Comentário de Santo Agostinho ao Salmo 47

SERMÃO AO POVO

1 1O salmo tem por título: “Cântico de louvor, aos filhos de Coré, segunda-feira”. Acolhei as dádivas que o Senhor se dignar nos conceder, como sendo filhos do firmamento. No segundo dia da semana, isto é, no dia seguinte ao domingo, chamado segunda-feira, foi feito o firmamento do céu, ou antes o firmamento chamado céu. Pois Deus denominou o firmamento de céu (cf Gn 1,3-8). No primeiro dia criara a luz e a separara das trevas; e chamara a luz de dia, e as trevas de noite. Mas, conforme indica o contexto do salmo, Deus havia em sua obra proferido anteriormente algo que haveria de se cumprir em nós; e os séculos passaram de acordo com esta condição da criação. Não foi inutilmente que o Senhor disse de Moisés: “Foi a meu respeito que ele escreveu” (Jo 5,46). Tudo o que foi escrito, mesmo sobre a criação, pode ser interpretado com um sentido futuro. É possível referir a criação da luz à ressurreição de Cristo dentre os mortos. Então, de fato, a luz se separou das trevas, pois a imortalidade se distinguiu da mortalidade. Qual a consequência? Que ao corpo, à Igreja, se fizesse o mesmo que à Cabeça. Enfim, num salmo que trata do primeiro dia da semana, claramente se alude à ressurreição do Senhor, com as palavras: “Suspendei, ó príncipes, as vossas portas. Elevaivos, portas eternas, e entrará o rei da glória” (Sl 23,7.9). É evidente que Cristo é o rei da glória. Dele foi dito: “Se tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória” (1Cor 2,8). Por segundo dia devemos entender a Igreja de Cristo, mas Igreja de Cristo, que abrange santos, daqueles que estão inscritos no céu, os que não cedem às tentações deste mundo. Eles merecem o nome de firmamento. Por conseguinte, Igreja de Cristo, os que nela estão firmes. Destes disse o Apóstolo: “Nós, os fortes, devemos carregar as debilidades dos fracos” (Rm 15,1). Esta Igreja tem o nome de firmamento. O salmo a canta. Ouçamos, reconheçamos, associemo-nos, gloriemo-nos, reinemos. Ouve como a epístola do Apóstolo a denomina firmamento, e reconhece-a: “Que é a Igreja do Deus vivo: coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15). Deste sustentáculo se canta aos filhos de Coré, que, como sabeis, são os filhos do esposo, crucificado no Calvário. Coré, de fato, se traduz por Calvo. Continua o salmo que traz no título: “na segunda-feira”.

2 2“Grande é o Senhor e muito digno de louvor”. Eis que “o Senhor é grande e muito digno de louvor”; mas acaso os infiéis louvam o Senhor? Louvam o Senhor os fiéis que vivem mal, fazendo com que seja blasfemado no meio dos gentios o nome de Deus? Eles louvam o Senhor? E se louvarem, será aceitável seu louvor, uma vez que está escrito: “O louvor não é belo na boca do pecador” (cf Rm 2,24; Eclo 15,9)? Pois havias dito: “Grande é o Senhor e muito digno de louvor”. Mas, onde? “Na cidade de nosso Deus, em seu monte santo”. Deste monte foi dito em outra passagem: “Quem subirá ao monte do Senhor? Quem possui mãos inocentes e coração puro” (Sl 23,3.4). Neles “grande é o Senhor e muito digno de louvor”, a saber, “na cidade de nosso Deus, em seu monte santo”. Situada numa montanha, esta cidade não pode ficar escondida. É como a lâmpada que não se esconde debaixo do alqueire, mas de todos é conhecida; é afamada (cf Mt 5,14.15). Nem todos são cidadãos daquela cidade, e sim aqueles para os quais “o Senhor é grande e muito digno de louvor”. Vejamos que cidade é esta, a fim de que não suceda ao ouvirmos: “na cidade de nosso Deus, em seu monte santo”, fiquemos à procura do monte onde seremos atendidos. Não é ociosa a palavra de outro salmo: “Elevei ao Senhor a minha voz e ele me ouviu de seu monte santo” (Sl 3,5). Sirva-te de auxílio estar neste monte, a fim de seres ouvido. Pois, se não o galgares, podes clamar de baixo, mas não serás ouvido. Que monte é esse, irmãos? Há de ser procurado com grande cuidado, investigado com maior solicitude, ocupado e galgado com esforço. Mas, como agir se está em alguma parte da terra? Sairemos de nossa terra, no intuito de o alcançarmos? Ao invés, somos peregrinos se não estamos nele. Ali está nossa cidade, se somos membros do rei, Cabeça daquela cidade. Onde, então, se localiza este monte? Se ocupa alguma região, como disse, temos de nos esforçar para lá chegar. Por que te empenhas? É desejável que não tenhas preguiça de subir o monte, da mesma forma que o monte veio sem tardança para junto de quem dormia. Houve uma vez certa pedra angular de aspecto desprezível, que serviu de tropeço para os judeus. Destacou-se de um monte, sem intervenção de mão alguma, isto é, procedeu sem tal intervenção do reino dos judeus, porque não houve intervenção humana em Maria, da qual nasceu o Cristo (cf Rm 9,32; Mt 1,16). Mas se esta pedra, tropeço para os judeus, ficasse assim, não terias aonde subir. O que aconteceu? Como fala o profeta Daniel? Não diz que esta pedra foi aumentando, e se tornou um grande monte? De que tamanho? Encheu a terra inteira (cf Dn 2,34-35). Por conseguinte, o monte crescendo e enchendo a terra inteira, chegou até nós. Por que motivo, então, haveríamos de procurar o monte como distante, e não o subimos, uma vez que está perto de nós, de sorte “que seja para nós o Senhor grande e muito digno de louvor”?

