Pai. Quer se adote este parecer, quer se aplique a expressão: “Espírito reto” ao próprio homem dizendo: “Renova em minhas entranhas um espírito reto” (pois o pecado o curvou e distorceu; enquanto “espírito principal” seria o Espírito Santo, que o homem pede não se retire, mas ao invés, o confirme) nem uma nem outra dessas opiniões é herética.
18 15Mas, vede o acréscimo: “Sustenta-me com o espírito principal”. Em que tu “me sustentas”? Uma vez que me perdoaste, que estou certo de que não são atribuídos a mim mesmo os teus dons, por isto fico tranquilo; e por esta graça confirmado, não serei ingrato. Que farei, então? “Ensinarei aos maus os teus caminhos”. Eu, um ex-malvado, ensinarei aos malvados; quero dizer, fui também eu iníquo, mas já não o sou, nem o Espírito Santo de mim se retirou, e fui sustentado pelo espírito principal, por isso, “ensinarei aos maus os teus caminhos”. Quais ensinarás? “E a ti se converterão os ímpios”. Se o pecado de Davi for atribuído à impiedade, os ímpios não percam a esperança, porque Deus perdoou ao ímpio; contanto que se convertam, que aprendam os seus caminhos. Se, porém, não for atribuído à impiedade o pecado de Davi, mas propriamente for denominada impiedade a apostasia, o fato de deixar de adorar o único Deus (nunca ter adorado, ou ter deixado de fazê-lo), refere-se ao cúmulo dos pecados a frase: “E a ti se converterão os ímpios”. Deus é de tal maneira cheio de misericórdia que não se deve perder a esperança a respeito de nenhum pecador, nem mesmo dos ímpios que a ele se convertem. “E a ti se converterão os ímpios”. De que forma? Que seja reputada como justiça a fé dos que creem naquele que justifica o ímpio (cf Rm 4,5).
19 16“Livra-me da mancha dos sangues, ó Deus, Deus de minha salvação”. O tradutor latino verteu literalmente do grego. Todos sabemos que em latim não se emprega a palavra sangue no plural. No entanto em grego verteram no plural, não por acaso, mas porque assim se acha no original hebraico. O piedoso tradutor preferiu empregar uma palavra menos latina do que menos literal. Por que foi dito no plural: “dos sangues”? Com a expressão: sangues, como na origem da carne de pecado, quis o salmista dar a entender muitos pecados. O Apóstolo, considerando os pecados provenientes da corrupção da carne e do sangue, disse: “A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus” (1Cor 15,50). Efetivamente, segundo a fé verdadeira professada pelo mesmo Apóstolo, a carne ressurgirá e receberá a incorruptibilidade, conforme ele diz: “É necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade” (1Cor 15,53). Como a corrupção origina-se do pecado, com este mesmo nome se designa o pecado, da mesma forma que se chama língua aquele pedaço de carne, aquele membro que se move dentro da boca, ao proferirmos as palavras, e também língua a locução que precisa da língua para se exercer, por exemplo, a língua grega, a língua latina. A carne é igual, o som é diferente. Por conseguinte, como se chama língua aquilo que se fala empregando a língua, assim se chama sangue a iniquidade que se faz por meio do sangue. O salmista, portanto, atendendo as suas muitas iniquidades, disse mais acima: “Apaga a minha iniquidade”; e atribuindo-a à corrupção da carne e do sangue, pede: “Livra-me da mancha dos sangues”, a saber, livra-me das iniquidades, purifica-me de toda corrupção. Anela pela incorruptibilidade aquele que diz: “Livra-me da mancha dos sangues, porque a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção a incorruptibilidade. Livra-me da mancha dos sangues, ó Deus, Deus de minha salvação”. Mostra que, quando a salvação for perfeita no corpo, não haverá mais corrupção, significada pelos nomes de carne e sangue; será a perfeita saúde do corpo. Pois, agora como pode ser sadio o que deslisa, sofre necessidades, sente uma espécie de doença contínua com a fome e a sede? Tudo isso, então, não existirá mais. Os alimentos são para o ventre e o ventre para os alimentos. Deus, porém, destruirá estes e aqueles (cf 1Cor 6,13). Deus dará ao corpo uma forma acabada, quando a morte for absorvida pela vitória (cf 1Cor 15,54), e não restar mais corrupção, nem defeito, nem mudança de idade, nem cansaço de trabalho que exige reforço de alimento, ou refeição. Mas não estaremos sem alimento ou bebida, pois o próprio Deus será nosso alimento, nossa bebida. Somente este alimento nos refaz, sem se consumir. “Livra-me da mancha dos sangues, ó Deus, Deus de minha salvação”. Agora já estamos num regime de salvação. Ouve o que diz o Apóstolo: “Somos salvos em esperança”. Vê que ele tratava da salvação do corpo: “Gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo. Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,23.25). Aquele que perseverar até o fim — trata-se da paciência — esse será salvo — a salvação que ainda não temos, mas haveremos de ter. Ainda não veio a realidade, mas a esperança é segura (cf Mt 10,22; 24,13). “E minha língua celebrará com exultação a tua justiça”.
20 17“Abrirás, ó Senhor, os meus lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor”. “Teu louvor”, porque fui criado; “teu louvor”, porque não fui abandonado quando pequei; “teu louvor”, porque fui admoestado a que confessasse; “teu louvor”, porque fui purificado para estar em segurança. “Abrirás os meus lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor”
21 18.19“Pois se quisesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria”. Davi vivia no tempo em que se ofereciam a Deus sacrifícios de animais, mas ele via o futuro. Não nos reconhecemos nestas palavras? Aqueles sacrifícios eram figurados e prenunciavam o único sacrifício salutar. No entanto, não ficamos sem vítima a oferecer a Deus. Ouve o que diz o salmista, preocupado com o seu pecado, e querendo ser perdoado do mal que fez: “Pois se quisesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria. Não te comprazes em holocaustos”. Então nada ofereceremos? E assim nos apresentaremos diante de Deus? E como o aplacaremos? Oferece; pois, de fato, tens em ti o que oferecer. Não é preciso adquirir incenso fora, mas dize: “Em mim, ó Deus, estão os votos de louvor que cumprirei”. Não procures exteriormente um animal para imolares, porque tens dentro de ti o que imolar. “Sacrifício a Deus é o espírito contrito; ao coração arrependido e humilhado Deus não despreza”. Certamente despreza um touro, um cabrito, um carneiro; em nossa época não devem mais ser oferecidos. Eram apresentados quando indicavam ou prometiam algo; mas a realidade prometida já chegou, e as promessas acabaram. “Ao coração contrito e humilhado Deus não despreza”. Como sabeis, Deus é altíssimo; se te exaltares, afastar-se-á de ti; se te humilhares, aproximar-se-á de ti.
22 20Vede quem pronuncia estas palavras. Parecia que era apenas Davi a rezar. Vede aí nossa imagem e o tipo da Igreja. “Senhor, em tua bondade, derrama sobre Sião teus benefícios”. Derrama teus benefícios sobre esta Sião. Qual? A cidade santa. Qual é? A que não pode ficar escondida, porque situada sobre um monte (cf Mt 5,14). Sião, como posto de observação, porque vê algo do que espera. Sião se interpreta: observação, e Jerusalém: visão de paz. Reconheceis que vos achais em Sião e em Jerusalém, se esperais com segurança o objeto futuro de vossa esperança, e se tendes paz com Deus. “E reedifica os muros de Jerusalém. Senhor, em tua bondade, derrama sobre Sião teus benefícios; reedifica os muros de Jerusalém”. Não pense Sião que tem merecimentos por si mesma; tu, Senhor, derrama sobre ela teus benefícios. “Reedifica os muros de Jerusalém”. Construam-se as defesas de nossa imortalidade, na fé, esperança e caridade.
23 21“Aceitarás então o sacrifício de justiça”. Agora, porém, o sacrifício é por causa da iniquidade, isto é, o de um coração contrito e humilhado. Então, será o sacrifício de justiça, somente o louvor. Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos — eis o sacrifício de justiça (Sl 83,5). “As oblações e os holocaustos”. Que são holocaustos? São os sacrifícios inteiramente consumidos pelo fogo. Chamava-se holocausto o sacrifício em que todo o animal era colocado sobre o altar para ser consumido pelo fogo. Que o fogo divino nos consuma inteiramente, e aquele calor nos abrase. Qual? “Ninguém se subtrai a seu calor” (Sl 18,7). Qual calor? Aquele a que se refere o Apóstolo: “Fervorosos de espírito” (Rm 12,11). Não somente a nossa alma seja consumida por aquele fogo divino da sabedoria, mas também o nosso corpo a fim de merecer a imortalidade. O holocausto vá a tal ponto que a morte seja absorvida pela vitória. “As oblações e os holocaustos. Então se oferecerão novilhos sobre teu altar”. De onde “os novilhos”? Qual a opção? A inocência da nova idade, ou o pescoço livre do jugo da Lei?
24 Em nome de Cristo, terminamos o salmo, talvez não como o desejaríamos, mas conforme pudemos. Pouco resta a vos dizer, irmãos, por causa dos males entre os quais vivemos. Estando no meio das vicissitudes humanas, não podemos nos alhear das coisas humanas. Temos de viver com tolerância no meio dos maus, pois quando éramos maus, os bons nos suportaram. Se não olvidarmos o que fomos, não perderemos a esperança acerca daqueles que agora são o que nós fomos. Todavia, caríssimos, sendo tão grande a diversidade dos costumes e tão detestável a corrupção, governai bem a vossa casa, orientai vossos filhos, vossa família. Como nos compete falar-vos na Igreja, assim tendes o dever de fazer o mesmo em vossas casas, para poderdes prestar contas exatas dos que vos estão sujeitos. Deus ama a disciplina. É perversa e falsa inocência relaxar as rédeas dos pecados. É muito inútil, muito perniciosa a mansidão do pai para com o filho, que depois há de sentir a severidade de Deus; e isto, não ele sozinho, mas com o pai negligente. E então? Se o próprio pai não peca e não age como o filho, nem por isso há de proibir a maldade do filho? Acaso não pensará o filho que o pai faria de igual modo que ele, se não fosse velho? O pecado do filho que não te desagrada, te deleita; portanto, foi a idade e não o desejo que abandonou o pecado. Principalmente, meus irmãos, cuidai dos filhos que se tornaram fiéis, pelos quais respondestes para que fossem batizados. Mas se, por acaso, o filho malvado não atender aos avisos do pai, ou às censuras, ou à severidade? Faze a tua parte. Dele há de exigir Deus a sua.
1 Cf Jerôn. Comentário à carta aos Gálatas, 4,6 – P. L. 26, 399 c.
Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.
Deixe um comentário