3 3Enfim, vê a continuação do salmo, para conheceres o monte a que ele alude, e não o procures em outra parte da terra. Tendo dito: “Na cidade de nosso Deus, em seu monte santo”, que acréscimo aduz? “Com exultação de toda a terra elevam-se os montes de Sião”. Sião é um só monte. Por que, então: “montes”? Seria porque a Sião passaram a pertencer os que vieram de lugares diversos, juntando-se à pedra angular, de sorte a se formarem duas paredes (como se fossem montes), uma da circuncisão e outra dos gentios; uma dos judeus e outra dos pagãos? Não mais como adversários, apesar de diversos; de diversa proveniência, mas iguais, no ângulo. “Ele é nossa paz: de ambos os povos fez um só” (Ef 2,14). Ele é a pedra angular. “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (Sl 117,22). De dois montes fez-se um só. Uma só casa, duas casas: duas porque provenientes de lados diferentes, uma por causa da pedra angular, na qual ambas se unem. Ouve também o seguinte: “Montes de Sião; nos confins do Aquilão, a cidade do grande rei”. Consideravas Sião como um só lugar, onde foi fundada Jerusalém, e nela só te lembravas do povo oriundo da circuncisão. Cristo recolheu um resto deste povo; a maioria foi ventilada como palha. Pois, está escrito: “O resto é que será salvo” (Rm 9,27). Mas, dá atenção também aos gentios; vê a oliveira silvestre ser enxertada na oliveira genuína (cf Rm 11,17). Eis os gentios: “confins do Aquilão”. Os confins do Aquilão foram agregados à cidade do grande rei. Costuma-se dizer que o Aquilão é o oposto de Sião. Sião situa-se no sul, e o aquilão é no ponto contrário. Quem é este aquilão, senão aquele que disse: “No aquilão colocarei o meu trono, e tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo” (Is 14,13.14)? O diabo se apossara do reino dos ímpios, e dominava sobre os povos que serviam aos ídolos, e adoravam os demônios; e todos os do gênero humano que do mundo inteiro aderiram a ele se tornaram o aquilão. Mas aquele que liga o forte, e tira-lhe os vasos para fazê-los seus, libertou os homens da infidelidade e da superstição dos demônios. Depois, acreditando em Cristo, aliaram-se àquela cidade. No ângulo juntaram-se à parede da circuncisão, e os que eram dos confins do aquilão vieram integrar-se na cidade do grande rei. Por isso, diz igualmente outra passagem da Escritura: “Do norte chega a nuvem dourada: nela se mostra a grande glória e honra do Onipotente” (Jó 37,22). Constitui grande glória para o médico a convalescença de um doente que não dava mais esperança de cura. Do aquilão chegam as nuvens, não escuras, tenebrosas, tétricas, mas douradas. Donde provêm senão da graça que ilumina, através de Cristo? Eis: “Os confins do Aquilão, a cidade do grande rei”. Confins do aquilão que aderiram ao diabo. Quem adere a outro chama-se aderente. Pois, costumamos falar de certos homens: É correto, mas tem maus a seu lado. Isto é, ele se destaca pela probidade, mas são malvados seus adjuntos. Dos confins do aquilão que aderiram ao diabo proveio também aquele filho, do qual acabamos de ouvir que estivera morto e reviveu; perecera e foi reencontrado. Partira para uma região longínqua, chegara ao aquilão, e lá, como ouvistes, aderiu ao príncipe daquela região; mas como a cidade do grande rei se constitui também daqueles que vêm dos confins do aquilão, ele voltou a si e disse: Vou-me embora, procurar o meu pai. E correu ao seu encontro o pai que dissera a seu respeito: Estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado. O novilho cevado figura o mesmo que a pedra angular. Finalmente, o filho mais velho que não queria participar da festa, exortado pelo pai entrou (Lc 15,11-32); e as duas paredes integraram a cidade do grande rei, da mesma forma que os dois filhos aproximaram-se da mesma refeição.

4 4Continua, pois, o nosso salmo: “Deus se manifestará em suas casas”. Refere-se a casas, por causa dos montes, das duas paredes, dos dois filhos. “Deus se manifestará em suas casas”. Mas, relembrando a graça, acrescenta: “Quando as defender”. Pois, o que seria da mesma cidade, se Deus não a defendesse? Sem tal fundamento, não cairia imediatamente? Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo. Ninguém, portanto, se glorie de seus méritos; mas aquele que se gloria, se glorie no Senhor (cf 1Cor 3,11; 1,31). Aquela cidade será grande, nela se manifestará o Senhor, quando a defender; da mesma maneira acolhe o médico ao doente para curá-lo, e não para amá-lo como ele é, porquanto o médico odeia a febre. O médico não gosta do doente enquanto tal, mas o ama. Se gostasse do doente enquanto tal, desejaria que ficasse sempre doente. Ao invés, se não gostasse dele, não o iria visitar. Ele ama o doente para curá-lo. O Senhor igualmente acolheu esta cidade e nela se revelou, isto é, sua graça foi conhecida nela. Tudo o que aquela cidade possui, não vem de si mesma e por isso ela se gloria no Senhor. Tal o motivo de perguntar o Apóstolo: “Que é que possuis que não tenhas recebido? E se o recebeste, porque haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido?” (1Cor 4,7). “Deus se manifestará em suas casas, quando as defender”.

5 5.7“Pois eis que os reis da terra se reuniram”. Vede como se aproximam os confins do aquilão, vede como dizem: “Vinde, subamos ao monte do Senhor; para que ele nos instrua a respeito dos seus caminhos e assim andemos nas suas veredas” (Is 2,3). “Pois eis que os reis da terra se reuniram e se confederaram unânimes”. Como unânimes, senão unindo-se àquela pedra angular (cf Ef 2,20)? “Ao vê-la assim, eles se admiraram”. Qual a consequência da admiração pelos milagres e pela glória de Cristo? “Conturbaram-se, estremeceram, tomou-os o terror”; qual o temor que os acometeu, senão a consciência de seus delitos? Os reis, pois, acorram ao rei, reconheçam-no. Daí dizer em outra passagem o salmista: “Eu, porém, fui por ele constituído rei em Sião, sua montanha santa, para pregar o mandamento do Senhor. Disseme o Senhor: Tu és meu filho, eu hoje te gerei. Pede-me e dar-te-ei as nações por herança, e como propriedade os confins da terra. Hás de governá-las com cetro de ferro, e esmigalhá-las qual vaso de argila” (Sl 2,6-9). Foi, portanto, ouvido o rei estabelecido em Sião, e foi-lhe entregue o domínio até os confins da terra. Os reis devem temer a perda do reino, que este lhes seja retirado, como receou o infeliz Herodes, que matou os inocentes em lugar do Menino. Receoso de perder o reino, não mereceu ver o rei. Oxalá ele tivesse, com os magos, adorado o rei, e não procurasse perversamente reinar, nem matasse os inocentes, praticando o crime e se perdendo. Pois, ele de seu lado matou os inocentes; quanto a Cristo, porém, ainda pequenino, coroou as crianças que morreram por sua causa. Por conseguinte, deviam os reis temer uma vez que foi dito: “Eu, porém, fui por ele constituído rei”, e ele que me constituiu rei, dar-me-á a herança até os confins da terra. Mas, por que me invejais, ó reis? Vede, não invejeis. É um rei inteiramente diferente aquele que disse: “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36). Não receeis, portanto, vos seja tirado o reino deste mundo; ao contrário, ser-vos-á dado o reino, o reino dos céus, onde ele reina. Como prossegue o salmo? “Agora, ó reis, entendei”. Estáveis dispostos à inveja: “entendei”; tratava-se de outro rei, cujo reino não é deste mundo. Com razão, portanto, “os reis se reuniram, unânimes, conturbaram-se, tomou-os o terror”. Por este motivo, igualmente se lhes diz: “Agora, ó reis, entendei. Instruí-vos, ó juízes da terra. Servi ao Senhor com temor. E exultai diante dele com tremor” (Sl 2,10.11). E o que fizeram eles? Acometeu-os “dores como as da parturiente”. Quais são essas “dores como as da parturiente”, a não ser as dores de um penitente? Vede qual é a concepção e o parto da dor: “Por temor de ti”, diz Isaías, “concebemos e tivemos as dores de parto. Demos à luz o espírito de salvação” (Is 26,18). Assim, por causa do temor de Cristo os reis conceberam, de sorte que deram à luz a salvação, acreditando naquele que haviam temido. “Dores como as da parturiente”. Quem fala de parturiente, fala de filho. Gerou o homem velho, mas nasce o novo. “Dores como as da parturiente”.

6 8“Com vento impetuoso despedaçarás as naus de Társis”. Logo se entende: derrubas a soberba das nações. Mas, como desta história se depreende tratar-se da queda da soberba das nações? Por causa da expressão: “naves de Társis”. Os doutos pesquisaram acerca da cidade de Tarsis, isto é, qual a cidade significada por este nome. A alguns pareceu ser a Cilícia, porque sua capítal se chama Tarso. Desta cidade era originário o apóstolo Paulo, nascido em Tarso, na Cilícia (At 21,39). Outros opinaram que era Cartago; pode ser que outrora fosse assim denominada, ou designada de outra forma. Pois, no profeta Isaías, assim se encontra: “Uivai, navios de Cartago” (Is 23,1, sg LXX). Em Ezequiel (cf Ez 38,13 sg LXX) segundo vários intérpretes, é chamada Cartago por uns, e Társis por outros; e esta diversidade nos tradutores pode levar a se pensar que se chama aqui de Tarso a que tem o nome de Cartago. É claro que nos primórdios do reino cartaginês existia nele abundância de navios, e a tal ponto que superava todos os povos no comércio e na navegação. Pois, quando Dido, fugindo do irmão, chegou às terras da África, onde fundou Cartago, havia tomado para a fuga navios preparados para o comércio, em sua região. Os príncipes de lá consentiram nisso. E estes navios não desistiram do comércio, depois de fundada Cartago. Daí se originou a grande soberba da cidade, de forma que suas naves podem representar o orgulho dos povos, a presumirem do futuro incerto, como ventos que sopram. Deixemos de presumir da navegação, da prosperidade neste mundo, que é um oceano. Estejam nossos fundamentos em Sião. Ali nos firmemos, e não sejamos levados por qualquer vento de doutrina (cf Ef 4,14). Todo aquele que se orgulhar nas incertezas desta vida, é derrubado. Submeta-se a Cristo a soberba dos povos. Ele “com vento impetuoso despedaça as naves de Társis”; não as de qualquer cidade, mas as de “Társis”. Que “vento impetuoso” é esse? Um fortíssimo temor. Foi assim que tremeu todo orgulho diante daquele que há de julgar; os soberbos acreditaram nele quando humilde, para não terem de sentir pavor dele, quando se apresentar como o Altíssimo.

7 9“Como ouvimos, assim vimos”. Ó Igreja feliz! Ouviu em determinada ocasião, e em outra viu. Ouviu em promessa, vê na realidade; ouviu em profecia, vê no evangelho. Agora cumprese tudo o que foi profetizado. Ergue os olhos, portanto, percorre o mundo com o olhar; vê o povo herdeiro, até nos confins da terra; vê o cumprimento da palavra: “Adorá-lo-ão todos os reis da terra, todas as nações o servirão” (Sl 71,11). Vê já realizado o que foi dito: “Eleva-te, ó Deus, acima dos céus, e tua glória domine toda a terra” (Sl 107,6). Vê aquele cujos pés e mãos foram traspassados pelos cravos, cujos ossos, pendentes da cruz, foram contados, sobre cujas vestes foram lançadas sortes (cf Mt 27,35). Contempla como rei o que foi crucificado; vê sentado no céu aquele que fora desprezado ao andar sobre a terra. Verifica como se realizou a palavra: “Haverão de se lembrar e de se converter ao Senhor todos os confins da terra. E adorarão em sua presença todas as famílias das nações” (Sl 21,28). Ouvindo isto, exclama com alegria: “Como ouvimos, assim vimos”. É justo que assim se chame a Igreja proveniente das nações: “Ouve, filha, vê e esquece o teu povo e a casa de teu pai” (Sl 44,11). Teu pai foi aquilão. Vem para o monte de Sião. Ouve e vê; vê e ouve. O salmista diz: Ouve e vê. Antes ouve, depois vê. Em primeiro lugar ouves o que não vês e em seguida verás o que ouviste. Encontra-se em outro salmo: “Um povo que eu não conhecia pôs-se a meu serviço. Logo que ouviu, obedeceu-me” (Sl 17,45). Se logo que ouviu, obedeceu, então não viu. E o que quer dizer: “Verão coisas que não lhes haviam sido contadas e tomarão consciência de coisas que não tinham ouvido” (Is 52,15)? Aqueles aos quais não tinham sido enviados os profetas foram os primeiros a ouvi-los e entendê-los; os que primeiro não tinham ouvido, depois de ouvir ficaram admirados. Aqueles aos quais haviam sido enviados continuaram a guardar os códices, sem entender a verdade. Conservavam as tábuas do Testamento, mas perderam a herança. Nós, porém, “como ouvimos, assim vimos, na cidade do Senhor dos exércitos, na cidade de nosso Deus”. Aí ouvimos e vimos. Quem ficar de fora, não ouve, nem vê. Ao invés, quem nela se acha não é surdo, nem cego. “Como ouvimos, assim vimos”. E onde ouves, onde vês? “Na cidade do Senhor dos exércitos, na cidade de nosso Deus. Para sempre Deus a consolidou”. Não nos insultem os hereges separados por partes. Não se exaltem os que dizem: “Olha o Messias aqui! ou: ali!” Quem diz: Está aqui, ou: ali (cf Mt 24,23), leva a uma parte. Deus prometeu unidade. Os reis se uniram, unânimes; não se dividiram em cismas. Mas talvez a cidade que o mundo prendeu um dia seja arruinada. De forma nenhuma: “Deus a consolidou para sempre”. Se, pois, Deus a consolidou para sempre, receias que caia o firmamento?

8 10“Recebemos a tua misericórdia, ó Deus, no meio de teu povo”. Quais os receptores? E onde? Não foi o teu próprio povo que recebeu a tua misericórdia? Se teu povo recebeu tua misericórdia, como é que “recebemos nós a tua misericórdia”, e isto, “no meio de teu povo”? Parece que uns são os que receberam, e outros os que no meio deste povo receberam. Grande mistério, no entanto, bem conhecido. Quando daqui, isto é, destes versículos for extraído e retirado o que sabeis, não será mais duro, e sim mais suave. Agora, efetivamente, são contados no povo de Deus todos os que receberam seus sacramentos, mas nem todos são alvo da misericórdia de Deus. Em verdade, todos os que recebem o sacramento do batismo são chamados cristãos. Mas, nem todos vivem de maneira digna do sacramento. Há alguns que são conforme ao que descreve o Apóstolo: “Guardarão as aparências da piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2 Tm 3,5). Todavia, por causa desta aparência de piedade, são enumerados entre o povo de Deus, como na eira está, enquanto se tritura, não somente o trigo, mas ainda a palha. Por acaso, ela irá também para o celeiro? No meio deste povo malvado, porém, acha-se o povo bom, que recebeu a misericórdia de Deus. Vive de maneira digna desta misericórdia de Deus quem ouve, guarda e observa o que disse o Apóstolo: “Exortamo-vos ainda a que não recebais a graça de Deus em vão” (2Cor 6,1). Quem não recebe em vão a graça de Deus, recebe tanto o sacramento quanto a misericórdia de Deus. Em que fica prejudicado por estar no meio de um povo desobediente, até que a eira seja ventilada, até que os bons sejam separados dos maus? Que prejuízo lhe advém por habitar no meio deste povo? Seja daqueles que são denominados firmamentos, e que recebem a misericórdia de Deus. Seja um lírio no meio dos espinhos. Pois, queres ouvir como também os espinhos pertencem ao povo de Deus? É feita a seguinte comparação: “Como lírio entre espinhos é minha amada entre as donzelas” (Ct 2,2). Acaso disse: no meio de estranhas? Não; mas disse: “no meio das filhas”. Existem, portanto, filhas más, e no meio delas encontrase o “lírio entre espinhos”. Por conseguinte, os que recebem os sacramentos, mas não têm bons costumes, são de Deus e não são. São denominados também estranhos. São de Deus por causa dos sacramento; alheios devido a seu próprio vício. Assim também há filhas estranhas. Filhas, por causa da aparência de piedade; estranhas, por terem perdido a sua virtude. Haja, portanto, ali, um lírio, que receba a misericórdia de Deus, tenha o bulbo da flor, não seja ingrato à suave chuva que cai do céu. Ingratos sejam os espinhos, que cresçam por causa das chuvas, mas para serem lançados ao fogo e não guardados no celeiro. “Recebemos, ó Deus, a tua misericórdia, no meio de teu povo”. No meio de teu povo que rejeita a tua misericórdia, nós a recebemos. Ele veio para o que era seu, mas os seus não o receberam (cf Jo 1,11.12). Aos que estão no meio dos que o receberam, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus.

9 Pode então ocorrer a alguém que reflete: E então? Qual o número dos que no meio do povo de Deus recebem a sua misericórdia? Como são poucos! Mal se encontra um ou outro. Deus se contentará com eles, e deixará perder-se tamanha multidão? Falam assim os que prometem a si mesmos o que não ouviram Deus prometer. E, de fato, se vivemos mal, se gozamos dos deleites deste mundo, se servimos as nossas concupiscências, Deus haverá de nos perder? Quantos são os que parecem observar os mandamentos de Deus? Mal se encontra um ou dois, ou mesmo pouquíssimos; Deus haverá de libertar a estes somente e condenar os outros? Respondem: De modo algum; quando ele vier e vir tão grande multidão à esquerda, se compadecerá e dará o perdão. Em verdade, isto também prometeu a serpente ao primeiro homem; pois Deus o ameaçara de morte, se provasse do fruto, mas a serpente disse: “Não, não morrereis” (cf Gn 2,17; 3,4). Acreditaram na serpente, e descobriram que era verdade o que Deus ameaçara, e falso o que prometera o diabo. Assim também agora, irmãos, ponde a Igreja diante de vossos olhos, à semelhança de um paraíso. A serpente não cessa de sugerir o mesmo que então sugeriu. Mas a queda do primeiro homem deve valer-nos de exemplo para nos precavermos, e não para imitarmos o pecado. Por conseguinte, ele caiu para que nós nos levantemos. Respondamos a tais sugestões o mesmo que Jó (Cf Jó 2,8-10). Pois, também a ele o demônio tentou através da mulher, como outra Eva; e o homem venceu, estando no monturo, ele que fora vencido no paraíso. Em consequência disso, não ouçamos estas palavras, nem julguemos que são poucos os justos; são muitos, mas estão escondidos entre os demais. Não podemos, verdadeiramente, negar que os maus são em maior número e de tal modo que entre eles os bons quase não aparecem, assim como os grãos não aparecem na eira. Pois, quem olha a eira, pode imaginar que ali só existe palha. Imagina um homem que não é perito no assunto; ele pensa que é inútil empregar ali bois, e os homens suportarem o calor e suarem para esmagar a palha. Mas ali se encontra também a massa que deve ser separada pela ventilação. Então sairá o trigo que estava escondido sob aquela quantidade de palha. Então, queres encontrar os bons? Sê um deles, e encontrarás.

10 11Contra tal falta de esperança vê como continua o salmo. Tendo dito: “Recebemos a tua misericórdia, ó Deus, no meio de teu povo”, alude a um povo que não aceita a misericórdia de Deus, mas que tem em seu meio alguns que a acolhem. E no intuito de que não se pense serem estes tão poucos que cheguem a ser quase nada, como consola o salmista, na continuação do salmo? “Como o teu nome, ó Deus, assim o teu louvor chega aos confins da terra”. Qual é este louvor? “Grande é o Senhor e muito digno de louvor, na cidade de nosso Deus, em seu monte santo”. Encontra-se seu louvor apenas em seus santos. Pois, os que vivem mal não o louvam; apesar de louvarem com a boca, blasfemam com a vida. Visto que seu louvor só existe entre seus santos, não digam os hereges a si mesmos: Seu louvor permanece entre nós, porque somos poucos, separados da multidão. Nós vivemos com justiça, louvamos a Deus, não somente em palavras, mas realmente na vida. O salmo lhes replica: Como dizeis que uma parte da terra louva, se foi dito: “Como o teu nome, ó Deus, assim o teu louvor chega aos confins da terra”? Com isto quer dizer, como és conhecido por todas as terras, assim também em todas elas és louvado; não faltam os que te louvem por toda a terra. Mas louvam os que vivem honestamente. “Como o teu nome, ó Deus, assim o teu louvor chega”, não a uma só parte, mas “aos confins da terra; a tua destra está cheia de justiça”, quer dizer, são muitos igualmente os que estarão à direita. Não serão muitos apenas os da esquerda, mas também haverá a plenitude da massa, colocada à direita: “A tua destra está cheia de justiça”.

11 12“Alegre-se o monte Sião e exultem as filhas de Judá, por causa de teus juízos, ó Senhor”. Ó monte de Sião, ó filhas de Judá, lutais agora no meio da cizânia, entre as palhas, entre os espinhos; mas exultai por causa dos juízos de Deus. Deus não erra ao julgar. Vivei separadamente, embora nascestes no meio deles. Não é ociosa a palavra de vossa boca, de vosso coração: “Não arruínes com os ímpios a minha alma. Nem a minha vida com os homens sanguinários” (Sl 25,9). O grande artífice ventilará, trará na mão a pá, de sorte que nenhum grão de trigo cairá no acervo de palha para ser queimado e nem um argueiro de palha restará na massa a ser recolhida no celeiro (cf Mt 3,12). Exultem as filhas de Judá porque os juízos de Deus não erram; então, agora não julgueis temerariamente. Cabe-vos recolher, a ele compete separar. “Alegre-se o monte de Sião e exultem as filhas de Judá por causa de teus juízos, ó Senhor”. Não penseis que filhas de Judá sejam os judeus. Judá significa confissão. Todos os filhos que confessam são filhos de Judá, porque a expressão: “A salvação vem dos judeus” (Jo 4,22), não tem outro sentido senão Cristo provém dos judeus. O Apóstolo tem idêntica afirmação: “Pois o verdadeiro judeu não é aquele que como tal aparece externamente, nem é verdadeira circuncisão a que é visível na carne; mas é judeu aquele que o é no interior e a verdadeira circuncisão é a do coração, segundo o espírito e não segundo a letra: aí está quem recebe louvor, não dos homens, mas de Deus” (Rm 2,28.29). Sê judeu desta forma; gloria-te da circuncisão do coração, embora não tenhas a da carne. “Exultem as filhas de Judá por causa de teus juízos, ó Senhor”.

12 13“Andai em redor de Sião, percorrei-a”. Seja dito aos que vivem mal e que têm em seu meio aquele povo que recebeu a misericórdia de Deus: No meio de vós acha-se um povo que vive retamente. “Andai em redor de Sião”. Mas como? “Percorrei-a”. Não vos acerqueis dos escândalos, mas andai ao redor com caridade, de sorte a imitardes os que vivem segundo o bem entre vós e por esta imitação sejais incorporados a Cristo, de quem eles são membros. “Andai em redor de Sião, percorrei-a. Narrai, de suas torres”. Das alturas de suas fortalezas, apregoai seus louvores.

13 14“Considerai em vosso coração os seus baluartes”. Não procureis a aparência de piedade (cf 2Tm 3,5), renunciando a sua virtude; mas “considerai em vossos corações a sua virtude”. Quem quiser entender qual a força desta cidade, pense na força de sua caridade. Esta é a força invencível. Nem os vagalhões do século, nem os rios das tentações podem extinguir tal fogo. Daí a palavra: “O amor é forte como a morte” (Ct 8,6). É impossível resistir à morte, por mais recursos e medicamentos que se empregue. Quem nasceu mortal não pode evitar a violência da morte. Assim contra a violência da caridade o mundo nada pode. A semelhança com a morte é por oposição. Como a morte é violentíssima para tirar, assim é violentíssima a caridade para salvar. Pela caridade, de fato, muitos morreram para o mundo, a fim de viverem para Deus. Esta caridade inflamou os mártires, genuínos, sem vanglória e que não eram do número daqueles dos quais disse o Apóstolo: “Ainda que entregasse meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria” (1Cor 13,3), e sim dos que, efetivamente, o amor de Cristo e da verdade levou à paixão. Que mal lhe fizeram as perseguições dos inimigos encarniçados? Os olhos lacrimejantes dos seus atacavam-nos com maior violência do que as perseguições dos adversários. Quantos não eram agarrados pelos filhos, pedindo que não se submetessem aos tormentos! Quantas esposas não caíam aos pés de muitos, não querendo ficar viúvas! Quantos filhos não queriam que os pais morressem, como sabemos e lemos nas Atas do martírio de Santa Pérpetua! (cf Passio 5,3). Tudo isso aconteceu. Mas as lágrimas por mais que fossem, por mais que jorrassem impetuosas, quando extinguiram o ardor da caridade? Esta é a força de Sião, à qual se diz em outra passagem: “Haja paz em tua fortaleza, e abundância em tuas torres” (Sl 121,7). “Considerai em vosso coração os seus baluartes e distribuí as suas casas”. 14 Como entender a expressão: “Considerai em vosso coração os seus baluartes e distribuí as suas casas”? Quer dizer: Distingui casa de casa. Não sejam confundidas. Uma casa tem aparência de piedade e não a possui; outra tem a aparência e também a possui. “Distribuí”, não confundais. Distribuis sem confusão quando considerais em vossos corações seus baluartes, isto é, ao vos tornardes espirituais por meio da caridade. Então não julgareis temerariamente; então vereis que os maus em nada prejudicam os bons, enquanto estamos nesta eira: “Distribuí as suas casas”. É possível ainda outra interpretação. Foi dito aos apóstolos que distribuíssem aquelas duas casas, uma da circuncisão e outra dos gentios. Quando foi chamado Saulo, que se tornou o apóstolo Paulo, ele aderiu à unidade dos coapóstolos. Combinaram entre si que eles se encarregariam dos circuncisos e Paulo dos pagãos (cf Gl 2,9). Com tal distribuição de seu apostolado dividiram entre si as casas da cidade do grande rei. Reunindo-se no ângulo das paredes, dividiram o ministério do evangelho, mas unidos na caridade. Isto deve ser explicado melhor. Pois, o salmo continua, e mostra que foi dito aos pregadores: “E distribuí as suas casas, para narrardes à geração vindoura”, isto é, para chegar até nós a dispen-sação do evangelho, a nós que viríamos depois deles. Não trabalharam apenas para os seus coetâneos; nem mesmo Senhor operou somente em favor dos apóstolos, aos quais se dignou aparecer ressuscitado, mas também por nós. Pois, dirigia-se a eles, mas eles nos representavam, quando o Senhor lhes dizia: “Eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). Mas, eles haveriam de permanecer na terra até a consumação dos séculos? E ainda diz: “Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de sua palavra, crerão em mim” (Jo 17,20). Por conseguinte, leva-nos em consideração, porque sofreu por nós. É com razão, pois, que diz o salmo: “Para narrardes à geração vindoura”.

15 15Qual o conteúdo da narração? “Que este é o nosso Deus”. Via-se a terra, mas não se via o criador da terra. Assumira a carne, mas não era reconhecido o Deus encarnado. Paravam no conhecimento da carne aqueles dentre os quais fora assumida a própria carne, pois a virgem Maria era da descendência de Abraão; pararam na carne e não entenderam a divindade. Ó apóstolos, ó grande cidade! prega em tuas torres, e dize: “Este é o nosso Deus”. Assim da maneira, como foi desprezado, como a pedra ficou diante dos pés que tropeçaram, a fim de humilhar os corações dos que confessavam, assim “este é o nosso Deus”. Certamente foi visto, conforme está escrito: “Depois disso ele apareceu sobre a terra e no meio dos homens conviveu” (Br 3,38). “Este é o nosso Deus”. É também homem, e quem é que o conhecerá? “Este é o nosso Deus”. Mas, será talvez só por algum tempo como os falsos deuses? Os deuses de nome, que não podem ser deuses, por algum tempo ao menos são chamados de deuses. O que lhes diz o profeta, ou como exorta a lhes dizer? Assim lhes falareis. Como? “Os deuses que não criaram o céu e a terra desapareçam da terra e de debaixo dos céus” (Jr 10,11). Nosso Deus não é desses tais, porque ele é acima de todos os deuses. Quais são todos esses deuses? “Porque os deuses das nações são demônios. Mas o Senhor fez os céus” (Sl 95,5). Ele mesmo é nosso Deus, “este é o nosso Deus”. Até quando? “Eternamente e pelos séculos dos séculos. Ele há de ser o nosso guia”. Se é nosso Deus, também é nosso rei; protege-nos, porque é Deus, a fim de não morrermos; guia-nos para não caírmos, porque é nosso rei. Ao reinar sobre nós, não nos quebra; ao invés, ele esmaga aqueles sobre os quais não reina. “Hás de governá-los com cetro de ferro, e esmigalhá-los qual vaso de argila” (Sl 2,9). São aqueles que não estão sob seu governo; não os poupa, mas esmigalha-os qual vaso de argila. Optemos, portanto, ser por ele guiados e libertados, porque “este é o nosso Deus eternamente e pelos séculos dos séculos. Ele há de ser o nosso guia” pelos séculos.

Extraído do Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos), de Santo Agostinho, vol.1.


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